O Direito de Fuga - PRÉ-PUBLICAÇÃO
We gotta get out of this place If it’s the last thing we ever do We gotta get out of this place
Girl, there’s a better life for me and you Somewhere baby, somehow I know it
The Animals, «We gotta get out of this place» (1965)
1. A fuga, enquanto categoria política, foi sempre encarada com suspeição. Tida como sinónimo de oportunismo, receio e vileza, parece perigosamente próxima da traição, execrada tanto pelo léxico patriótico como pelo socialista. O fugitivo,«que não quer saber do amanhã», como os piratas da Ilha do Tesouro, de Stevenson, encara com repugnância quer o sacrifício quer a abnegação, ou a vontade de acertar contas com a severidade do presente para construir um futuro colectivo, sendo-lhe igualmente estranho o sentido do dever e da responsabilidade que daí decorre. Porquê, então, intitular este livro com a fuga e até, enfaticamente, com o direito de fuga?
Poderíamos evidentemente recordar, o que não seria de somenos nestes tempos de guerra infinita, que ao campo semântico da fuga pertence um conceito como o de deserção, cuja nobreza nos foi ensinada tanto pelo cinema (a partir dos Horizontes de glória, de Stanley Kubrick) como pela própria historiografia (Apologia do medo era o título da introdução escrita por Enzo Forcella, no admirável ano de 1968, a uma famosa compilação de condenações pronunciadas pelos tribunais militares italianos contra os desertores e os «derrotistas» durante a I Guerra Mundial). Não por acaso, nos Estados Unidos da América dos anos 1960, um extraordinário movimento de massas organizava a deserção da Guerra do Vietname vinculando-o a um outro conceito político que mantém relações conspícuas com aquele campo semântico: o de desobediência civil. E umas décadas depois um enorme movimento de fuga – de exit, para empregar a expressão de Albert O.Hirschman (1970 e 1993) – da República Democrática Alemã despoletou os eventos que conduziram ao fim do socialismo real.
Mas a fuga é também, na cultura do Ocidente, viagem, descoberta, sede de conhecimento e recusa do que Maiakovsky denominava «a banalidade do quotidiano»: da experiência paradigmática de Ulisses aos jovens jesuítas italianos que nos séculos XVI e XVII foram acometidos pelo «desejo das Índias» (Roscioni 2001), das diversas gerações que perseguiram – on the road – um sonho de liberdade às temerárias vicissitudes cinematográficas de Telma e Louise, a figura do fugitivo viu-se carregada de significados completamente diferentes dos que se adensam em torno da figura do cobarde. E por fim: como não recordar que na própria origem do Ocidente existe um poderoso mito de fuga, o do êxodo bíblico, que representou durante séculos uma metáfora dos processos de libertação e de revolução (Walzer 1985), além de ter alimentado a sagrada experiência (Bonazzi 1970) da construção de um novo mundo na América, forçada a deixar para trás a corrupção da velha Europa?
2. Existe certamente algo de tudo isto – e existe em particular uma determinada leitura da categoria de êxodo que foi amadurecida no pensamento crítico italiano dos últimos anos1– a montante do direito de fuga ao qual serão dedicadas as próximas páginas. Ao mesmo tempo, todavia, a fuga é aqui entendida num sentido menos ambicioso e mais habitual. Na base de uma experiência histórica específica, as migrações dos camponeses alemães das províncias da Prússia Oriental no final do século XIX, bem como da interpretação que delas fez o jovem Max Weber (interpretação a cuja reconstrução é dedicado o primeiro capítulo), este texto pretende em primeiro lugar assinalar a dimensão subjectiva dos processos migratórios: ou seja, aquela dimensão que, destacando destes processos a sua natureza de movimento social, impede a sua redução – ainda hoje frequente, implícita em metáforas como «aluvião» ou «catarata» migratória – a processos de tipo «natural», automaticamente determinados por causas «objectivas» de índole económica ou demográfica. No gesto através do qual o migrante se subtrai às coações exercidas pela estrutura económica, social e política do seu país de origem, é difícil vislumbrar – ao contrário do que outros tentaram fazer reflectindo em torno da categoria de êxodo – o paradigma acabado de uma nova modalida- de de acção política: quanto muito poderá identificar-se nisso um sinal cujos significados se procurará sondar na sociedade de acolhimento do próprio migrante; ao mesmo tempo, porém, a defecção anónima dos migran- tes, como se irá procurar mostrar no segundo capítulo, estabelece uma linha de continuidade com os compor- tamentos de subtracção ao despotismo, tanto do siste- ma de plantação como do fabril, que constituem o lado subjectivo da mobilidade do trabalho ao longo de toda a história do modo de produção capitalista (Moulier Boutang 1998).
Aplicada aos migrantes, a categoria de direito de fuga cumpre assim dois efeitos maiores. Por um lado, contrariando a redução, hoje em dia muito em voga, do migrante ao «exponente típico» de uma cultura, de uma «etnia», de uma «comunidade», tende a destacar a individualidade, a irredutível singularidade das mulheres e dos homens que são protagonistas das migrações: longe de poderem ser encaradas enquanto pressupostos naturais da identidade dos migrantes, «cultura» e «comunidade» revelam-se assim como construções sociais e políticas específicas, tornando-se necessário interpelar os seus processos de produção e de reprodução. Por outro lado, é precisamente esta insistência na singularidade concreta dos migrantes que nos permite iluminar o carácter exemplar da sua condição e da sua experiência: definida no ponto de intersecção entre uma poderosa tensão subjectiva de liberdade e a acção das barreiras e confinamentos a que correspondem determinadas técnicas de poder, a figura do migrante concentra em si, e dito de outra forma, um conjunto de contradições estruturalmente inerentes à liberdade de movimentos celebrada como um dos eixos decisivos da moderna «civilização» ocidental.
É ainda evidente, além disso, que a análise desenvolvida neste livro obedece a uma intenção política bastante precisa. A ênfase aqui colocada na subjectividade dos migrantes, nos elementos de «riqueza» de que estes são portadores, propõe-se contrariar a imagem do migrante enquanto sujeito débil, marcado pelo espectro da fome e da miséria, necessitado acima de tudo de cuidados e assistência, imagem amplamente difundida nos últimos anos, em particular em Itália. Que fique claro: em torno desta imagem desenvolveram-se, no quadro do voluntariado laico e católico, experiências extremamente nobres de solidariedade para com os migrantes, que desempenharam frequentemente um papel essencial ao oferecerem pontos de referência no interior de um tecido social desertificado pela crise de outras «agências de socialização» – a começar pelas do welfare state. Do ponto de vista teórico, porém, é necessário assinalar que esta imagem se presta a reproduzir lógicas «paternalistas», a reproduzir uma ordem discursiva e um conjunto de práticas que relegam os migrantes para uma posição subalterna, negando-lhes qualquer oportunidade [chance] de subjectivação. Assim como, num plano distinto ainda que contíguo, a ênfase sobre o «direito à diferença» que caracteriza o senso comum «multiculturalista» partilhado por grande parte da esquerda política e social acaba frequentemente por operar, facilitando e favorecendo uma representação pitoresca dos migrantes (na qual a «cultura» é frequentemente apresentada como um elemento de «folclore»), uma substancial remoção da pluralidade de posições e de problemas que definem a figura do migrante na sociedade contemporânea.
Dito isto, convém todavia igualmente advertir que pôr em relevo a subjectividade dos migrantes, da mesma maneira que obviamente não implica esquecer as causas «objectivas» na origem das migrações, de modo algum significa ignorar até que ponto a sua condição é profundamente marcada por condições de privação material e simbólica e pelos processos de dominação e exploração que lhes subjazem, além de dinâmicas de exclusão e de estigmatização específicas (Dal Lago 1999). O ponto de vista a partir do qual este livro foi escrito, e ainda que não lhe sejam estranhos contributos provenientes dos «estudos culturais» e dos «estudos pós-coloniais» anglo-saxónicos, mantém contudo uma distância de segurança relativamente a uma atitude assumida frequentemente de forma acrítica no interior desses filões de pesquisa; ou seja, relativamente àquela perspectiva teórica que considera o migrante como uma figura paradigmática do desenraizamento e das características «híbridas» do sujeito pós-moderno, que já não se encontra vinculado a qualquer tipo de raiz e é por isso livre de atravessar, como um nómada, os confinamentos entre as culturas e as identidades. Mesmo quando se coloca em destaque, como acontece no terceiro capítulo, o efectivo funcionamento de processos de «hibridização» e de «deslocamento» cultural no campo de experiência definido pelas migrações contemporâneas, não se esquece a forma como esses processos recorrentemente têm um impacto catastrófico, literalmente catastrófico, sobre as mulheres e os homens que os vivem.
3. O que aqui definimos enquanto traços exemplares da condição e da experiência dos migrantes aparece sob uma luz efectivamente específica no nosso tempo, no tempo da globalização. Vale a pena avisar que o modo em que esta última é aqui considerada guarda significativa desconfiança face a todas as suas imagens excessivamente simples e lineares, habitualmente veiculadas pela insistente referência a fórmulas como «neoliberalismo» e «pensamento único» (Mezzadra e Petrillo 2000). Não se trata, evidentemente, de negar que estas fórmulas contêm um núcleo de verdade fundamental, mas de sublinhar que de um ponto de vista analítico resulta muito mais produtivo tentar compreender de que forma os processos de globalização, ao investirem simultaneamente sobre a economia e a cultura, a política e a sociedade, as relações internacionais e as formas de guerra, criam um quadro profundamente instável e contraditório. Considerados no seu conjunto, estes processos poderão ser reconduzidos à figura do trespasse [sconfidamento] (Galli 2001, p. 133), de um displacement que não se limita a colocar em causa as configurações dos confinamentos consolidadas a nível geopolítico e geoeconómico, mas que tende a baralhar o próprio plano das «identidades» e do agir quotidiano.
Encaradas deste ponto de vista, as migrações permitem depois – é esse o tema sobre o qual se debruça especificamente o quarto capítulo do livro – lançar luz sobre uma outra globalização, ou sobre uma genealogia inconfessada dos processos contemporâneos de globalização. Foi recentemente sustentado, de uma forma bastante convincente, que estes caracterizam uma fase histórica na qual o domínio do capital se expandiu à escala planetária constrangido pela necessidade de seguir o próprio ritmo das lutas proletárias e anti-imperialistas do século XX (Hardt e Negri 2000): o internacionalismo comunista, as revoltas anticoloniais, a insurreição global de 1968, constituem neste sentido passagens fundamentais da «história secreta» da globalização, dese- nhando simultaneamente uma perspectiva de unificação do planeta de cunho radicalmente diferente da que, sob a he- gemonia do capital, articulou a sua progressão ao longo das últimas duas décadas. Ao mesmo tempo, ainda que num plano bastante diferente, os novos movimentos migratórios representam um formidável laboratório daquilo que, retomando uma fórmula utilizada para definir a acção do movimento global que se foi formando e reforçando entre Seattle e Génova, podemos chamar de «globalização a partir de baixo». E o facto de as «jornadas de Génova» terem sido inauguradas, a 19 de Julho de 2001, por uma grande manifestação de migrantes, constitui a melhor indicação do sentido em que aquele próprio movimento deve actuar de maneira a colocar-se à altura dos desafios colocados pela globalização capitalista (Mezzadra e Raimondi 2001). (…)
- 1. Cf. em particular Castellano 1991, Virno 1994 e De Carolis 1994. Diversa, mas igualmente de grande interesse, é a leitura proposta em Mazzi 2001.