A minha música negra

Durante anos ouvi pouca música negra. O termo sempre me pareceu desnecessário, quase sem sentido, distante. O que era (a) música negra? Com o tempo fui admitindo a existência de uma certa distância. Talvez, culpa do gosto. Lembro-me, por exemplo, de sentir indiferença em relação à música de Bonga, do Duo Ouro Negro, de Cesária Évora, de Bana. Mesmo o jazz, nas suas manifestações mais vanguardistas, era um lugar desconhecido. Fora as razões do gosto, raramente pensara na música negra enquanto forma musical específica ou expressão cultural e estética com uma história sua.

Havia uma razão, contudo, que, passada a adolescência, podia explicar o meu alheamento. Talvez não fosse a única, ou a mais profunda, mas identificava-a logo que entrava num bar-dançante ou numa discoteca: não sabia (como) dançar e por isso detestava dançar. Ora, uma boa parte da música negra era música que dançava. Assim, sempre que ela aparecia, meneando-se de sorriso aberto, gozando a gravidade com o corpo, eu logo me afastava, muito convencido da minha invisibilidade. Na verdade, a minha dificuldade em dançar explicaria o desinteresse ou, até, a rejeição do baile, dos muitos desejados slows, da dança, do corpo a corpo, ou do corpo diante do corpo.

Houve uma noite em que tive uma epifania bastante modesta, mundana, corriqueira, quase kitsch, assumo. A minha namorada, que retirava muito prazer da dança, e que no passado tinha sido uma irrequieta ginasta, deu-me as mãos ao som do I Will Survive. A canção era interpretada por uma mulher negra, Gloria Gaynor, e o objetivo era dançar. As badaladas para o ano 2000 tinham soado há menos de um minuto e deixei-me ir: dancei na emoção contida do convite dos olhos e das mãos.

Não sei se aquela noite significou de facto uma passagem. Gostava de muitos escritores de canções, guitarristas, vocalistas, baixistas de origem africana. Alguns tocavam em bandas de indie-rock ou assinavam, sozinhos, os seus discos. Mas não eram muitas as bandas onde encontrava pessoas de origem africana: A.R. Kane, Fishbone, a primeira encarnação dos Faith No More, Living Colour, Throwing Muses, Bad Brains, Love, Public Enemy, Dead Kennedys, Jimi Hendrix, Four Tops, Richard Hell and The Voidoids. Faltariam mais alguns nomes num conjunto eclético, e bastante focado, com três excepções (Public Enemy, Four Tops, Run-D.M.C.), no rock, no punk ou no indie-rock. Facto curioso era que em alguns destes conjuntos contavam-se apenas um ou dois músicos negros. Seja como for, tocado pelo sentimento de uma bem-aventurança, observei nas fotografias o retrato de uma sociedade e cultura multirraciais. Não que essa imagem pudesse apagar a violência do racismo e da discriminação ou aguçar a minha curiosidade sobre os maiores géneros da música negra. Não, isso não aconteceria ainda. Agradava-me, sobremaneira, ver as imagens, mas o contentamento podia ser considerado egoísta: pessoas não-brancas gostavam da mesma música que eu. Eram afinal meus amigos no que ao gosto dizia respeito. 

Mas que relação estabelecera eu com a soul, com o disco, com o funk, com o hip-hop ou, mesmo, com o techno? Eram todos géneros dançáveis, surgidos na sequência do que considerava ser consequência de uma divisão: nos finais dos anos 60 do século XX, a música popular começara a replicar o abismo social, cultural e político que separava os Estados Unidos da América. Uma hegemónica, branca, racista, homofóbica, conservadora. A outra, afro-americana, maltratada, desprezada, excluída, pobre.

Uma fissura tinha-se aberto, parecia-me àquela distância, e não pararia, temia eu, de aumentar com o tempo. Já reflectira sobre o facto de as duas músicas parecerem cada vez mais desencontradas, quase incompatíveis, estranhas uma à outra, como se habitassem no mesmo país em territórios diferentes. Embora se pudessem considerar meias-irmãs, uma era branca, a outra negra. Nessa época, procurava observar e curar outras feridas. E admito que as de Portugal não eram, para mim, ainda essas. Já os Estados Unidos, atraentes, estavam longe. A questão racial, inseparável daqueles do país e daqueles géneros, também.

Anos antes de dançar com Gaynor, tinha visto dois videoclips de dois trios femininos de origem-africana. Não procurei saber, quando os vi pela primeira vez, de onde vinham as canções. Ouvi-as apenas. A mais recente, em termos temporais, tinha-a descoberto num filme, antes de a voltar a ouvir poucas horas antes de sair para a Faculdade: Be My Baby, das The Ronettes. Não lhe chamei de música negra, mas música de amor. Naquela mesma tarde, com a voz de Ronnie Spector, encontrei no autocarro uma rapariga. Sentado, olhava pela janela, quando ela me apareceu da mancha irrequieta de passageiros. “Olá, estás aí.” Nunca mais escutei um olá assim, espontâneo e a mim apenas dirigido. O encontro repetir-se-ia noutros sítios e lugares, sem continuação, mas aquela rapariga seria a canção Be My Baby. E vice-versa. Um baque aparecera-me, entretanto: teria roubado a canção à tristeza escondida de Ronnie para que a outra rapariga, presumivelmente não africana, ali a pudesse receber, mesmo sem a ouvir? Era apenas uma canção, e só uma canção, ou tinha-a roubado da misoginia, do racismo, da violência maníaca e homicida do ex-marido de Ronnie, para a oferecer a outra rapariga, mais tangível, mas presumivelmente alheia ao sofrimento da cantora?

The RonettesThe RonettesAnos antes, lembrar-me-ia, eu vira e ouvira sem a mesma candura, com uma emoção diferente, outro videoclip. Era bem mais jovem, teria 13, 14 anos, a puberdade suspirava já pelo dealbar da adolescência. No lugar do enamoramento despertado por Be My Baby sentira algo próximo de uma volúpia, de um desejo que não sabia interpretar quando vi as The Pointer Sisters a cantar Jump (For My Love), grande sucesso r&b/soul dos anos 80. O videoclip era muito diferente do das Ronettes, Na verdade, era um verdadeiro videoclip, enquanto aquele do girl group dos anos 60 era uma gravação (originalmente, assim julgava, a preto-e-branco) de um concerto num programa televisivo. 

Jump (For My Love) tinha cores e mostrava três mulheres negras, Anita Pointer, June Pointer e Ruth Pointer. A canção abria-se com o compasso da bateria electrónica, introduzindo, depois, cada mulher em planos separados. Todas fitavam a câmara, de semblantes sérios, poses confiantes, olhares desafiadores. Não se riam muito. Uma cena parecia servir de contraponto àquela entrada inesperada: o salto, visto em slowmotion, que aquelas irmãs davam, levantando os vestidos, a cima dos joelhos. Eu podia ver as suas coxas que as meias de seda negra cobriam e revelavam. Nada mais que vislumbres, pequenas partes.

A música tornar-se-ia mais divertida com sorrisos e outros esgares suaves à medida que cantavam e dançavam. A aparente arrogância desaparecia envolvida no calor sexual e sensual dos versos e dos olhares lascivos de June. Não era uma canção de amor – como Be My Baby – mas de fazer amor. Os versos não podiam ser mais explícitos na sua subtileza e o movimento das irmãs, quando levantavam as saias, parecia tão púdico quanto atrevido, tão artificial quanto genuíno. Teria o realizador do videoclipe pedido para dançarem assim? Ter-se-iam elas deixado levar pela dança, pela música?

Há cerca de dois, três anos quando comecei a ouvir toda a música negra que ouvira e não ouvira, voltei ao videoclip e dei-me conta de um curioso detalhe. Com movimentos e gestos, que sempre me pareceram dirigidos, Jump (for my love) incluía, retiradas de documentários ou emissões televisivas, imagens em movimento de homens afro-americanos em provas de salto em comprimento e salto triplo ou a encestarem pontos em jogos de basquetebol. Eram eles, não eu, o objecto do presumível desejo das irmãs. A dança, na forma de um videoclipe, parecia celebrar, mais sinceramente, a beleza do corpo negro na música negra. 

Hoje, sempre que revejo o videoclipe ainda me pergunto: para onde olham as irmãs? Para mim? Para um espectador invisível que se esconde nas minhas costas? Para o olho da câmara? Para o homem negro? Para quem cantam? Com querem dançar? A não ser nos dias de semana em que, de madrugada, sigo para Lisboa, no autocarro das 6h45, não me considero “um negro”. Por outro lado, ao rever o videoclip, não consigo evitar a concupiscência de outrora, agora menos inocente. 

Muitos anos já tinham passado desde o primeiro encontro com as Pointer Sisters, quando o meu pai nos revelou – num serão de memórias – que tivera “aventuras” com mulheres africanas nos anos da sua comissão em Moçambique, onde foi militar do regimento de Transmissões. Não se alongou, porém. Foi-se perdendo nas memórias das canículas do Alto Alentejo ao ar livre, dos eléctricos da Avenida Almirante Reis, das cervejarias do Rossio para onde seguia depois do serviço nos Correios do Aeroporto. Que aventuras teriam sido? Teria o meu pai, homem bom, forçado alguma mulher africana? Teria “brincado”, sob o efeito de alguma bebida, com uma mulher africana? Nunca obtivera um relato verosímil, com detalhes, do que acontecera. Já ultrapassara os 80 anos, as recordações enevoavam-se-lhe e, se a sexualidade não era um tabu, o sexo era uma Medusa que não se olhava dentro de casa.

Desconhecia a razão porque associava o videoclip de Jump for (My Love) às vagas alusões do meu pai aos tempos passados nas cubatas. Também eu cedera, no passado, ao estereótipo de que a mulher negra se entregava facilmente aos homens, corpo sexualizado para a cobiça e o usufruto do macho branco? Mas não tinham as irmãs Pointer apropriado o cliché racista e machista para o devolver com a panache certa, com a força da sua sexualidade? 

Nunca apreciei as palavras branco e negro. Sempre me pareceram redutoras, opacas, feias. As palavras preto e preta, essas, nunca as ouvi, em casa, da boca do meu pai. Mas quando comecei a namorar a minha mulher, lembro-me do que uma das minhas tias terá dito: a tua namorada parece mulata ou filha de pais mulatos. A irmã da minha namorada tinha, de facto, traços africanos mais visíveis, pelo que comentei, a meio das nossas conversas de namorados, debaixo das arcadas, que ambas talvez tivessem antepassados negros. A possibilidade agradava-me. A ideia de mistura era-me bem-vinda. Simplesmente, não era para mim um assunto, um tema. 

Uma década antes daquele comentário, a minha tia mais jovem tornara-se  fã – no sentido de fanática – de Michael Jackson. Depois de James Dean, era agora Michael o seu ídolo. Cantava de cor as músicas mais populares de Thriller e corria para a televisão para ver os passos de dança da estrela pop. A avó, uma mulher de bom-coração, mas nostálgica dos outros tempos – por razões que não eram apenas políticas ou religiosas – não simpatizava com aquele amor separado pelo ecrã e a geografia. A música era-lhe estranha e Michael também. Não me recordo de lhe ter ouvido o adjetivo “preto”, embora tenha a certeza que, se interrogada de chofre, não acolheria, feliz, a notícia de um namoro ou um casamento inter-racial. Mas se alguma vez proferiu a palavra, a minha tia não fez caso. O Michael era o Michael. 

Naquele ano, a minha tia compraria o álbum BAD e ouviria, rendida, vezes sem conta, as suas canções. Entretanto, muitos tinham-se dado conta que Michael Jackson parecia embranquecer, ganhar traços mais finos, mais caucasianos, como se diz nos USA. Isso já era evidente na capa do discos e dos videoclips de BAD e merecia da minha avó algum espanto: “Mas ele está a tomar alguma coisa, não está? Não sei como gostas de um homem assim. E essa música!”. Não eram comentários agressivos, soavam a lamentos tristes (uma tristeza profunda levara há anos a minha avó). Entretanto, a minha tia ia-se afastando do seu Michael. Não porque este se tornara, aos seus olhos, uma estrela menos incandescente, mas porque a idolatria da pop começara a apagar-se. A adolescência musical, a paixão da jovem fã havia chegado ao fim com a figura de Jackson. 

O artista da música negra que eu considerava mais ambíguo era, sem dúvida, o Prince. Nem por caso o seu apelo escapava às minhas tias e aos meus tios. Não era tanto a música que me interessava – demasiado comercial – mas a imagem do artista. Homem, mulher, algo entre? Heterossexual, bissexual, homossexual? Negro, branco, mulato, latino? O facto de aparecer de tronco nu, acariciando-se, em poses eróticas, e não só em fotos promocionais, deixava-me circunspecto. Lembro-me de um nu sobressair de umas revistas espalhadas na montra de uma já desaparecida loja. Naqueles tempos, eu já sabia quais eram as minhas preferências sexuais e amorosas, mas aquela aparição em papel deixava-me desacertado. Um videoclip da banda do músico em que uma guitarrista e uma teclista dançavam, coladas uma à outra, numa lascívia que a música aviva, deixava-me mais confuso. Musicalmente, o que Prince fazia interessava-me pouco. O som era demasiado sintético e luxuriante, indefinível, uma amálgama com solos de guitarra, falsetes, teclados, vozes e irrupções de funk e soul, géneros que não me despertavam qualquer curiosidade. 

LoveSexy, Prince LoveSexy, Prince Mas seria Prince música negra? A julgar pelos encómios que muitas artistas de r&b vieram a dirigir ao artista após o seu desaparecimento, diria que sim. Mas seria isso de facto importante? O que vim a considerar surpreendente foi, já entrara nos 50 anos, ter começado a gostar da música de Prince. Os meses de confinamento terão, quiçá, contribuído para a solitária redescoberta (ao ponto da minha mulher me ter dito que, afinal, eu gostava de música comercial). 

A minha relação com o autor de LoveSexy iniciada na vitrine daquela loja seguiu guiada por duas deliciosas coincidências, tão deliciosas que as considerei ofertas da Fortuna. Numas férias de Verão, aluguei com a família uma casa de férias em Mação, no interior do concelho de Santarém. Depois da recepção, realizada por uma senhora que tratara dos quartos, entrei numa ampla sala onde vi um gira-disco e uma colecção de discos. Imprudente, para não dizer desrespeitoso, retirei-os um a um, da prateleira. Em pouco tempo tinha no meu colo a colecção completa dos discos de Prince. Não queria acreditar na beleza do acaso. Não cheguei a pôr os álbuns a tocar, mas telefonei à proprietária da casa. Perguntei-lhe se não me venderia um ou dois álbuns. A resposta foi-me dada pelo marido numa gentil e lacónica mensagem electrónica: “Obrigado pela oferta, mas esses discos marcaram muito a juventude da Joana e ela continua a ouvi-los regularmente. Não os vende a ninguém”. A resposta, a declinar o pedido, não me desiludidiu. Sorri. Ainda os tive nas mãos, uma última vez, antes de os voltar a arrumar na estante. 

Não cheguei a comprar nenhum disco de Prince, mas o filho de Mineannopolis passou a fazer parte do meu heteróclito panteão. Talvez sempre fizera. Dois anos depois, e a propósito da música negra dançar melhor do que a música branca, descobri que Prince tocara a versão acústica de uma canção de um grupo com que eu crescera. A canção era Train in Vain (Stand By Me) dos The Clash. Coincidência? Talvez não fosse mais do que, ao meu ouvido, música. Música negra e branca?

Sly and The Family StoneSly and The Family Stone

De Prince a Sly and The Family Stone foi um pequeno passo atrás. Ou seria para a frente? Um dia, pus a tocar no gira-discos Billie Holliday e Aretha Franklin e adormeci em paz, embalado pela voz das mulheres negras, com a violência incendiária dos EUA ao fundo e à volta. Quando acordei, lembrei-me de tocar uma colectânea de êxitos de Sly & The Family Stone, banda que, eu sabia bem, era assumidamente multirracial. Estanquei, estremunhado ainda, na audição de Everyday People. Não adormeci. Sentei-me, tomado pelas palavras e os ritmos. Sorvi o grito de Sly Stone e acolhi, entusiasmado, o “na-na na-na boo-boo” de Rose Stone. Hino à harmonia racial, social e étnica, Everyday People tornou as minhas tardes mais coloridas, pacíficas e alegres. Agarrei-a pela cintura, dancei com ela sem me mexer. E comecei a cantá-la, os lábios levemente abertos, perdido diante do último verso desta sequência: I am no better and neither are you. We’re all the same, whatever we do, You love me, you hate me, You know me and then, You can’t figure out the bag I’m in. Sim, foi em You can’t figure out the bag I’m in que o meu ouvido ficou a bailar.

Everyday People Everyday People

por José Marmeleira
Palcos | 18 Agosto 2024 | Gloria Gaynor, Michael Jackson, música negra, Prince, Sly and The Family Stone