Canções comerciais
Agora que, por diversas razões, não consigo ouvir os novos discos dos novos artistas – passam-me distantes e silenciosos – deixo-me levar pela música dos pequenos e grandes espaços comerciais. Não será o hábito mais saudável ou até venerável. Afinal, dizem-me, toda a música ambiente não é outra coisa que a melíflua melopeia do capitalismo. Não discordo, mas sempre que a oiço tendo, com frequência, a distrair-me. Esqueço-me do que ali fui fazer e, então, lembro-me.
Num hipermercado de uma grande marca, ecoavam pelos corredores canções dos GNR e dos Delfins. Dunas, Efectivamente, Um Lugar ao Sol, Soltem os Prisioneiros. A selecção não era aleatória, traía uma clara origem temporal. Em segundos, fui transportado para os finais dos anos 80 e aos inícios 90. Vi rostos e roupas e disse nomes quando ainda eram jovens. Os GNR não eram a minha banda, note-se. E de onde estou, já na fila, duvido que venham a ser a das raparigas que recebem os clientes com o repetido boa tarde. Cansadas, com o tédio nos lábios e alguns anseios nos olhos, vão passando as embalagens pelos ecrãs. Nenhuma ouço cantar baixinho os refrões das canções que encheram o Estádio de Alvalade. E quando António Variações chega de cima, para cantar pela voz de Camané, percebo que estamos os dois, eu e ele, sozinhos.
Há cerca de um mês, num supermercado de uma ilha portuguesa encontrei música de origem caribenha. Ao som do congo e do piano, as vozes masculinas e femininas bailavam. Salsa? Rumba? Merengue? Cumbia? Associei os sons às origens das raparigas que trabalhavam na loja. Simpáticas e gentis, esclarecem-nos as dúvidas num português cheio de espanhol. Apontaram num mapa a localização de uma praia e indicaram-nos num folheto o nº do autocarro para o Funchal. No fim, satisfizeram-me a curiosidade. “Sim, nascemos na Venezuela, e agora vivemos aqui”. Já no dia seguinte, a música que envolvia as prateleiras era outra: metálico, acelerada, electrónica. Reggaeton?, perguntei-me algo surpreendido. Ali, aquela mutação do reggae parecia-me ganhar um sentido que antes não apreendera. Voltei às perguntas, com renovada curiosidade: “São vocês que fazem a selecção destas canções, que escolhem esta música?”. Com a simpatia do dia anterior, uma das raparigas abanou a cabeça. “Não, não. A música é da própria da loja. Não é nossa”.
Não faltam coincidências felizes e infelizes nestes passeios musicais. Ontem, já no continente, enquanto espreitava vestuário, voltei a ouvir uma canção de 1985. É a terrível e infecciosa Life is Life dos Focus, um dos maiores êxitos pop de uma banda austríaca. Naquele ano, em que Alemanha e Áustria se tornariam efémeras potências pop, a minha relação com os discos ainda não derrubara a puberdade. E a canção que Maradona imortalizou nas imagens de um vitorioso aquecimento, não seria mais do que um invólucro vazio não fosse acontecimento que marcaria a minha família. Em 1985, as minhas tias tornar-se-iam emigrantes portuguesas na Suíça, país distantes, misterioso, moderníssimo, onde os picas dos comboios usavam brinco e os jovens faziam skate. Depois de juntarem dinheiro suficiente para o curso na universidade portuguesa, voltaram de Genebra. Era o Verão de 1986 e, nas suas malas, entre outros singles lá estava ele: Life is Life dos Focus.