Miriam Makeba: a mãe da world music
Poucos artistas podem orgulhar-se de ter um percurso tão pleno como o de Miriam Makeba. E mesmo aqueles que possam fazê-lo, que tenham tido carreiras tão longas, e que tenham ganho tantos prémios quanto ela, muito poucos estarão em condições de aliar ao mais alto nível virtuosismo artístico ao compromisso político.
Ela começou a cantar nos anos 50, como vocalista dos Cuban Brothers e dos Manhattan Brothers (com quem gravou uma irrepreensível versão de N’Kosi Sikeleli Africa). Em finais desta mesma década fundaria a sua própria banda, as Skylarks, com quem interpretaria músicas hoje famosas como Inkomo Zodwa. Nesta altura, já uma estrela na África do Sul, mas totalmente desconhecida para o mundo, aparece no filme Come Back Africa (Volta África) do realizador americano Lionel Rogosin, cuja acção, que decorre em Sophiatown, gira em torno da difícil adaptação dos sul-africanos negros à vida das grandes cidades. A história é intercalada por música e dança, que dá a ideia do poderoso fenómeno de música urbana que estava a surgir na altura. Miriam Makeba, que ali aparece para interpretar apenas dois temas, era já uma das principais animadoras deste movimento.
Eram anos muito especiais para a música africana. Uma agitação natural pelo fim do colonialismo. O negro a tornar-se pela primeira vez cidadão à frente dos governos dos seus próprios estados. Se durante séculos os escravos tirados de África contribuíram para o surgimento da música popular, como o jazz, blues, tango, mambo, samba, salsa, e muitos outros, o continente negro começa a importar estes ritmos, para consumo imediato, ou a refundi-los em versões mais próximas dos ritmos locais. Aos vários portos, da cidade do Cabo, Luanda ou Dakar, chegavam em LP os últimos sucessos dos ritmos mais badalados do mundo. E foi um passo apenas para que os músicos africanos ouvissem estes sons e os reproduzissem. Estes empréstimos percebem-se logo nos primeiros discos de Makeba. Há no fundo um ambiente jazzy, mas o mais imediato são os ritmos africanos. E, em respeito à diferença étnica, a música é cantada em quase todas as línguas nacionais, desde o Xhosa ao Zulu.
O que distingue Mabeka de muitos dos seus colegas é o facto de ter uma vida que rivaliza com a sua arte em termos de improvisação. Tudo mudou quando um dia aceitou o convite de Lionel Rogosin para participar no Festival de Veneza de 1959, no quadro da promoção de Come Back Africa. Por chamar a atenção dos problemas políticos e raciais na África do Sul, deixa uma mensagem tão forte que, antecipando os problemas que viria a ter, decide não voltar a casa.
Assim começam os seus anos de exílio: três amargas décadas. Os amigos americanos, como Harry Belafonte (com quem gravaria um lindíssimo disco) e Nina Simone (l’enfant terrible da música americana) ajudam-na a estabelecer-se nos Estados Unidos. Neste país gravou alguns discos e participou, com um dos papéis principais, em King Kong, ópera da Broadway. Casa-se duas vezes: primeiro com Hugh Masekela, virtuoso saxofonista sul-africano; mais tarde com Stokely Carmichael um activista da ala radical do movimento negro americano Black Power Movement, também conhecido como Black Panthers. Por causa desta associação abandona os Estados Unidos. Não sem que antes alcançasse várias glórias, entre as quais ter sido dos poucos artistas negros convidados para a gala de aniversário de John Kennedy, em 1962, a mesma em que Marilyn Monroe cantou o célebre Happy Birthday Dear President. Em 1967, o seu Pata Pata foi a primeira música de um músico africano a entrar no Top 10. Makeba foi também a primeira africana a ganhar um Grammy.
Depois dos Estados Unidos começam os seus anos mais aziagos. São anos de errância, concertos em várias partes do mundo, entre as quais Luanda, na presença de um Agostinho Neto já debilitado. São também anos de luta contra o cancro. Melhor que ninguém Miriam conhece o travo amargo da aproximação da morte: sobreviveu a um acidente de aviação e a vários de viação.
Nestes anos, encontra lar na Guiné-Conacry, a convite do presidente Sékou Touré. Mas só muitos anos depois é que o mundo ficará a saber o que andou a fazer por lá em termos musicais: entre outras coisas, gravou ao vivo um disco fabuloso no Palais du Peuple, casa com muita história.
Seguem-se anos de silêncio – pelo menos para o público em geral – interrompidos pela participação num concerto promovido por Paul Simon, para o álbum Graceland, em companhia de outros músicos sul-africanos, como Hugh Masekela, os LadySmith Black Mambazo e os Soweto Quartet String.
Uma das principais características de Miriam Makeba é o gosto por cantar em várias línguas. Isso está já no princípio da sua carreira, quando, com as Skylarks interpreta canções em todos os idiomas da África do Sul. Ao longo da sua carreira, cantou igualmente em árabe, francês e português. Tem pelo menos duas magníficas interpretações de Mas que nada e Xica da Silva. Em crioulo da Guiné-Bissau, tem uma versão memorável, Dju di Galinha, de José Carlos Schwarz.
Hoje, Miriam Makeba, com mais de 70 anos, com uma história de vida que rivaliza com a sua própria arte, com um percurso cheio de alegrias e percalços, é considerada a diva primeira da música africana. Ela é a Mamã África, como há quem lhe chame. Quando se escutam os seus discos dos anos 50-60, é-se forçado a admitir que a World Music começou muito antes do que a maior parte das pessoas julga. Makeba, muito antes de Angélique Kidjo, ou Oumou Sangaré, já cantava para plateias extasiadas, canções com conteúdos tradicionais, com os estalidos das línguas da África do Sul, como em Click Song.
Foi uma incansável activista política. Condenou o Apartheid em várias ocasiões, e chegou mesmo a depor perante a Assembleia Geral das Nações Unidas contra o regime político da África do Sul, uma honra que muitos poucos músicos tiveram. Não são todos os artistas que são chamados a conciliar arte com activismo político. Só muitos anos depois – foram 31 anos de exílio – é que regressa a África do Sul para a comemoração da libertação de Nelson Mandela. Canta, na sua voz melosa de menina, uma versão antológica de Soweto Blues.
O que espanta em Makeba é que a sua voz não envelheceu, nem foi contaminada pela dureza da sua vida. Continua a cantar no seu modo leve, doce e cheio de inocência. Como se o tempo não tivesse passado, como se nos transportasse de volta aos anos 50, aos seus vinte anos, magricela, de cabelo muito curto, como no filme de Rogosin: leveza, mesmo sobre a dura vida nos townships de Joanesburgo.
do livro “Poligrafia: das páginas de jornais angolanos”
(Miriam Makeba nasceu em Joanesburgo em 1932 e faleceu em 2008)