Fronteiras, migrações e cidadania

Prólogo
Na introdução a Border Devices, uma exposição apresentada em Módena (Itália) durante o Festival de Filosofia, os organizadores defenderam que a proliferação de confins, a sua prismática decomposição e recomposição, constitui o outro lado da globalização. E acrescentaram: o sonho de um espaço totalmente fluído e transitável é talvez a última utopia do século XX. A suavidade característica do espaço contemporâneo dissolve-se, porém, mediante um olhar mais próximo. Um dos resultados mais imediatos dos movimentos e das interligações globais, parece ser a proliferação de confins, sistemas de segurança, checkpoints, fronteiras físicas e virtuais. É um fenómeno visível, quer a nível microscópico, nos territórios em que nos movimentamos no dia-a-dia, quer a nível macroscópico, nos fluxos globais: os confins estão, de facto, por todo o lado. São convencionais e geográficos, abstractos e reais, óbvios e contestáveis. Uma análise global desta combinação de fluxos (de pessoas, produtos, ideias…) e de restrições sobre um determinado território revela uma complexidade de identidades individuais e colectivas que são, simultaneamente, construídas e fracturadas pela experiência de atravessar os confins.

O conceito clássico de confim

Esta apresentação baseia-se num conjunto de investigações sobre os movimentos migratórios contemporâneos e num trabalho que incidiu sobre a história conceptual da cidadania moderna europeia e ocidental. Um trabalho que evidenciou como, ao longo da história, se verificou uma alteração conceptual – por mim definida como confins da cidadania – e cujo valor extrapola o que podemos comodamente definir como dimensão geopolítica, ou o conjunto de modelos através dos quais o indivíduo foi imaginado e construído como cidadão. O ponto de partida é a noção clássica de confim, que tem origem na Alemanha, entre os séculos XIX e XX, e que assenta nos desenvolvimentos contemporâneos da geografia política e da doutrina geral do Estado. A relação entre território e Estado é simbolizada pelo título da primeira parte do grande tratado de geografia política, publicado por Ratzel em 1897: Cada Estado, como se pode ler no início desta obra, é uma porção da humanidade e uma porção de território. O homem é impensável sem terra, e ainda menos o é a sua maior obra neste planeta, isto é, o Estado.

O próprio Ratzel enfatiza a convergência desta ideia de Estado com a definição de soberania como jus territoriale, elaborada durante os mesmos anos. Em Allgemeine Staatslehre, de George Jellinek (1900), o carácter unitário do território do Estado é – junto com a concomitante unidade do povo e do poder – um dos três elementos essenciais que concorrem na mesma definição de Estado. Neste quadro, a definição de confim é pouco problemática: é a abstracção que permite delimitar o processo dinâmico de expansão da forma política de povo, ou o limite do âmbito territorial de legitimidade do poder do Estado (Jellinek). Numa diferente tradição, Lord Curzon afirmava, em 1908, que a integridade dos confins é a condição de existência do Estado, o sinal visível da distinção entre interno e externo, única garantia de ordem e paz. Lord Curzon depressa concluiu que os confins são a lâmina de barbear sobre a qual assentam as questões da guerra e da paz.   

É importante encarar a arquitectura geopolítica e jurídica organizada em torno do conceito de confim, como a base a partir da qual se desenvolveu a história das migrações na Europa entre os séculos XIX e XX. A conceptualização do confim, e a clara e garantida distinção entre interno e externo, foi a condição que permitiu que se formassem determinados sistemas migratórios e uma relativamente ordenada geografia das migrações internacionais. Poderia replicar-se que este pressuposto conduziu quase sempre a uma representação pacífica e idílica das migrações na Europa, esquecendo aquilo que Saskia Sassen definiu como o cone de sombra da história da Europa, na qual massas de indivíduos deportados, erradicados e errantes, vivem em terras estrangeiras, em países que não reconhecem a sua pertença. Mas, para uma reconstrução tipológica que venha enfatizar as peculiaridades da situação contemporânea, é talvez mais relevante observar como esta arquitectura começou a oscilar naqueles pontos onde o pressuposto de uma co-pertença de Estado e território se apresentava mais problemático: nos territórios sulcados de linhas de fractura nacionais, étnicas, linguísticas; como nas províncias prussianas orientais, nos anos 90 do século XIX ou na crise dos refugiados após a Primeira Guerra Mundial (de acordo com a clássica análise proposta por Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo).

foto de Jordi Burchfoto de Jordi Burch

Exceder os confins

Reavaliando algumas indicações de Carl Schmitt (O Nomos da Terra, 1950), podemos afirmar que a arquitectura a que fizémos referência se fundava na existência do que se poderia designar de metaconfim: ou seja, aquilo que dividia as terras europeias – mais tarde, ocidentais – das terras abertas à conquista colonial. Neste sentido, faço minhas as palavras de Etienne Balibar: A Europa é o ponto a partir do qual todas as partes do mundo foram traçadas por linhas de confim, uma vez que é origem do próprio conceito de confim e, por esta razão, o problema dos confins da Europa é sempre coincidente com o da organização política do espaço mundial.

Duas consequências de particular importância derivam deste fenómeno: em primeiro lugar, desenvolve-se todo um campo de estudo e investigação sobre a função do confim no mundo colonial, instituindo inéditos paralelismos entre o colonialismo e o desenvolvimento de movimentos anti-coloniais ao longo do século XX; em segundo lugar, se assumirmos como hipótese que o presente se caracteriza pela regressão do metaconfim, é então provável que alguma disjecta membra do colonialismo (a distinção entre cidadão e sujeito, por exemplo) se reproduza dentro das antigas metrópoles.

Deste ponto de vista, é possível desenvolver a ideia de que a proliferação de confins constitui o outro lado da globalização, isto é, que a globalização se caracteriza, não pelo desaparecimento dos confins, mas sim pela crise de ligação entre Estado e território que, como vimos, constitui o pressuposto conceptual da definição clássica de confim. O confim já não separa univocamente o espaço da cidade, do seu exterior, mas decompõe-se de modo prismático, reproduzindo-se no interior da cidade e projectando-se em direcção ao seu exterior. O Espaço está desarticulado, como reconhecem os mais especializados geógrafos. Ao mesmo tempo, o cariz unívoco da definição geopolítica de confim é colocada em discussão, e outras noções do conceito – culturais, simbólicas ou cognitivas – assumem o primeiro plano nos trabalhos políticos sobre a fronteira.

 

Migrações globais

É minha convicção que os movimentos migratórios contemporâneos nos permitem precisar esta tese, demonstrando a intensidade das tensões e conflitos deste duplo movimento de decomposição e recomposição dos confins. Não esquecendo os elementos de continuidade entre os movimentos migratórios dos últimos anos e as migrações de há um século atrás, é necessário enfatizar os seus indiscutíveis elementos de novidade: multiplicação dos modelos migratórios, forte aceleração dos seus fluxos, aumento da complexidade da sua composição (por exemplo, com um forte incremento da participação feminina) e a crescente não previsibilidade das suas direcções.

O que cada vez mais caracteriza os movimentos migratórios é a sua turbulência. Ela torna-se notória na reconstrução da geografia dos êxodos populacionais contemporâneos: durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, isolar os fluxos dominantes – cada um com o seu ponto de partida e de chegada, traços definidores de sistemas migratórios precisos – assumia-se como uma tarefa bastante fácil; pelo contrário, hoje em dia os fluxos partem de todas as partes, e cada tentativa de representar graficamente o fenómeno migratório acaba num xeque-mate – a menos que se o queira representar como uma espécie de prato de esparguete. 

As investigações internacionais atravessam uma crise dos modelos hidráulicos de análise das migrações, centrados unicamente – tanto na sua versão neoclássica, como na sua versão neomarxista – nos factores push and pull, determinantes da escolha de imigrar ou não: cada vez mais, é impossível reduzir os movimentos migratórios a esquemas fundados em elementos objectivos, ou seja, o excesso dos comportamentos subjectivos ultrapassa as mais evidentes e objectivas motivações para imigrar. Enquanto no plano analítico se verifica uma atenção crescente em relação aos papéis das redes familiares e comunitárias na determinação de todo o processo migratório, no plano das políticas migratórias, a utopia do pleno controlo e do governo absoluto dos fluxos permite o relevo de quadros de análise como a dos actores em cadeia. Esta tenta analisar o imprevisível – qualidade inerente a conceitos, como o de excesso ou de turbulência – a partir de uma abordagem contingente e oportunista.

Estudos de fronteira

Convém ter em conta a relação que as novas características dos movimentos migratórios têm com o confim. Os Border Studies, desenvolvidos nos Estados Unidos, consagram uma contribuição particularmente relevante, nomeadamente através das investigações realizadas (etnográficas, geográficas, sociológicas, jurídicas, …) na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Estas destacaram o processo de hibridação que a experiência da fronteira provocou nos imigrantes mexicanos e chicanos1, que consistiu essencialmente no contínuo êxodo de confins identitários. Como afirmou José David Salazar: o confim entre Estados Unidos e México é um paradigma do atravessar, da circulação, da mistura material e da resistência.

No início do livro de Gloria Anzaldúa – uma referência no âmbito dos Border Studies – pode ler-se: o confim, este lugar de contradições, não é um território confortável para viver – ódio, raiva e exploração são as características preeminentes desta paisagem. Esta é a minha casa, esta subtil borda de arame farpado, escreveu a escritora e poetisa chicana. Retornando de imediato à prosa, o confim entre os Estados Unidos e o México é uma ferida aberta, onde o Terceiro Mundo se desencontra do Primeiro e sangra. A sua tese de que a fronteira constitui um terceiro espaço acabou por nutrir uma nova ortodoxia nos Border Studies, tendo igualmente sido exposta a uma crescente crítica pelos seus enfoques estetizantes – em particular, convém referir – por parte de investigadores mexicanos. Na minha opinião, livros como os de Anzaldúa, para além de serem leituras fascinantes, captam alguns elementos da realidade e representam um saudável desafio ao essencialismo cultural, propagado pelo discurso científico e – num senso comum – relacionado com o multiculturalismo. Pode aceitar-se o convite de Pablo Vila e revisitar a teoria da fronteira, colocando o acento sobre a ambivalência e a dialéctica incorporados na experiência dos migrantes de border crossing e border reinforcing. 

Esta ambivalência, que tentei enfatizar mediante a distinção entre confim e fronteira, aparece de uma forma mais óbvia num dos campos de estudo de migração mais inovadores dos últimos anos: o do transnacionalismo. A tendência dos movimentos migratórios contemporâneos para a construção e multiplicação de espaços sociais transnacionais – contribuindo para uma contínua remistura do mapa geográfico do planeta – não pode ser negado. De referir igualmente, as potencialidades introduzidas por esta tendência na reflexão sobre a cidadania. No entanto, uma leitura meramente estetizante do transnacionalismo seria incapaz de captar a sua profunda ambivalência: a reprodução nos espaços transnacionais de velhas e novas hierarquias de classe e género.

Para analisar a metamorfose da fronteira no contexto dos processos de globalização não é indispensável a remissão à fronteira entre os Estados Unidos e o México: a Europa, precisamente, constituiu um excelente estudo de caso. Nesta, um novo regime de controlo fronteiriço, legitimado pela retórica da necessidade de uma resposta à imigração clandestina, está a tomar forma. É um regime flexível e uma geografia variável que, mais do que consolidar as muralhas de uma fortaleza e, logo, demarcar uma rígida linha entre dentro e fora, parece apontar para a gestão de um processo de inclusão diferencial da população migrante. O novo regime de fronteiras de que falo constitui um regime de exercício da soberania estruturalmente híbrido, cuja definição e funcionamento é realizada pelos Estados-Nação; por formações pós-nacionais, como a União Europeia; pelos novos actores globais, como a Organização Internacional das Migrações, agentes privados, como as companhias aéreas ou Organização Não-Governamentais com fins humanitários.

Penso que estes factos concordam com o que escreveu recentemente Enrica Ringo: a progressiva desterritorialização dos confins externos e internos da polis europeia torna o seu espaço jurídico descontínuo e expõe uma soberania compartida entre actores distintos, tanto públicos como privados.  Por desterritorialização deve entender-se tanto o êxodo de funções típicas do controlo dos confins – e mais para além delas (basta pensar no que tem vindo a ocorrer durante estes meses na Líbia, mas também no que sucede quotidianamente no Mediterrâneo, atravessado pelo o que Conselho Europeu de Novembro do passado ano definiu como confins virtuais, coincidentes, em última instância, com as embarcações que transportam os migrantes), como a disseminação de essas mesmas funções dentro do espaço que o confim deveria delimitar (como os centros de detenção para migrantes a aguardar por expulsão, existentes em quase todos os países). Em geral, e de outro ponto de vista, a fronteira prolonga a sua acção em direcção ao interior da cidade: reafirmando a tendência que produz uma pluralidade de posições jurídicas diferenciadas no interior da cidadania.

 

Conflitos de cidadania

Esta tendência, exemplificada de um modo eficaz (e frequentemente dramático) pelos migrantes, tem um papel essencial no processo de constituição material da cidadania europeia, bem como no funcionamento do mercado de trabalho dos diversos países europeus. Tanto que hoje em dia o confim pode ser considerado como um dos pilares fundamentais da reorganização da cidadania e do mercado de trabalho. Estes fenómenos são habitualmente analisados pela literatura sociológica sob o rótulo da exclusão, embora me pareça mais correcto falar de inclusão diferencial, uma vez que a anterior categoria corre o risco de provocar alguma distracção, caso se assuma o seu significado literal.

Estudar o processo de formação da cidadania europeia, partindo de uma análise que privilegia os seus confins, permite-nos compreender as profundas transformações que afectam a semântica e as formas de inclusão. Embora, este ano, as políticas de controlo dos confins da U.E estejam retoricamente organizadas em torno do objectivo de bloquear os movimentos de refugiados e fugitivos, o seu efeito não resultou no hermético encerramento dos confins. Mais do que à construção dos muros de uma fortaleza, assistiu-se à dispersão de um sistema de diques, de mecanismos de filtragem e a uma gestão selectiva da mobilidade. Como a propósito do confim entre os Estados Unidos e o México foi mencionado, podemos afirmar que as políticas de controlo dos confins externos europeus acabaram por determinar um processo activo de inclusão do trabalho migrante, mediante a sua ilegalização.

Quero acrescentar que uma análise da cidadania não pode limitar-se à sua definição jurídico-institucional. As investigações dos últimos anos permitem-nos compreender o quão importante é considerar as práticas sociais dos movimentos e os comportamentos subjectivos – mesmo quando inscritos numa esfera institucional –, como elementos definidores da cidadania, podendo colocá-la em causa (forçando, em particular, os seus confins). Deste ponto de vista, os mesmos movimentos migratórios contemporâneos podem ser considerados como transversais e constituídos por uma complexo conjunto de reivindicações subjectivas de cidadania que quotidianamente contestam os confins da cidadania europeia. E esta volta assim a ser, mais do que ilusão doméstica, um espaço de conflito.

 

Nota: tradução a partir de textos incluídos no livro Fadaiat, libertad de movimiento + libertad de conocimiento (Sevilla, Ed. Fadaiat, 2006).

  • 1. Cidadão norte-americano de ascendência mexicana
Translation:  José Nuno Matos

por Sandro Mezzadra
Jogos Sem Fronteiras | 26 Julho 2010 | fronteiras, migrações e cidadania