Espectros da Guerra Fria
Cartas de Angola é um filme sobre o que foi a presença dos cubanos em Angola. O que, a princípio, pode parecer não ser bem o caso. Angola nunca aparece fisicamente e é apenas uma referência na capacidade de evocação dos cubanos. Ou seja, o que eles se lembram do que foi a passagem por Angola: os dias nas trincheiras sob intenso fogo das forças sul-africanas; os mortos e os feridos; mas também a ternura dos angolanos. Ouvir esses cubanos falar sobre Angola, lembra, às vezes, pessoas acabadas de acordar que contam os seus sonhos ou pesadelos. É intenso. Mas a escolha de não ter imagens sobre Angola acaba por fazer sentido no quadro do que Dulce Fernandes pretende com esse filme. O que apresenta é simultaneamente uma parábola sobre o absurdo da guerra e sobre os trabalhos da História e memória colectiva. Ou seja, Cartas de Angola não é um filme sobre a intervenção cubana em Angola, mas sim sobre a memória dessa guerra, sobre as marcas desse passado recente no presente dos cubanos. Daí, talvez, a insistência da autora em não usar imagens de arquivo. É nos interstícios entre o passado e o presente que se cruzam os objectos do filme, os cubanos, e as memórias pessoais da autora. E o resultado é o poema filmado sobre como viver um presente, individual e colectivo, carregado pela História de um dos momentos mais conturbados do século XX: a intervenção cubana em Angola, país que constituiu um dos mais dramáticos teatros da guerra fria, e cujas personagens foram cubanos, portugueses, sul-africanos e angolanos.
Porém, a grande História não é chamada no documentário de Dulce Fernandes. Assistir a Cartas de Angola é como ir ao teatro e apanhar Macbeth pelo meio. Percebe-se a angústia do rei, mas não se sabe o motivo que a causa. Esta é a metáfora usada pelo maior conhecedor dos absurdos do quotidiano, o escritor espanhol Javier Marias, num dos mais luminosos romances da literatura espanhola contemporânea: Amanhã, na Batalha, pensa em mim. Na peça de Shakespeare a angústia de Macbeth provém do facto de ter traído o rei que era suposto proteger. No romance de Marias, há uma personagem cuja angústia resulta de, numa noite de insónia, ter ligado a televisão e ter encontrado a meio o filme de Orson Welles baseado na tragédia de Shakespeare. A personagem não sabe porque sofre Macbeth. A sua angústia, portanto, não provém de empatia pelo sofrimento de Macbeth, mas é resultado da sua própria neurose. Ver o filme de Dulce Fernandes, como luandense que cresceu entre quartéis de tropas cubanas, tenho menos empatia pelo esforço dos cubanos, e compreendo melhor a neurose implícita. É preciso justificar uma empreitada que só faz sentido pelo recurso à ideologia do “internacionalismo proletário”. Os cubanos sofrem, assim, de um passado que não faz parte do filme. Porque o filme é sobre as suas acções no presente. E é daí que vem um certo sentido de absurdo: Dulce Fernandes mostra-nos indivíduos marcados pela aventura angolana, membros de um povo a fazer sentido de um destino histórico cuja ambição ultrapassou de longe as possibilidades e os recursos do país.
No filme, o passado, propriamente dito, é apenas um recurso estilístico. Ou seja, a História, como a narração nos filmes mudos, passa pelos separadores negros que intermedeiam a acção. E aí se coloca as histórias vivenciadas pelos cubanos num processo mais longo e complexo. Assim, Dulce Fernandes força-nos a encarar a descolonização numa perspectiva menos provincial do que aquela cujo epicentro é o 25 de Abril. A revolução dos Cravos é aqui não apenas consequência de um colonialismo serôdio. É também, e mais importante, a chave que abre a porta do inferno: as vias para grandes movimentações de pessoas e poderio militar. A tropa colonial arreia a bandeira numa cerimónia sem glória, em Novembro de 1975, em Luanda, quando as tropas cubanas já entram por Angola adentro. É o “retorno” então para centenas de milhares de portugueses, e a “fuga” de um número nunca quantificado de angolanos que procuraram guarida nos países vizinhos, como o Zaire e a Zâmbia.
Cartas de Angola é pois essa viagem no tempo, num tempo de reconstruções, que a voz ajuda a tecer. Dulce Fernandes dispensa a técnica mais óbvia do cinema documentário que é colocar as personagens, ou entrevistados, a desfiarem as suas recordações sob um fundo de pano preto. Como o que lhe interessa é o passado no presente, ela opta por colocar os cubanos a discorrer sobre a passagem por Angola, enquanto lidam com as suas tarefas do quotidiano: seja lavar carros, ou a jogar ténis e xadrez, ou a estender roupa no varal. Não fosse a história que contam esses cubanos nada tinham de heróico, e seriam muito provavelmente como qualquer outro nacional na ilha de Fidel Castro com os quais um turista se deve cruzar nas ruas de Havana. Os cubanos escolhidos por Dulce Fernandes lutaram em Angola e marcaram uma nação pelo destino da procura de um espaço geopolítico no contexto da guerra fria.
E nesse aspecto que o filme de Dulce Fernandes parece absolutamente inovador, se compararmos com outros documentários sobre assuntos semelhantes. Porque ela não julga. Dulce Fernandes não usa os cubanos para mostrar a sua visão da História. Não mostra a inutilidade de se ter combatido em Angola. Ainda que esta mensagem seja implícita (nos silêncios dos entrevistados perante as câmaras, muitos certamente se perguntam se terá valido à pena). Não nos revela os trabalhos da ideologia, ou da simbologia da nação, ou os processos através dos quais indivíduos são transformados em máquinas de guerra, dispostos a morrer por uma bandeira ou por um ideal. Dulce Fernandes toma os cubanos a sério. E percebe-se também que isso é estratégico. Porque a intenção de Dulce Fernandes, em narrativa paralela às histórias dos cubanos, é cruzar o destino dos cubanos ao seu próprio destino e de muitos portugueses que abandonaram Angola no processo da descolonização.
O facto de Dulce Fernandes ter nascido em Angola, em 1973, de pais portugueses a cumprir uma missão de trabalho em Angola, não é aqui portanto um mero acidente biográfico. É parte da estrutura do filme. Dulce Fernandes recusa o epónimo de retornada, pela impossibilidade de, tendo nascido em Angola, poder estar a “retornar” a um país onde nunca tinha estado. Mas o espaço que reclama como seu só já existe nas fotografias descoloridas dos álbuns de família, que mostra no filme. Por via dessa contradição, Dulce Fernandes narra o filme a partir da instável ideia de ser natural de um território, hoje um país independente, em que nunca esteve. E reconstrói assim as imagens, baseadas nas histórias contadas no filme, sobre o nascimento dessa nação africana.
Percebe-se, portanto, o que, em última instância, está em causa neste filme: a história de que somos feitos na relação com a História que nos faz. Este é o percurso de Dulce Fernandes ao reinscrever a sua própria história sobre uma História cujo fundo é a colonização e a descolonização. Porque contra essa História, contra as identidades que se nos colam a pele, o único antídoto, como se sugerisse, é reflectir sobre o passado do presente de que somos feitos.