Cabo Verde e a discussão sobre os símbolos esclavagistas, colonialistas e de reprodução da prática morgadia
É tão certo que Cabo Verde não foi invadido por europeus no século XV, como não ter sido descoberto. Sendo assim, fiquemos pelo termo achado. Contudo, do que se sabe da historiografia existente, as ilhas foram logisticamente utilizadas como base de invasão e sequestro no continente africano. Isso, sim, é fato histórico e seguindo o raciocínio de W.E.B. Du Bois, por isso, fica registado como tendo sido a base operacional do início da criminalidade branca, dando origem a um dos primeiros grandes empreendimentos do crime organizado transatlântico da história da humanidade. Prática essa hoje continuada pelo narcotráfico, mas de forma invertida.
Sobre este assunto em particular, e abrindo aqui um parêntese, a perspetiva contra-colonial desenvolvida pelo criminólogo nigeriano Biko Agozino apresenta-se como uma abordagem epistemológica bastante pertinente para a recuperação da discussão sobre os crimes do passado colonial, e suas consequências atuais. Mas, como é evidente, este é assunto para outro espaço.
Indo ao ponto que interessa, em Portugal, à boleia da discussão sobre a estátua do Padre António Vieira, soubemos por um artigo de opinião publicado no Público que está prevista a instalação de uma estátua do referido Padre no antigo hipermercado atlântico de escravos (Ribeira Grande de Santiago). O assunto da moda é moda, visto que também é hoje moda a mobilização da tal coisa anti-politicamente correta quando se quer impor um ponto de vista cientificamente duvidoso. No entanto, como falar de escravatura e violência colonial é um não assunto e uma profanação identitária em Cabo Verde, se calhar, seja útil também mobilizar o tal do politicamente incorreto.
O argumento principal da instalação da estátua é de que, aquando da sua passagem por estas bandas, em meados do século XVII, o senhor Vieira foi muito bem recebido pela população nativa, tendo realizado uma brilhante intervenção em prol da humanidade, na Igreja da Nossa Senhora do Rosário. Confesso que afirmações do tipo me levam a pensar se os seus autores são realmente ingénuos. Outro parêntesis. Que eu saiba, no período tardo colonial da cidade da Praia, quando os poucos cruzeiros que por cá encostavam, varria-se a população indesejada da cidade das quatro ruas (Plateau). Portanto, e voltando ao tema, não acredito que, em pleno regime esclavagista e colonialista, fossem os escravizados a assistir ao discurso ou muito menos a receber o senhor.
É bom lembrar que, no período da oficialização da ideologia do benefício histórico do colonialismo, não obstante o discurso simbólico do preto especial, na prática, o povo arquipelágico sofria a ausência de políticas públicas, sendo por isso reescravizado nas roças de São Tomé e Príncipe, enquanto a elite intelectual e política brincava de mediador colonial nas terras bissau-guineenses, região onde detinham controlo comercial pelo menos desde o século XVII, altura da ascensão dos brancos (filhos) da terra e da institucionalização da categoria djam branku dja.
Isto por parte de um grupo de indivíduos saídos da Irmandade dos Homens Pretos, grupo forjado no interior da Igreja onde aconteceu a tal intervenção do senhor Vieira, originários do grupo dos caçadores de africanos auto-libertos na Ribeira Grande de Santiago que, usando a terminologia do Nuno Rebocho, representavam uma “aristocracia escrava”. Sendo certo que essa era a única confraria da época que recebia pretos que, apesar da reconhecida prática de discriminação racial, funcionava como uma associação de integração social. Percebe-se qual o critério utilizado, quando se sabe que ela tinha como funcionalidade servir de complemento do processo da ladinização dos escravos de portas adentro – uma etapa superior do processo de escravatura, mas integrada apenas por aqueles que mereciam maior confiança por parte dos seus proprietários, também conhecidos como homens brancos honrados.
Eram, na verdade, capatazes desses proprietários, mas também pertencentes ao grupo dos lançados (traficantes transatlânticos de outrora) e escravos donos de escravos e, logo, intermediários no processo da violência genocida contra os africanos. Mas, como é evidente, este texto não tem como objetivo duvidar do sentido humano do Padre António Vieira ou ilibar a violenta participação morgadia na gestão esclavagista e colonial portuguesa em África. Tem tão-somente a intenção de pontuar alguns aspetos que os da moda-contra-moda, os herdeiros simbólicos contemporâneos dos homens pretos dos séculos XVI e XVII, parecem desconhecer.
Em África, continente de pertença identitária cabo-verdiana, cuja negação da mesma foi iniciada precisamente pelo grupo de preto que mais tarde veio estabelecer-se como grupo dos homens pretos. Os movimentos sociais ou de protestos são encarados enquanto vagas e não como entidades estáticas e estruturadas, como a literatura sociológica e política de matriz eurocêntrica a tem definido. Deste modo, falar hoje de uma terceira vaga de protestos em África ou em Cabo Verde, é falar de um processo iniciado há bastante tempo.
Embora a suposta revolta de Monte Agarro seja apresentada como primeira tentativa de independência da ilha de Santiago, os documentos existentes demonstram que os escravos e forros reunidos em agosto de 1835 na tal casa situada no assentamento morgadio nos arredores da capital, não passaram de figurantes nas mãos de uma elite esclavagista, num cenário de disputas palacianas de poder. Aliás, o mesmo tipo de joguete de poder hoje observado em período eleitoral, no qual gangues e demais grupos do lumpemproletariado são instrumentalizados por militantes e ativistas político-partidário de ambos os lados.
Contudo, não quero com isto dizer que esse acontecimento não se insere nos cinco séculos de resistência, indignação e revoltas que marcaram a história cabo-verdiana, espelhadas quer nos movimentos dos escravos auto-libertos transformados em seguida em movimentos de campesinato nas ilhas de Santiago e Santo Antão, quer no movimento operário mindelense ou nos movimentos urbanos político-literários e identitários no Mindelo e na Praia.
Neste sentido, o que quero pontuar é que a carta que hoje traz o assunto da remoção dos símbolos esclavagistas e colonialistas, à qual acrescento o fim da reprodução da prática morgadia em modo de instalação de placas de ostentação da fulanização do poder, enquadra-se na terceira vaga de protestos antirracistas e anticolonialistas com séculos de história, mas materializado em parte com a declaração simbólica da independência.
Assim, o que se diz tratar-se de uma moda desencadeada pelos protestos antirracistas e antifascistas nos EUA e na Europa, é prova de que o que escapa a uma parte da elite política e intelectual das ilhas é que este assunto tem já anos de debate no nosso continente. Falar que este assunto é uma moda é estar bastante desatendo em relação à dinâmica política desinstitucionalizada nas ilhas que, de resto, tem estado bastante atento ao que se passa no continente que faz parte.
A propósito, a postura político-institucional neste e em muitos outros assuntos fraturantes da sociedade cabo-verdiana, além de inscrever-se numa lógica de reprodução histórica do papel ilhéu enquanto capataz do império, evidencia a surdez política espelhada nos dados do Afrobarometer de 2017, em que 87% dos inqueridos declararam que nunca ou poucas vezes os políticos tem mostrado alguma intenção de os ouvir.
O mínimo que se pode esperar de uma classe política que se diz pertencer a um país exemplo em África e arredores, em matéria de democracia e de boa governação, é promover um debate institucional descomplexado, criando assim possibilidades de uma reavaliação séria e rigorosa dos símbolos históricos, como se tem feito noutras paragens.
No que toca ao apelo ao financiamento da instalação em Santiago da estátua do Padre António Vieira, seria sensato criar um movimento de bloqueio, por todos os meios necessários, pelo menos sem que haja um debate sério sobre o assunto. Sobre as vagas de protestos, a carta pública representa apenas uma mera formalização de algo interrompido nos anos de 1990, mas recuperado nos anos de 2000 pelos descendentes urbanos dos djulangues santiaguenses, e tornado visível pelo movimento rap.
N’ka kre odja statua di Cabral rostu pa simiteriu / Di Diogo Gomi20 rostu pa palasiu di governu / Dja sta bom di rodidju ku portugues! / Não quero ver a estátua de Cabral com a cara virada para o cemitério / E a do Diogo Gomes virada para o palácio de governo / Chega de esquemas com portugueses (Nax BeatT, Odja Oby Ntedy Dypoz Fala - vyzon krytyku / Olha, ouve, entende, depois fala – visão crítico, 2009)
É de todo legítimo que uma parte de cabo-verdianos deseje a remoção destes símbolos que, embora para os lusotropicalista apanhados pela síndrome de Estocolmo seja um assunto sem importância, faz todo o sentido para a outra parte. Aliás, é precisamente nessa camada populacional que os votos normalmente vão para o quadrado branco ou para a abstenção.