«Black Rio! Black Power!, o som da identidade negra
Pela primeira vez, a 20 de novembro do ano passado, o Dia da Consciência Negra foi reconhecido como feriado nacional no Brasil. A data refere-se à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo brasileiro, decapitado em 1695 pela Coroa portuguesa, tendo a sua cabeça exposta como troféu em praça pública (diz-se que foi para desfazer o mito de sua imortalidade).
O quilombo era uma comunidade de escravizados que fugiam das fazendas dos brancos, mantidos presos nas senzalas, os alojamentos que lhes eram destinados – daí o nome de um clássico (e controverso) texto brasileiro, Casa-Grande & Senzala (1933), do sociólogo Gilberto Freyre. O objetivo do dia é celebrar a luta pela igualdade racial, comemorar a resistência dos povos afrodescendentes e promover ações concretas de reparação, além de aumentar a representatividade negra na sociedade. O documentário Black Rio! Black Power!, do diretor Emilio Domingos – fruto de dez anos de trabalho de pesquisa, que circulou por 24 festivais nacionais e internacionais, ganhou oito prémios e chega esta semana no Portugal – cumpre esse objetivo ao contar a história de um movimento cultural ainda pouco valorizado.
Quando se fala do Rio de Janeiro, as associações mais óbvias são o samba, a bossa nova e, mais recentemente, o funk – pouco se fala do soul. No entanto, não reconhecer o fio de continuidade entre eles – e também com o hip hop – seria como chamar o funk de “filho de pai desconhecido”. E a Furação 2000, gravadora e produtora dos bailes desde aquela época, representa exatamente essa linha de continuidade.
Segundo o jornalista Silvio Essinger (O Batidão do Funk, 2005), “a escolha de 1976 como marco do movimento deve-se ao fato de ter sido o ano em que ele se tornou visível além dos próprios frequentadores, graças à reportagem reportage “Black Rio: l’orgoglio (importato) di essere negro in Brasile’, da jornalista negra Lena Frias, especialista em música popular brasileira, e do fotógrafo Almir Veiga, publicada no Jornal do Brasil.“
Na realidade, foram anos em que “o fenómeno dos bailes Black na periferia do Rio” começou a ser alvo das autoridades. O Brasil vivia sob uma ditadura, e os militares viam com desconfiança um movimento que reunia mais de 15 mil jovens negros das periferias, que além de dançarem, também se organizavam politicamente e identitariamente.
Era a época em que o movimento negro pelos direitos civis ganhava força nos Estados Unidos, e muitos países africanos conquistavam sua independência. Uma página de jornal mostrada no documentário define o movimento como “Uma versão brasileira do movimento racial made in USA”. As autoridades responsáveis pela ordem pública já identificavam o Rio de Janeiro como o centro irradiador da “nova moda”. De fato, embora o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) tivesse infiltrados nas festas, e Dom Filó, líder do movimento e protagonista do documentário, relate ter sido sequestrado pela polícia militar, as autoridades da época subestimaram o poder do fenómeno.
“Entre 1972 e 1975, quase um milhão de jovens recebeu, dançando, um choque cultural, um choque identitário, um pensamento crítico sobre o que significa (ele não usou o verbo no passado…) ser negro neste país racista”, é assim que Filó descreve as festas da Soul Grand Prix, que aconteciam no ginásio esportivo de Rocha Miranda, na zona norte do Rio de Janeiro – “o nosso Maracanã”, como define um dos entrevistados.
Numa das paredes eram projetadas imagens de James Brown, Aretha Franklin, os ídolos dos frequentadores, além de imagens deles mesmos gravadas durante as festas — “assim as pessoas se sentiam contempladas, e o orgulho negro nascia”. Junto a isso, eram lançadas mensagens afirmativas que fortaleciam a estética black — que assustava a sociedade (ainda em 2002, as vendedoras negras das boutiques da zona sul do Rio eram obrigadas a alisar os cabelos ou, no mínimo, trançá-los). Reivindicava-se o direito de aspirar à ascensão social. “O primeiro engenheiro negro que conheci foi o Filó; o nosso destino era ter um lugar subordinado” afirma um dos entrevistados.
O líder do movimento atuava como um MC. “Minha participação consistia em passar uma mensagem positiva”, o como Filó diz ‘um papo reto’ para que os jovens elevassem sua autoestima em uma sociedade que fazia de tudo para destruí-la. Era a resposta carioca a Jesse Jackson e Nina Simone. Para os frequentadores da Soul Grand Prix, o Black Panther Party era uma referência.
Na altura os serviços secretos brasileiros produziram um dossiê — tornado público apenas em 2021 — com o título surreal: “Racismo Negro no Brasil”.
“Esta agência recebeu informações de que no Rio está se formando um grupo de jovens negros, com um nível intelectual acima da média, com a intenção de criar um clima de luta racial entre brancos e negros no Brasil. Diz-se que o grupo é liderado por um americano negro que controla o dinheiro, que parece vir do exterior, possivelmente dos EUA. Alguns dos objetivos do grupo seriam: sequestrar filhos de industriais brancos, criar bairros exclusivos para negros, e formar grupos de aversão aos brancos entre os negros. O dossiê não é assinado” — lê Filó.
Como a ditadura sustentava a tese da democracia racial através do mito do mestiçagem, aquelas manifestações antirracistas foram vistas como a importação de um problema que “não existia” no Brasil. Eram os próprios negros — segundo o regime — que criavam o problema racial no país. No mesmo período, o governo fez de tudo para impedir que Abdias Nascimento (Sitiado em Lagos, 1981), intelectual e ativista pan-africanista, fundador do Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, participasse do Festac77, o segundo (para quem escreve o terceiro) festival mundial das Artes e da Cultura Negra e Africana, realizado em Lagos.
Da Soul Grand Prix nasceu, em 1976, a Banda Black Rio, uma das maiores referências instrumentais da música popular brasileira. Mas não foi a ditadura que encerrou o movimento soul — e sim a imposição da disco music pelas gravadoras e emissoras de TV. “Nós não nos encaixávamos no estilo da disco music. A disco era John Travolta.”
Assim, a Soul Grand Prix passou o bastão para a era disco, que mais tarde daria origem ao funk carioca, e Filó saiu de cena lançando o LP Soul Grand Prix 78.
Diz Aenor Neto, dançarino e coreógrafo: “Filó é o nosso Zumbi.”
Para assistir ao filme na SONICA EKRANO 2025 - Competição / Competition Casa do Comum. Lisboa, 16.04.2025, 21.30hs
Artigo publicado originariamente no Il Manifesto