Milagrário Pessoal - pré publicação AGUALUSA

(apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte)  

SEGUNDO CAPÍTULO

Dos tigres, e outros distúrbios bizarros, que sucederam na cidade de São Paulo da Assunção, antes denominada Luanda, e mais tarde São Paulo da Assunção de Luanda, após a morte de Dona Ana de Sousa, a Rainha Ginga, aos 83 anos, no dia 17 de Dezembro de 1663. Neste capítulo se revela ainda a existência de antigos manuscritos que conteriam uma colecção de palavras novas - paleoneologismos, portanto - roubadas no século XVII às aves de Angola.

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Naquela noite aconteceram tigres e foi assim pelo país inteiro. Na  cidade de São Paulo da Assunção, a que os mais antigos, como eu, ainda dão o nome de Luanda, uma centena desses grandes gatos silvestres cruzou com suas ágeis patas de veludo a dormência da Ingombota. Muitos os viram. O lume dos olhos riscando o error da madrugada, detendo-se aqui para cheirar as brasas de uma fogueira já quase extinta, ali para sorver a fatigada lama de alguma cacimba. Avançaram depois sobre a praça, onde ficam as casas e palácios dos governadores e capitães gerais destes reinos e suas conquistas, com honrada e sumptuosa morada, e em frente o corpo da guarda, e uns poucos mais de passos adiante o Paço Episcopal, sito junto à Igreja Matriz e assim foram indo, alarmando uma companhia de empacasseiros, que não tentaram dar-lhes caça, antes deles se apartaram muito lestos e em altas vozearias e apupadas. Empacasseiros são soldados pretos. Todos se acham armados de espingardas. Vestem uma tanga feita da pele de algum animal selvagem, bem apertada à roda da cintura, e trazem na cabeça uma grinalda de penas. Têm fama de bons soldados, e homens bravos, mas neste caso não fizeram justiça à boa glória de que desfrutam, pois fugiram, como disse, em gritaria, e esse alarme despertou as famílias nos seus palacetes e sobrados e muita gente assomou às varandas, vendo, sem compreender, o mesmo que eu vi: tigres, às dezenas, varando as ruas. No dia seguinte corria o forte boato de que tais tigres mais não eram do que aquela depravada corte de seiscentos homens trajados como fêmeas com que Dona Ana de Sousa, a Rainha Ginga, para toda a parte se fazia acompanhar.

Quando os holandeses invadiram a cabeça destes reinos, províncias e senhorios, estando os portugueses em desesperada fuga para a Vila da Vitória de Massangano, propuseram alguns oficiais, pessoas inteligentes nos usos e costumes da terra, que se contratassem a negros encantadores para que fizessem entrar na cidade onças, leões e tigres, de forma que tais feras, enfurecidas, engulipassem as tropas invasoras. Opôs-se o bispo, pessoa de muita fé, dizendo que não convinha a estratégia, pois não era guerra limpa, se não bastante suja, visto recorrer a artes do maligno, e não se fez o referido trato, o que no meu juízo foi muita pena

Só um homem teve a ousadia de enfrentar os tigres e esse foi um pernambucano, de seu nome Paulo Moreno, um dos mosqueteiros pretos de Henrique Dias, que, com outros como ele, veio para Angola combater os flamengos. O pernambucano lançou-se sobre as feras armado de um simples cutelo e bravamente se bateu, perdendo primeiro um pé e depois parte do braço esquerdo, e a seguir a mão direita, antes de entregar a alma ao criador. Na manhã seguinte encontraram o seu corpo, ou o que restava dele, abraçado ao de um guerreiro nu, com a goela aberta, acreditando o gentio ser o morto um dos tais degenerados da corte de Dona Ana de Sousa, que, perdido o último alento, se desencantara, ou destigrara, retornando à aparência original.

Em 1645, desembarcaram na Enseada do Quicombo 200 brasileiros, comandados pelo sargento-mor Domingos Lopes Siqueira, e logo ali foram emboscados e mortos pelos temíveis jagas, os quais esquartejaram os corpos dos defuntos a golpes de javite (machadinha), amaciaram os pedaços, deixando-os a marinar longas horas em vinho de palma, sal e uma espécie de pimenta malagueta muito cheirosa e bravia, a que nós, os filhos da terra, chamamos gindungo de cahombo, assaram-nos e nutriram-se alegremente dessa triste carne. Alguns dos comidos eram índios potiguares, que se haviam distinguido sob as ordens do seu pajé, Dom António Filipe Camarão, em Pernambuco, nas campanhas contra os holandeses. Estavam armados de flechas e lanças e tangapemas, pintados segundo suas tradições, e mostravam grande mestria em golpes de pé e outras artes de briga. Não lhes valeu de muito. Atente-se agora nas danças e contradanças que o mundo baila e nós com ele: bravos guerreiros índios, descendentes, talvez, dos mesmos que haviam comido portugueses nos verdes bosques do Brasil, terminarem os seus dias devorados em Angola por servirem e muito amarem o nosso sereníssimo Rei, D. Pedro II.

Apenas dois homens sobreviveram à matança, sendo um deles o já referido Paulo Moreno. Acrescentada ironia esta, pois tendo o pernambucano escapado de ser comido pelos jagas, em 1645, havia afinal de perecer dezoito anos decorridos, meio devorado por um canibal de idêntica estirpe, mas mais perigoso, pois servindo ao Pai das Trevas Infernais.

O segundo sobrevivente foi um índio, a quem chamavam Façanha, Mariano Façanha, muito fiel e afeiçoado a Paulo Moreno. Os dois homens conseguiram alcançar o arimo de uma rica senhora de Luanda, Dona Ana Matoso de Andrade, poucas léguas a norte de Quicombo, com tanta felicidade que a encontraram em seus domínios, preparando e apetrechando uma quibuca. Dona Ana tratou-lhes das feridas, alimentou-os, instalou-os em confortáveis maxilas, e os fez chegar sãos e salvos a esta nossa cidade. Nos anos seguintes Paulo Moreno e o índio Façanha caçaram elefantes, venderam marfim, alugaram as suas armas para resgatar escravos no interior do país, associaram-se a várias outras empresas. Se nunca enriqueceram, também não se pode dizer que a vida os haja traído ou destratado. Na noite de 17 de Dezembro de 1663, quando deu pela frente com um tigre, ou com um homem em figura de tigre, Paulo Moreno havia alcançado um lugar de muito respeito entre os moradores desta nossa cidade.

Na mesma noite em que a Rainha Ginga morreu, e em que os tigres arremeteram sobre Luanda e os presídios de Ambaca, Cambambe e Pedras de Pungo-Andongo, agitaram-se as águas do Quanza, e largas centenas de lagartos, também chamados crocodilos, tomaram as praias da Muxima, junto à Igreja onde se venera a imagem da Virgem da Conceição, comandados por uma mulher muito alta e inteiramente nua, a qual trazia uma criança nos braços. A mulher caminhou até à porta da igreja, pousou o infante nos degraus, e retornou muito serena às espaçosas águas do rio.

Para aqueles a quem surpreenda tal sucesso, e o achem improvável,  recordo uma história acontecida não há muitos anos a um homem mercante desta cidade de Luanda. Passou-se o que vos conto no Rio Dande. Ia o referido pombeiro a atravessar o curso de água quando um feroz lagarto saltou de improviso sobre a embarcação, ferrando uma negra que seguia junto, e que era fêmea de muito bom parecer. Procurou-a o homem por aquele rio, e em suas margens, para com isso pagar-lhe parte da afeição que lhe tinha, e o muito que lhe devia, mas nunca a encontrou. Dois anos decorridos, regressando o pombeiro pelo mesmo percurso, veio-lhe ao caminho a sua estimada escrava, festejando-o pelo grande amor que lhe tinha, e trazendo ao lombo um filho pequeno. Explicou-lhe a escrava ser o menino cria de um negro daquele reino, entretanto falecido, o qual dela se enamorara, e que para a alcançar e possuir se transformara num lagarto. Dito isto mostrou-lhe as marcas dos monstruosos dentes como prova do que afirmava. Muitas vezes ouvi contar tal sucesso ao capitão António de Oliveira Cadornega, homem ilustrado, justo e muito esclarecido, autor de uma avantajada História Geral das Guerras Angolanas.

Voltando ao prodígio do menino trazido pelos lagartos, e por uma mulher muito alta que cavalgava os mesmos, foi este criado pelo vigário do lugar, também capelão da infantaria, que lhe deu o nome de Moisés. Cresceu entre o rio e a Igreja, forte e saudável e bem ilustrado na arte da escrita e da leitura dos santos livros, ostentando inclusive o brilho de algum latim. Aos 20 anos, se tanto, era já um próspero comerciante de cera. Conheci-o, a Moisés da Conceição, estava ele bem estabelecido em todos aqueles dilatados sertões e matos e brenhas e emaranhados e espinhosos labirintos. Em geral, a cera produzida pelos negros é torpe, ou porque estes a não saibam alimpar, ou tão só por lhes repugnar tal labor. Bastas vezes a falsificam de propósito, aumentando o seu peso com materiais espúrios, indemnizando-se assim das falsidades e logros que os europeus praticam na aguardente e nas restantes mercancias que lhes vendem. Moisés da Conceição, ao contrário, produz e comercia uma cera pura e alvíssima e de grande consideração, servindo-se para o efeito de abelhas cultivadas, o que não é de uso neste país, onde quase tudo é bárbaro e selvagem e de muito ruim índole e natureza, incluindo besouros e pulgas e mosquitos e demais insectaria.

Numa das suas viagens pelo interior, subindo o Quanza para caçar cavalos-marinhos, Mariano Façanha encontrou Moisés da Conceição e encantou-se por ele. Desta amizade veio a nascer uma curiosa soma de manuscritos, entre os quais destaco um “Dicionário Comparado da Língua Geral dos Índios do Brasil e da Língua Bunda ou Angolense Explicadas na Portuguesa”, assinado pelos dois amigos. Mais importante, se bem que um tanto herético e melindroso, me parece outro texto, denominado “Livro dos Bons Augúrios da Língua Portuguesa”. Neste último manuscrito, Moisés da Conceição, amparado por Mariano Façanha, defende a proximidade entre algumas regras da gramática bunda e as da gramática portuguesa, vaticinando que tal semelhança irá facilitar a penetração e assentamento do nosso idioma nos sertões de África, e também nas províncias do Brasil, onde os negros e os pardos, libertos ou escravos, tendem a superar os índios em número e vigor. Escreve Moisés da Conceição que a língua portuguesa, sendo já africana na sua matriz, pelo demorado convívio com o árabe, que muito a contaminou, necessita de enegrecer ainda mais, afeiçoando-se à geografia dos lugares onde estão os seus abundosos falantes.

O nosso destino é o de nos engolirmos uns aos outros, disse-me Moisés da Conceição quando há alguns anos o encontrei, nesta nossa cidade de Luanda, onde o trouxera o negócio da cera. Se os portugueses comeram dos angolenses, e estão comendo, hão-de os angolenses comer também seu pedaço dos portugueses, e desta forma, todos bem nutridos, melhor enfrentaremos o porvir e a cobiça dos povos alheios.

Nos últimos anos de sua vida aproximou-se Moisés da Conceição  de um negro afamado como mago e necromante, que o gentio desta Etiópia Ocidental acredita operar estranhas maravilhas, como a de ressuscitar e cativar cadáveres, ou a de fazer discursar os brutos animais, quer em língua bunda, quer em português, mas sempre com perfeito juízo e entendimento. Levou-o este necromante à vila de  Massangano, onde o apresentou a uns pássaros de voo lento e trabalhoso, forte penagem verde e azul, e uma crista púrpura na cabeça, à maneira do solidéu dos cardeais, mostrando-se tais pássaros muito ágeis de pensamento e hábeis no falar.  A partir de várias conferências com os referidos pássaros doutores, que os nativos chamam onduvas, reuniu Moisés da Conceição uma colecção de palavras extravagantes, de muita serventia, segundo me confidenciou o índio Mariano, para a boa iluminação das nações que habitam este país e, mais do que isso, da natureza da vida e  dos seus mistérios maiores.

Os descendentes dos angolenses, hão-de um dia falar um português próspero, redondo e musical, e quem os ouvir talvez consiga escutar no eco de certas palavras o largo rumor do Quanza passeando-se em direcção ao mar, o colorido piar de suas muitas aves, o zunir dos insectos, o cair das chuvas, o ribombar dos trovões, o silvo do vento soprando húmido por entre o capinzal.

A morte de Moisés da Conceição, e nem me parece acertado dar-lhe nome tão funesto, prefiro chamar-lhe viagem, veio a ser semelhante ao seu surgimento. Uma manhã alçou-se das águas do Quanza um lagarto gigantesco, avançou majestoso por entre o gentio assustado, e postou-se defronte à casa de Moisés. O comerciante esperava-o. Surgiu muito calmo, vestido de tafetá roxo, e ornado como um santo em seu altar, cumprimentou o crocodilo, fazendo-lhe muita cerimónia, acompanhou-o ao rio, e entrando ambos na ampla corrente, nela se foram e se perderam.

Mariano Façanha teve um fim mais discreto. Faleceu em sua residência, na Ilha de Luanda, de prolongadas sezões e invencível melancolia, deixando-me em herança a colecção de manuscritos que acima mencionei. Transmito ao meu filho varão todas as obras de Moisés da Conceição e Paulo Moreno, e outros da minha autoria, como testemunho de uma inteligência angolense, numa época onde esta tanto escasseia.  

Domingos Ferreira da Assumpção, o Quitubia. 

 

Ilustrações de Tiago Lança

“Milagrário Pessoal”, de José Eduardo Agualusa, sairá brevemente pela D.Quixote

por José Eduardo Agualusa
Mukanda | 5 Junho 2010 | Agualusa, língua, luanda, Paulo Moreno, Quanza, Rainha Ginga, tigres