Logística
À primeira vista, a logística parece uma actividade mundana e até mesmo banal. De acordo com a definição avançada por um dos pioneiros da logística industrial na Alemanha, Reinhardt Jünemann (1989, 18), “a tarefa da logística consiste em fornecer a quantidade certa dos objectos certos no local certo, com a qualidade certa, no tempo certo e com o preço certo”. Considerações aparentemente neutras e de natureza técnica – eficiência operacional, normas pragmáticas de desempenho – parecem prevalecer no domínio da logística. Em anos recentes, no entanto, vários teóricos (Neilson 2012; Cowen 2014; Rossiter 2016; Grapper 2016; Mezzadra e Neilson em breve) propuseram usar o conceito de logística para analisar e descrever uma modalidade de poder específica das práticas organizativas e adaptativas que tornaram possível a flexibilização e coordenação da produção e das trocas comerciais por escalas e espaços diversos. O novo paradigma da mobilidade, ligado ao desenvolvimento da logística nas últimas décadas, é considerado, no âmbito do campo emergente dos estudos críticos de logística, como um vector essencial do capitalismo global contemporâneo, frequentemente definido como “capitalismo logístico”. A produção específica do espaço que caracteriza a logística ocupa um lugar de relevo na agenda destes estudos, que mapeiam cuidadosamente as implicações sociais, económicas, políticas e culturais das fronteiras em expansão da logística, bem para lá do mundo dos transportes e da comunicação.
A logística contém fortes ressonâncias militares, que delineiam os contornos da sua história moderna, pelo menos desde a sua emergência nos anos da chamada “revolução militar” na Europa (1560-1660). De acordo com os historiadores do fenómeno militar, a logística emerge como um meio para os exércitos de se libertarem da “tirania do saque” (Van Creveld 1977, 5), isto é, da necessidade de recorrerem à pilhagem e ao saque das populações que encontram na sua vizinhança para obter comida e outros recursos. No seguimento das Guerras Napoleónicas, o oficial suíço e figura importante do pensamento militar Antoine-Henri Jomini forneceu no seu texto de 1838, A Arte da Guerra, a primeira formalização de uma teoria da logística enquanto “ciência geral, formando uma das partes mais essenciais da arte da guerra” (Jomini 2008, 200). Hoje, a premissa de que as operações militares, como outras tantas operações noutras esferas da actividade humana, estão dependentes de canais de informação e linhas de abastecimento parece um truísmo. Mas noções como esta foram forjadas em circunstâncias especialmente adversas, para fazer face a desenvolvimentos materiais e transformações históricas. Entre estes desenvolvimentos e transformações, a “arte da guerra” merece destaque e continua até ao presente a estimular uma quantidade de inovações no domínio da logística. Mas é necessário ter em conta outras “origens” e genealogias da logística – que vão do comércio Atlântico de escravos, com toda a logística envolvida na organização do movimento dos escravos através do Atlântico no seu duplo carácter de força de trabalho e mercadoria (Harney e Moten 2013, 90-93), até aos esforços colonizadores de companhias monopolistas como a Companhia Britânica das Índias Orientais, que se pode definir como um empreendimento logístico que rapidamente se tornou “um corpo político nos seus próprios termos” (Stern 2011, 6).
As discussões sobre a chamada revolução logística iniciada em meados do século XX exploram as continuidades entre a história da logística como arte militar e a sua história mais recente, enquanto meio de administrar o movimento de pessoas e coisas orientado pelo critério da eficiência económica, nos transportes e na comunicação. Nesta medida, o estudo da logística é ensombrado pela tese da militarização da sociedade. A expansão da logística comercial e das infra-estruturas que a acompanham ocorre frequentemente por entre receios de ambições militares e geopolíticas, como no caso do ambicioso projecto de conectividade logística global promovido pelo Estado chinês sob o nome de “Nova Rota da Seda” ou “Iniciativa Belt and Road”. Uma das primeiras coisas que uma análise cuidada de tão ambicioso empreendimento logístico demonstra, no entanto, é que a produção do espaço ligada ao desenvolvimento da logística contemporânea se caracteriza por uma racionalidade bastante diferente daquela que se encontra resumida na noção de “territorialismo”, para pedir emprestado um termo da teoria dos sistemas-mundo (ver Grappi 2016, 153-173). A linha que separa a actividade económica da actividade militar permanece ténue, e os sistemas logísticos contemporâneos não só oferecem um meio de assegurar o fornecimento para a empresa capitalista, como são também essenciais na instituição de formas de segurança geopolítica em rede, destinadas a canalizar e monitorizar fluxos, mais do que a interrompê-los ou bloqueá-los (Cowen 2014).
Ao longo das últimas décadas, a racionalidade económica da logística veio cada vez mais para primeiro plano. A emergência da logística como negócio e prática civil remonta ao período do pós-Segunda Guerra Mundial. A revolução da logística culmina nos anos 1960, quando a introdução de uma abordagem de análise de sistemas à dinâmica dos transportes e da distribuição começou a redesenhar o mundo da produção (Allen 1997). As mudanças ocorridas durante este período e nos tempos que se seguiram incluem a reorganização espacial da firma, a interligação da ciência da logística com a informatização e o design de software, a introdução do contentor de carga [shipping container], a formação de organizações empresariais e programas académicos para a produção e disseminação de um saber logístico, o desenvolvimento de tecnologias de monitorização do trabalho em tempo real, a emergência de cadeias de abastecimento global, e a busca por mão de obra barata nas áreas mais pobres do mundo. A revolução da logística alterou radicalmente a projecção e organização dos espaços económicos. Tornou materialmente possível a reorganização intensiva da produção para lá das paredes da fábrica, assim como o alargamento extensivo das “cadeias de abastecimento” através do globo. Enquanto a “distribuição física” (como era chamada) se debatia com o problema de minimizar custos após a produção, a logística veio a interessar-se pelo “valor acrescentado ao longo dos sistemas de circulação” (Cowen 2014, 24). O novo paradigma da mobilidade derivado da chamada revolução logística vem complicar a fronteira entre produção e circulação. O mito de que a produção parava nos portões da fábrica, contestado pelas teorias e políticas feministas bem como pela celebrada tese da “fábrica social” (Negri 1983), desaba em definitivo face ao evoluir de sofisticados sistemas de gestão que fizeram da prática de encontrar compromissos entre custos de produção e custos de transporte uma ciência mais exacta. Isto lançou as bases para o desenvolvimento de gigantes do inventário como as cadeias de supermercados Walmart ou a Amazon, cujas tecnologias e conglomerados logísticos sincronizam e, em última análise, comandam formas heterogéneas de produção através da ocupação de posições monopolistas na circulação. Para além disso, as novas fronteiras de desenvolvimento da logística, associadas essencialmente aos processos de digitalização, possibilitam e ajudam a desenvolver novas formas de organização do trabalho, esbatendo a distinção entre vida e trabalho no âmbito do quadro distópico de um regime de produtividade 24/7 (Crary 2013), favorecendo o recurso ao high frequency trading nos mercados financeiros globais, assim como a emergência de economias de partilha online e as chamadas gig economies [do biscate, para dar outro nome ao trabalho “freelancer”], e transformando espaços urbanos e “estilos de vida”. O “capitalismo de plataforma” (Srnicek 2017) é facilitado, conduzido e moldado pela logística e a sua capacidade de “apresentar resultados” [delivery rationality].
A logística tornou mais complicada e mais diferenciada a organização do espaço global. Multiplicaram-se as entidades geográficas como zonas económicas especiais e entrepostos logísticos [logistics hubs], para atrair investimento e organizar o negócio da produção global. A produção logística do espaço, como fizemos notar no caso da China e da Iniciativa Belt and Road, gera inúmeras tensões e fricções com a norma geopolítica do Estado-nação – à imagem do que Deborah Cowen descreve em termos de uma transição de “fronteiras nacionais” para “costuras globais” (Cowen 2014, capítulo 2). A investigação destas tensões e fricções é uma das principais tarefas que cabe a um estudo crítico da logística nos dias de hoje, bem para lá de qualquer oposição simples entre geopolítica (o domínio do Estado e das “relações internacionais”) e geoeconomia (o domínio da logística). As implicações políticas da produção logística do espaço têm sido de facto salientadas, nos últimos anos, através da criação de quadros conceptuais como “extrastatecraft” (Easterling 2014 – Extrastatecraft: o poder do espaço de infraestrutura) e “política de corredores” (Grappi e Dey 2015; Grappi 2016). Ao mesmo tempo, a logística contemporânea constitui, em toda a variedade das suas manifestações, um terreno de luta de crucial importância. A difusão global do contentor de carga, por via da generalização dos sistemas de transporte intermodal, foi marcada por lutas de trabalhadores e associada a alterações da geografia económica, incluindo o declínio de portos industriais como New York e Londres e a afirmação do Oriente Asiático enquanto local privilegiado para a produção industrial. A estas lutas, que estão longe de terminar, vem-se juntar o alastrar das lutas nos armazéns logísticos em muitas partes do mundo – no norte de Itália, por exemplo (ver Cuppini et al. 2015) –, assim como as experiências de auto-organização e greves de trabalhadores na gig economy, como as que ocorreram naquele que foi chamado “um verão de greves selvagens na gig economy londrina” (O’Connor 2016). A tentativa de estabelecer conexões entre as lutas de trabalhadores na logística, a sabotagem de projectos logísticos responsáveis pela destruição do ambiente e dos tecidos sociais, e a construção de uma “contra-logística”, constitui uma das principais tarefas para uma política emancipatória adequada aos desafios do presente.
Bibliografia
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Cowen, Deborah. 2014. The Deadly Life of Logistics: Mapping Violence in the Global Trade. Minneapolis: University of Minnesota Press.
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Cuppini, Niccolò, Mattia Frapporti, and Maurilio Pirone. 2015. “Logistics Struggles in the Po Valley Region: Territorial Transformations and Processes of Antagonistic Subjectivation.” In South Atlantic Quarterly 114 (1): 119-134.
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Jünemann, Reinhardt. 1989. Materialfluß und Logistik. Systemtechnische Grundlagen mit Praxisbeispielen. Berlin: Springer.
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Negri, Toni. 1983. Social Factory. Brooklyn, NY: Autonomedia.
Neilson, Brett. 2012. “Five Theses on Understanding Logistics as Power.” In Distinktion: Scandinavian Journal of Social Theory, 13 (3): 323-340.
O’ Connor, Sarah. 2016. “When your Boss is an Algorithm.” Financial Times. September 8. Accessed March 26, 2018. https://www.ft.com/content/88fdc58e-754f-11e6-b60a-de4532d5ea35
Rossiter, Ned. 2016. Logistical Nightmares: Infrastructure, Software, Labour. London: Routledge.
Srnicek, Nick. 2017. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press.
Stern, Philip J. 2011. The Company-State: Corporate Sovereignty and the Early Modern Foundations of the British Empire in India. New York: Oxford University Press.
Van Creveld, Martin. 1977. Supplying War: Logistics from Wallenstein to Patton. Cambridge: Cambridge University Press.
Originalmente publicado em The Encyclopedia of New Geopolitics, Tóquio: Maruzen, 2019, pp. 478-481.
Sandro Mezzadra - Lessons on Logistics
27 e 28 janeiro: 18h - na Sala Zoom do TBA