Ka Ta Kusta Nada: oficina hip-hop Xalabas e a indigenização do rap

rap é hoje uma das expressões culturais e juvenis mais poderosas em África, por onde as velhas identidades africanas têm sido desconstruídas e reconstruídas (Clark 2018), consolidando-se na voz de mudança e representação de um futuro de esperança (Saucier 2011). Charry (2012) afirma que o rap surgido em África na segunda metade dos anos de 1980 não veio de nenhuma tradição africana, mas de uma imitação direta do rap norte-americano. A sua indigenização deu-se efetivamente apenas na terceira geração dos rappers africanos, através de uma conexão orgânica com as tradições locais. 

No Senegal, por exemplo, Appert (2011) verificou que, na elaboração da figura do griot, os rappers descontextualizam a música tradicional e os géneros de discurso e o recontextualizam no hip-hop. Em simultâneo, numa relação intertextual com o hip-hop norte-americano, colocam o griot em diálogo com a produção diaspórica africana, construindo dessa forma uma música que é tanto local e transnacional como indígena e diaspórica. Em Cabo Verde, o processo de sua recontextualização ou indigenização se inicia nesse mesmo período, ainda que timidamente, mas consolidado nos últimos tempos por um conjunto de trabalhos, entre muitos outros, Wata fosi mo ka ta intenden de Ga DaLomba e Princezito, Afrokabuverdianu de Ga DaLomba e Kuumba Cabral ou mais recentemente, num excelente diálogo entre o rap e a morna, 08.01.2015 Navio Vicente de Batchart e Michelle.

Olhando para a história do arquipélago e o seu papel no processo do comércio triangular de pessoas escravizadas, é legítimo afirmar que foi provavelmente na cidade de Ribeira Grande do século XV/XVI o primeiro lugar onde o griot se metamorfoseou, dando lugar ao finason, mais tarde introduzido nas sessões do batuku. As sessões de cyphers, por exemplo, muito presente no batuku, é um importante elemento de semelhança entre as músicas e danças tradicionais africanas (cabo-verdianas) e a cultura hip-hop. Foi aliás, com basse nesse pressuposto que tomei (Lima 2020) o rap como herdeiro direto do griot e uma versão urbana, juvenil, masculinizada e sofisticada do finason, na mesma linha como o tassou é encarado pelos rappers senegaleses.  

A organização de uma oficina de hip-hop no Festival de Artes Públicas, enquadrado no Programa de Arte Urbana Xalabas, além de buscar através do rap, elemento oral do hip-hop, provocar uma reflexão sobre Achada Grande Frente, teve como pretensão criar uma estética de rap indigenizada num bairro onde manifestações culturais como a tabanka e o batuku se encontram bem enraizadas. Logo, de forma colaborativa e coletiva, procurou-se criar uma obra que espelhasse a realidade social e cultural do bairro, tendo como base um diálogo disruptivo entre experiência sociocultural e a prática do hip-hop.

Com uma duração de 12 dias, realizada entre os dias 18 e 30 de janeiro de 2020, a oficina foi dividida numa componente teórica (4 dias) e uma prática (8 dias), facilitadas pelos artistas Kuumba Cabral, Ga DaLomba, Batchart e Princezito. Na parte teórica, desenvolvida entre os dias 18 e 21 de janeiro, centrou-se a discussão nos aspetos artísticos, sociais e políticos do hip-hop, assim como na sua raiz africana e o seu papel na potencialização do empreendedorismo pessoal, social e comunitário. Na componente prática, desenvolvida entre os dias 22 e 30 de janeiro, mostrou-se as várias ferramentas e técnicas existentes no trabalho de criação musical. Num segundo momento, elaborou-se individualmente partes da letra a partir dos assuntos discutidos na parte teórica, mas tendo como base as suas experiências pessoais, sociais e comunitárias. Posteriormente foram apresentadas e discutidas em grupo e do processo saiu o cypher Ka Ta Kusta Nada, protagonizado por Kuumba Cabral, ZMC, Mr. Keh, Bill, Ivanilson, FabSoz, Samu Projecto, DN RDG, Like boss, Néné prujecto e Ronny Riall. A produção do beat esteve a cargo de Bouzin Beats.

O título, que vinha sendo utilizado nas redes sociais por um dos ativistas participantes na oficina, tem um carácter motivacional e de chamada de atenção aos jovens em particular e a população em geral sobre a necessidade da comunidade apoiar e incentivar as potencialidades locais, em vez de priorizar apenas os valores de fora. Também, funciona como um apelo ao djunta-mon comunitário à volta da cultura local, um dos maiores passivos de refazer do bairro um importante ponto de atração na cidade, tal como já o foi no passado, centrado na tabanka e na gastronomia marítima local. Assim, através do diálogo entre o rap, o finason e a tabanka, construi-se aquilo que Princezito denomina de finarap, com o objetivo de, por um lado, contribuir para a cabo-verdianização dessa cultura urbana e, por outro, garantir a continuidade e a popularização juvenil e urbana do finason através do rap.

Bibliografia

Appert, C., 2011, ‘Rappin Griots: Producing the Local in Senegalese Hip-Hop’, in P.K. Saucier, ed., Natives Tongues: An African Hip-Hop Reader. Trenton: African Word Press, pp. 3-21. 

Charry, E., 2012, ‘A Capsule History of African Rap’, in E. Charry, ed., Hip-pop Africa: New african music in a globalizing world, Bloomington: Indiana University Press, pp. 1-25.

Clark, M.S., 2018, Hip-hop in Africa: prophets of the city and dustyfoot philosophers, Athens: Ohio University Press.

Lima, R.W., 2020, “Di kamaradas a irmons: o rap cabo-verdiano e a (re)construção de uma identidade de resistência”. Tomo, n. 37, pp. 47-88.

Saucier, P.K., 2011, ‘Introduction. Hip-hop culture in red, black, and green’, in P.K. Saucier, ed., Natives tongues: an african hip-hop reader, Trenton: African Word Press, pp. xiii-xviii.

por Redy Wilson Lima
Palcos | 4 Junho 2021 | África, hip hop, indigenização do rap, ka ta kusta nada, rap