Crónica de uma vitória anunciada

José Eduardo dos Santos é um homem reservado e silencioso. Raras pessoas têm acesso à sua intimidade. Menos ainda o terão ouvido falar, em privado, sobre as suas ideias para o país ou a sua filosofia política. Paradoxalmente, foi esta opacidade que lhe permitiu alcançar o poder total em Angola. 

Ao falecer em Moscovo, a 10 de Setembro de 1979, Agostinho Neto deixou atrás de si um país em chamas. Não era só Angola que vivia uma guerra civil. O MPLA também. Na cadeia de São Paulo, em Luanda, e em campos de concentração espalhados por diversos pontos do território angolano, antigos militantes e dirigentes do MPLA, que se haviam oposto à liderança de Neto - dos simpatizantes de Nito Alves aos intelectuais da Revolta Activa -, partilhavam celas e desditas com os jovens da Organização Comunista de Angola, OCA, mercenários portugueses, ingleses e americanos, militares congoleses e sul-africanos, e gente da UNITA e da FNLA. 

Eduardo dos Santos não foi escolhido por representar a facção mais forte. Ao contrário: foi escolhido por ninguém saber ao certo quem ele apoiava, ou poderia vir a apoiar. 

Ainda hoje a sua posição relativamente ao 27 de Maio de 1977, o evento mais dramático da história de Angola após a Independência, é motivo de acesa controvérsia. O certo é que, poucos meses após assumir o cargo, libertou a maior parte dos presos políticos e acabou com os fuzilamentos. Mais tarde viria a nomear antigos simpatizantes de Nito Alves, os chamados “fraccionistas”, para altos cargos no aparelho de Estado. 

Tal opacidade, que poderia sugerir fraqueza de princípios, depressa se revelou uma virtude no escorregadio e perigoso palco da política angolana. José Eduardo dos Santos aprendeu a jogar com o silêncio, tornando-se um hábil manipulador. Sobreviveu ao “fraccionismo”, à queda do Muro de Berlim, e à longa Guerra Civil. Resta saber se sobreviverá, ou por quanto tempo sobreviverá, à “democracia”, que afirma, agora, defender. 

As eleições previstas para o próximo dia 31, as terceiras desde que Angola alcançou a independência, em 1975, servem, sobretudo, “para inglês ver”. José Eduardo dos Santos está no poder há 33 anos sem jamais ter sido eleito. Nas primeiras eleições, em 1992, o candidato do MPLA deveria ter disputado uma segunda volta, contra o seu principal adversário, Jonas Savimbi. Este, porém, recusou o resultado, e a guerra recomeçou. Nas segundas eleições, em Setembro de 2008, o MPLA venceu o pleito para as legislativas, obtendo mais de 80% dos votos. Contudo, ao contrário do que estava previsto, nunca se chegaram a realizar eleições presidenciais. Uma nova Constituição foi então aprovada, instituindo um regime que exclui eleições presidenciais. O Presidente da República, com um poder imenso, passa a ser o chefe do partido mais votado. 

José Eduardo dos Santos precisa de uma vitória credível nestas eleições, de forma a legitimar o seu poder para o exterior. O crescimento económico de Angola, ainda que pouco beneficie a esmagadora maioria da população, tem atraído investidores estrangeiros e melhorado a imagem do regime. As democracias ocidentais com interesses no país não parecem grandemente inquietas, de um ponto de vista moral, com a perpetuação de José Eduardo dos Santos no poder, ou com a corrupção generalizada. Contando que o regime se mantenha firme e coeso, assegurando um mínimo de estabilidade necessária aos bons negócios, está tudo bem. Ainda assim, preferiam ver o MPLA triunfar em eleições livres, justas e transparentes, ou que pelo menos parecessem livres, justas e transparentes. Seria uma forma de silenciar as escassas, mas sempre aborrecidas, vozes críticas e de apaziguar consciências. 

A nova Constituição foi desenhada à medida das necessidades políticas, dos anseios e das idiossincracias de José Eduardo dos Santos. Em primeiro lugar, o Presidente não precisa de suar em público, de mergulhar diariamente no caos deselegante das multidões, e muito menos de se confrontar com adversários (um aborrecimento!), como aconteceria em eleições presidenciais. Em segundo lugar, para ser eleito, basta que o MPLA alcance mais votos do que os restantes partidos, independentemente da percentagem. Ou seja: não há necessidade de apostar tudo numa fraude maciça, como aconteceu nas eleições anteriores, com o risco de obter um resultado tão favorável, digamos, acima dos 80%, que se torne risível - e lá se iria, de novo, a credibilidade pretendida. 

Angola mudou bastante desde as últimas eleições, em 2008. Algumas das mudanças são óbvias, como a novíssima marginal, ou os espelhados arranha-céus, muitos deles erguidos sobre os escombros de históricos, e belíssimos, casarões coloniais. É justo reconhecer que foram feitos avanços em alguns domínios, como a saúde pública e a reconstrução de estradas e caminhos-de-ferro. São mudanças importantes. Há outras, talvez menos óbvias, mas que poderão ter um peso muito maior no resultado das eleições - admitindo eleições justas e transparentes. 
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A mudança mais relevante tem a ver com a juventude. Os jovens de hoje, os quais representam a maioria da população angolana, já não se mostram tão traumatizados pela guerra civil quanto os respectivos pais. Estão também muito melhor informados e decididos a reinvidicar a parcela da riqueza do país a que têm direito. Dez anos após a morte em combate de Jonas Savimbi, no Leste de Angola, a juventude angolana está muito mais interessada no presente, e no futuro, do que no passado. Em 2008, o MPLA utilizou com sucesso o discurso do medo, insinuando que contestar as eleições era um primeiro passo para o recomeço da guerra. Os partidos da oposição apresentaram numerosas evidências de fraude. Optaram, todavia, por aceitar os miraculosos 82% do MPLA, pressionados pelas potências ocidentais, e também receosos de que o seu próprio eleitorado reagisse mal a uma posição mais crítica. 

Hoje, jovens sem qualquer vínculo partidário, e com escassa memória da guerra, saem às ruas, em manifestações a favor da democracia. A maior parte destes revolucionários, ou “revus”, como eles próprios se intitulam, estão ligados ao mundo através dos novos meios de comunicação, e assistiram, emocionados, ao derrube dos regimes totalitários nos países do Norte do continente. 

O músico Luaty Beirão tem sido um dos rostos mais visíveis da contestação. Em Fevereiro de 2011 começou a circular na Internet uma convocatória apelando ao derrube do regime angolano. O documento, escrito numa linguagem muito ingénua, e assinado Agostinho Jonas Roberto dos Santos, apelava à realização de uma manifestação, a 7 de Março de 2011. O mais provável é que os “organizadores” desta manifestação se encontrassem longe do país. O apelo, contudo, foi retomado por outros jovens, em Angola. A 27 de Fevereiro, num concerto de rap, no Cine Atlântico, em Luanda, diante de alguns milhares de espectadores, Luaty Beirão, vestindo a pele de um dos seus heterónimos musicais, Brigadeiro Mata Frakusz, lançou-se numa violentíssima diatribe contra o Presidente angolano e outros dirigentes do regime. O vídeo desta improvisada demonstração de rebeldia, logo colocado no YouTube, testemunha um importante momento de viragem no combate pela democracia em Angola. A 7 de Março, Luaty Beirão seria preso, com mais 14 pessoas, naquela que foi a primeira manifestação de cidadãos independentes contra o regime, em território nacional, após o fim da guerra. 

No dia anterior, sábado, o regime reuniu centenas de milhares de pessoas numa manifestação de “apoio à paz”. 

O pânico do regime, flagrante em diversas intervenções de dirigentes do MPLA, explica-se pelo ambiente que se vivia em todo o continente, na sequência das revoltas na Tunísia e Egipto. O facto de os jovens revolucionários não pertencerem a nenhum movimento organizado, nem terem lideranças explícitas, assustou e continua a assustar o regime, na medida em que dificulta o seu controlo. Igualmente inquietante, na perspectiva da segurança de Estado, é o facto de alguns destes jovens serem originários de famílias ligadas à nomenklatura. Luaty, por exemplo, é filho do engenheiro João Beirão, já falecido, fundador e primeiro curador da Fundação Eduardo dos Santos (Fesa), e um velho amigo do Presidente. 

Os jovens quadros angolanos ligados à “grande família” (o partido no poder) tendem a ser rapidamente integrados no sistema. Muitos estudaram em países ocidentais e regressam a Luanda cheios de ideias generosas, decididos a bater-se contra a corrupção e por uma maior abertura democrática. Até há alguns anos, porém, quase todos fraquejavam, preferindo calar-se, após receberem o primeiro salário. O exemplo de Luaty, licenciado em Engenharia Electrotécnica em Plymouth, na Inglaterra, mostra que alguma coisa está a mudar no seio da própria classe dominante. A situação recorda os últimos anos do período colonial, cujo colapso poderia ter sido previsto pelo grande número de jovens da pequena burguesia urbana, de origem europeia, que se juntaram, na época, aos movimentos de libertação. 

 

O surgimento da Convergência Ampla de Salvação de Angola-Coligação Eleitoral, CASA-CE, liderada por Abel Chivukuvuku, que se distinguiu durante largos anos como um dos mais corajosos, inteligentes e carismáticos dirigentes da UNITA, veio também complicar o xadrez político. A CASA-CE parece, à partida, cumprir um programa de divisão de votos do lado da oposição, de forma a facilitar a vitória do MPLA e a eleição de José Eduardo dos Santos. Esta tem sido, aliás, uma das críticas a Chivukuvuku feitas em surdina, ou abertamente, por importantes figuras da oposição civil. Porém, a CASA-CE tem vindo a congregar apoios não só de antigos militantes da UNITA, como também de personalidades anteriormente ligadas ao MPLA. É o caso do seu número dois, o almirante Gaspar Mendes de Carvalho (Miau), filho do escritor Agostinho Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu), personalidade histórica muitíssimo respeitada no seio da chamada “grande família”. 

A médio prazo, não para as presentes eleições, pode esperar-se que a CASA-CE se desenvolva e cresça, graças, sobretudo, aos inúmeros descontentes do MPLA.

Na “grande família”, as correntes críticas queixam-se da corrupção generalizada e da forma como José Eduardo dos Santos vem distribuindo a riqueza do país pela sua “pequena família”. Outra queixa frequente é o excesso de poder concentrado nas mãos do Presidente da República. 

Num texto recente, publicado numa página que mantém na Internet, o antigo secretário-geral do MPLA e ex-primeiro ministro Marcolino Moco, desde há anos em ruptura aberta com José Eduardo dos Santos, critica os partidos que optam por silenciar algumas destas questões: “Nas circunstâncias destas eleições seria uma das questões fundamentais a esclarecer: como é que à filha de um presidente cessante e candidato ao mesmo tempo são atribuídos pela comunicação social do país e do mundo tantos teres e haveres de origem não explicada, nunca desmentidos, pelo contrário, tão ostensivamente exibidos interna e internacionalmente? Como não falar disso agora?”

Nos últimos meses tem havido manifestações de ex-militares e de antigos agentes da polícia política. Estes últimos ameaçam utilizar a informação e os conhecimentos adquiridos no exercício da profissão para desestabilizar o Estado. 

Dois ex-militares, Alves Kamulingue e Isaías Kassule, estão desaparecidos desde o dia 27 de Maio. Terão sido presos, quando tentavam realizar um protesto contra a situação de abandono em que se encontram muitos dos antigos combatentes. A polícia, que reconheceu inicialmente ter detido os dois jovens, afirma agora desconhecer o seu paradeiro. Há quem assegure que foram fuzilados. Organizações não governamentais angolanas, como a Associação Omunga, a SOS-Habitat e a Associação Constituindo Cidadania, vêm tentando pressionar as autoridades para que libertem os jovens, ou informem sobre o seu destino.

Fala-se em eleições e logo alguém solta a palavra incómoda - fraude. A verdade é que o processo eleitoral começou torto. Primeiro, foi a disparatadíssima nomeação de Susana Inglês para a presidência da Comissão Nacional Eleitoral. A oposição manifestou-se imediatamente contra tal nomeação, por a entender ferida de irregularidades: Susana Inglês não é magistrada judicial, exigência prevista na lei. Além disso, foi dirigente da Organização da Mulher Angolana, OMA, instituição vinculada ao partido no poder. A nomeação de Susana Inglês acabou impugnada pelo Tribunal Supremo, num processo no qual o MPLA perdeu a face. 

Organizações da sociedade civil e partidos da oposição também têm protestado, neste caso sem êxito algum, contra a forma como o MPLA utiliza os vastos recursos do Estado para financiar a sua luxuosa campanha eleitoral, este ano entregue ao publicitário baiano João Santana, conhecido no Brasil como o “marqueteiro de Lula”. O partido no poder serve-se ainda da Televisão Pública de Angola, da Rádio Nacional e do oficialíssimo Jornal de Angola para exaltar as realizações do Governo, e atacar e denegrir, muitas vezes em termos brutais, os partidos e personalidades da oposição. 

Marcolino Moco recorreu, no texto já referido, a uma metáfora desportiva para resumir a situação actual: “As eleições de 31 de Agosto são, desde logo, um jogo num plano inclinado, a favor do golpismo. Se se quisesse uma metáfora olímpica mais esclarecedora, diria que estamos perante um jogo em que há uma baliza de um metro de largura para o país marcar (não falo só da oposição político-partidária) e outra com, por aí, uns dez metros, para Sª Excelência o Senhor Presidente-candidato enfiar os seus estrondosos golos, calmamente.”

Nada disto é novo. Aconteceu o mesmo nas eleições anteriores. O risco, desta vez, embora remoto, é que ocorram protestos, e que o regime possa perder o controlo da situação. Enquanto escrevo este texto, anunciam-se manifestações convocadas pelos principais partidos da oposição. Os jovens “revus”, entre os quais Luaty Beirão, fizeram saber que também eles tencionam descer às ruas. O MPLA, por seu lado, afirmou que irá organizar gigantescas contramanifestações. À medida que se aproxima o fim do mês a tensão aumenta. 

Numa página que animam na Internet, Central 7311, os “revus” lançaram no passado dia 20 uma campanha original. Começaram a fabricar e a distribuir uma espécie de cartões de identidade, que simulam o modelo nacional, aos quais chamaram cartões de “Cidadãos em Protesto Permanente”: “Com esta campanha”, explicam na referida página, “queremos recuperar os manos e manas que, não saindo do conforto das suas casas para arriscar ser agredidos por um kaenche [“gorila”] do [Bairro do] Palanca, se sentem agastados com alguma situação do seu quotidiano contra a qual tencionem protestar desta forma simbólica. Assim, seja qual for a situação que vos aflija, por mais ridícula que vos possa parecer, se querem insurgir-se contra ela dando a cara, teremos todo o prazer em criar-vos um BI adequado às vossas exigências. Terão apenas de nos enviar um email para dia7angola@gmail.com, com a vossa foto e dados para preenchimento: razão da adesão, ocupação, residência e província. Os dados dependem da vossa imaginação, mas a foto deve ser vossa e deve ver-se claramente a vossa cara.” 

Esta boa disposição e vontade de transformar contrasta com um certo desalento, cansaço, uma derrota da esperança, que também se sente em largas franjas da população angolana. 

A capital angolana foi, desde sempre, uma soma de contradições. Europeia e africana. Rica e pobre. Urbana e camponesa. Moderna e tradicional. Arrojada e convencional. Progressista e reaccionária. Bela e horrível. Algumas destas contradições acentuaram-se nos últimos anos, em particular o abismo social. Os ricos vivem cada vez mais alto, nos modernos arranha-céus erguidos sobre a baía, ou cada vez mais à margem, em ilhas de prosperidade, nos condomínios de Talatona. Os pobres, esses, acotovelam-se nos imensos musseques que abraçam e se infiltram pelo asfalto. Luanda é uma cidade que ri e chora ao mesmo tempo. 

O país está dividido entre os que defendem a situação, porque lucram com ela, por receio ou comodismo, uma oposição desorientada, um mar de gente exausta e um pequeno grupo de jovens aguerridos e idealistas, mas com limitada capacidade de mobilização. 

A poucos dias do acto eleitoral a única certeza é o vencedor. O que acontecerá depois disso, ou até antes disso, depende da forma como a Comissão Nacional Eleitoral responder às inúmeras dúvidas que lhe têm sido colocadas. Depende também do quanto a UNITA e a CASA-CE estão dispostas a arriscar. Depende, finalmente, da mobilização dos jovens. 

Em todo o caso estas são, provavelmente, as últimas eleições angolanas em que o vencedor é conhecido à partida. Não é ainda a democracia - mas talvez seja o fim de um tempo muito duro. Talvez Mamã Esperança já esteja, na curva do rio, ajeitando os seus panos, arrumando o seu toucado, preparando a sua entrada para uma nova estação.

 

artigo publicado no jornal Público, 26/8/2012

por José Eduardo Agualusa
Mukanda | 28 Agosto 2012 | angola, eleições, ikonoklasta, juventude angolana, luanda, mpla