A descolonização continua
Frontal e incisiva, a artista recorda a existência, nos anos 90, de um contexto artístico avesso ao debate cultural sobre tudo o que estivesse relacionado com África: “Os artistas estavam virados para a Europa, olhavam para o Ocidente na esperança de conseguir um lugar na cena artística internacional. O conteúdo preferido para as obras de arte situava-se nas áreas da filosofia e da poesia e eu não me identificava com nenhuma delas. As questões em torno da história colonial portuguesa ou do chamado processo de descolonização eram quase tabu (…). O discurso pós-colonial era tratado quase como uma preocupação fora de moda. Isso era chocante para alguém que acabara de chegar de um meio fortemente político como África do Sul.”
Um percurso muitas vezes solitário foi o que restou naquela década à artista, que entretanto já apresentara em 1997, na Bienal Internacional das Caldas da Rainha, Amnésia (que seria exposta, também, no Centro Cultural de Belém). Reunindo um televisor onde se viam imagens de Moçambique nos anos 60 e 70, cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro e cadeiras da sua antiga casa, despertava nos espectadores uma curiosidade que, aos poucos, se ia tornando embaraçosa. Ao fim de alguns sorrisos, o mal-estar instalava-se.
Em A Tendency to Forget (até 11 de Outubro) a artista incita-nos a questionar a vizinhança, em Lisboa, do Museu Nacional de Etnologia com o edifício onde, até ao 25 de Abril, funcionava o Ministério do Ultramar (actual sede do ministério da Defesa), ao qual Salazar dava a maior relevância
Nos anos seguintes, a artista continuaria a trabalhar e a expor, com o apoio e incentivo de estudiosos como Manuela Ribeiro Sanches e de comissários como José António Fernandes Dias e Pedro Lapa, em galerias (Módulo e Luís Serpa) e outros espaços. E a sua abordagem ia explicitando referências que dialogavam com a história da colonização de África e os acontecimentos que se lhe seguiram. Em instalações, fotografias e filmes, as narrativas do modernismo e do minimalismo cruzavam-se com a descolonização, a exploração do continente africano pelos europeus, a arquitectura colonial, o pós-colonialismo.
Um percurso politizado
A partir de 2000, a internacionalização do trabalho de Ângela Ferreira desenvolve-se em colectivas e individuais na Europa, na África do Sul, e no México; em 2007, representa Portugal na Bienal de Veneza. O contexto, entretanto, dava sinais de mudanças, de movimentações. Vasco Araújo, José Maia, João Pedro Vale, Filipa César, Manuel Botelho, Mónica de Miranda, Catarina Simão ou Francisco Vidal começavam a trazer para os seus trabalhos ressonâncias e significados que remetiam para tópicos que não eram estranhos a Ângela Ferreira. Depois da literatura e do cinema, a arte contemporânea portuguesa parecia disposta a interrogar a memória e o conhecimento que os cidadãos tinham do seu passado colectivo mais recente.
Nesse processo, Ângela Ferreira foi determinante, considera o programador cultural António Pinto Ribeiro. “Apareceu a trabalhar sobre temas que eram desconhecidos e, mais até, desconsiderados no panorama artístico português. Desse ponto de vista, foi pioneira, uma excepção notável. Vinda da África do Sul, chegou nos anos 90 com instrumentos teóricos que estavam muito à frente dos usados na época pelos artistas portugueses. Ela foi fulcral para a problematização destas questões.” O comissário e crítico recorda-se de um momento que confirmou essa singularidade: a exposição don’t mess with mister in-between, realizada na Culturgest, em 1996. “Lembro-me bem, foi comissariada pela Ângela [Ferreira] e pela Ruth Rosengarten e fazia a apresentação de mais de uma dezena de artistas sul-africanos. Chamou-me logo a atenção o aparelho conceptual usado, com textos e teorias que, entre nós, os académicos das Belas-Artes só quase 20 anos depois viriam a reconhecer.”
Para Manuela Ribeiro Sanches, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde dirige o Centro de Estudos Comparatistas, o momento foi outro: “Vi Amnésia no final dos anos 1990 no CCB e fiquei admirada e seduzida pela forma complexa como abordava o passado colonial, sem autocomplacência. Introduziu o tema, de um modo particularmente complexo, com muitas afinidades com a perspectiva pós-colonial, lembrando as desigualdades, mas também as interdependências que existem entre antigos colonizadores e colonizados.” António Pinto Ribeiro lembra que a artista tinha vantagens em relação aos seus pares portugueses. “Por um lado, havia absorvido os debates em torno do pós-colonialismo, detinha uma forte formação teórica; por outro, tinha um conhecimento da arte subsaariana contemporânea.”
Mas, a compasso das vantagens, verificaram-se óbvios desencontros. “Depois da Revolução de Abril, os aristas viravam-se para a Europa e os Estados também, em busca de um contacto com a arte internacional. E viraram as costas ao que acontecia noutras regiões, como África.” As razões são variadas: “Existia uma dimensão traumática provocada pelo modo como a independência tinha sido representada”, aponta ainda Pinto Ribeiro. “Mas também não creio que estivessem intelectualmente disponível para tratar os temas. Não tinham ferramentas para se confrontarem com eles.” O trajecto de Ângela Ferreira desvelava outra condição. Conhecera uma forte politização na África do Sul, em plena era do apartheid. Estava desperta para a questão do passado colonial. “Nós queríamos ser europeus pós-modernos, desembaraçar-nos desse lastro que, contudo, nos unia a outros passados coloniais e a outros presentes pós-coloniais europeus”, refere Manuela Ribeiro Sanches. “Por isso, introduzir, nos anos 90, o tema do passado colonial ou passou despercebido ou deu origem a equívocos. Essa foi a década da viragem para a Europa e a do multiculturalismo e da mestiçagem, sem que a herança luso-tropicalista fosse questionada, sem que se reconhecesse que esses fenómenos eram característicos da condição pós-colonial.”
Outro olhar, apesar da neblina
Hoje, sem prejuízo da heterogeneidade das motivações e dos projectos, parece difícil negar que a questão colonial portuguesa e as realidades pós-coloniais se tornaram apenas mais um tópico, entre outros, um objecto de pesquisa sujeito a um necessário e natural olhar crítico. Refiram-se, como exemplos, a exposição colectiva Ilha de São Jorge, patente até ao próximo domingo no Hangar, um centro de investigação artística (situado no bairro da Graça, em Lisboa) sensível às problemáticas das migrações, das relações entre África e Portugal ou do multiculturalismo. Ou a apresentação, em finais deste mês, deRetornar – Traços de Memória na Galeria Municipal, sobre a memória do retorno e do império na sociedade portuguesa contemporânea, com trabalhos de José Maia, fotografias de Alfredo Cunha e a curadoria de Elsa Peralta.
“Houve um desvio do olhar para as questões coloniais e pós-coloniais e para a realidade artística em África”, comenta o crítico. “Há outras causas que podem explicar isso. Sugiro duas: a influência da música africana, nomeadamente de Cabo Verde, da África do Sul, do Mali, que foi um veículo para um outro olhar sobre África. E a exposição Africa Remix que entre 2004 e 2006 mostrou uma arte africana pós-colonial em várias cidades europeias. Creio que muitos artistas portugueses, afro-descendentes ou não, a terão visto.” Ainda assim, para António Pinto Ribeiro o cenário está longe de ser o ideal. “Uma abordagem profunda ao período colonial ainda está por fazer nas artes visuais, ao contrário do que tem acontecido no cinema e na literatura. Há poucos textos, pouca sustentação teórica. Não sei se podemos falar de uma comunidade em torno destas questões, ou até falar de um tema, de um sujeito. As coisas vão surgindo de forma episódica.”
Uma dedução deve ser feita, no entanto. Os artistas surgidos nas últimas décadas parecem ter uma distância que outros não tiveram. Podem olhar para os acontecimentos com uma capacidade analítica inédita. “Sim, desse ponto de vista é mais fácil. Mas continuam a ter dificuldades no 0acesso à documentação, aos textos. Farão um trabalhado mediado por outras memórias. Permanece uma invisibilidade, por exemplo, sobre a arte africana realizada no período colonial. Falta sedimentações teórica, conhecimento sobre os contextos em que os artistas emergem, e aqui incluo os artistas africanos e afro-descendentes, sobre a energia que os move. Caso contrário, ficamos apenas com imagens.” A mesma inquietação estende-se ao debate sobre o “retorno”. “Desconheço estudos, qualitativos e quantitativos, sobre esse processo. Há uma auto-satisfação do poder político em relação a um suposto sucesso na integração das pessoas, mas não sei bem se isso é verdade. Ainda há uma neblina sobre esse período.”
Com mais ou menos visibilidade, o debate sobre questões coloniais e pós-coloniais está aí e, com ele, sublinha Manuela Ribeiro Sanches, “as práticas artísticas vão abandonando um discurso autorreferencial e eurocêntrico, que ainda predomina na sociedade portuguesa, politizando a arte, devolvendo-lhe uma função crítica. Ou descolonizadora. Essa é uma tarefa sempre inacabada, como toda a crítica que se queira efectivamente crítica”.
Publicado originalmente no Público, 2 de Outubro de 2015.