Etnografia(s) e territorialidade
fotografias de Jorge Coelho Ferreira, Namibe
Everyone’s on the move, and has been for centuries: dwelling-in-travel1
Neste texto tomamos como premissa inicial uma discussão que vem despertando, desde os anos 80, um crescente interesse nos Estudos Sociais: o lugar da Etnografia e a sua rotação epistemológica, de disciplina vista como subsidiária da Antropologia, para território reconhecidamente autónomo e emergente. A Etnografia procura colocar-se hoje como o lugar epistemológico que melhor define as mobilidades activas do mundo contemporâneo.
O nosso segundo pressuposto é o de que os discursos dominantes e em circulação em África e em Portugal, antes e depois das independências de 75, instauraram modelos claros de proposição política, por via de representações culturais de territorialidade e poder. Tais discursos devem ser lidos, em nosso entender, como complexos sistemas que derivam de mobilidades textuais activas, de dominante etnográfica e, em grande medida, ficcionais.
O entendimento abrangente de escrita cultural pode ser equacionado a partir dos contributos de clássicos da Etnografia, como Malinowski, e da reconstrução actual desse património metodológico e teórico por autores como Comaroff, Burawoy ou Murray. A observação participante, largamente definida pelos primeiros etnógrafos, configura a análise micro-cultural como fonte de informação sobre autoria, recepção, e definição de novos géneros, etnográficos, em grande medida provisórios, que autores mais recentes valorizaram também pela sua natureza ficcional.
O papel de mediação do etnógrafo, o sujeito “ocidental”, o viajante, colocado entre os mundos de partida e as culturas de contacto, apresenta uma flagrante afinidade com o perfil itinerante dos autores de ficções africanas, em diferentes momentos da História recente. De formas distintas, muitos destes autores preocuparam-se em transmitir imagens e conteúdos representativos das culturas a que estavam expostos, tanto a partir de universos de localização regional como de contextos marcados pela experiência urbana, em boa medida cosmopolita.
Este estatuto (de sujeito etnográfico), permeável à condição cultural das Literaturas Africanas, ajuda-nos na reavaliação das condições enunciativas de alguns textos do período colonial e de outros posteriores às independências. Seleccionámos para o efeito diversos exemplos de acontecimentos, autores e obras, que passamos a discutir à luz deste pressuposto.
A Etnografia colonial ajudou a edificar o texto imperial, ao mesmo tempo que foi usada por autores africanos como um dos recursos para a validação das culturas africanas e, desde logo, de afirmação pública da sua autonomia. As Etnografias pós-coloniais permitiram a revisão dessa tradição acrescentando-lhe novas intersecções disciplinares e um quadro hermenêutico de urgência (pela reconfiguração sucessiva de modelos de afirmação e de leitura do poder político).
Passemos então à apresentação de dados que podem sustentar estas considerações.
As Exposições Coloniais
Um dos principais instrumentos usados pelo sistema colonial português para desenvolver uma imagem que o representasse para o mundo e para os públicos metropolitano e ultramarino foi a organização de exposições coloniais. Tais eventos estabeleceram corpora normativos de objectos etnográficos, deslocaram lugares e pessoas das colónias e reconfiguraram-nos na Metrópole, por meio de um complexo e exuberante sistema semiótico e simbólico.
Houve duas exposições coloniais organizadas sob este escopo. Uma decorreu em 1934 e a outra em 1940.
A primeira, designada por Exposição Colonial Portuguesa, ocorreu no Porto e teve três anos de preparação. Incluía diferentes secções: História Portuguesa (desde 1415), Etnografia, Exército, Monumentos, um Jardim Zoológico, um Teatro, uma Livraria, provas de produtos coloniais, informações “para assistência aos nativos”. Selos e outras representações iconográficas seguiram esta reconstituição dos espaços ocupados, que culminou numa parada de nativos africanos, apresentados como sujeitos etnográficos reais.
A simulação do império colonial foi levada ao ponto da recriação de uma floresta tropical e do arquipélago das ilhas Bijagós. Estas transferências, de sujeitos e de espaços físicos, atestam claramente o valor que os responsáveis ideológicos do regime atribuíam à natureza móvel do Império e, desde logo, ao seu potencial de generalização, leia-se de instrução. Confirmam igualmente a necessidade expressa de demonstrar a dominação, militar, política e cultural, desses mesmos espaços.
A Exposição do Mundo Português ocorreu em Junho de 1940. Uma vez mais, incluía pavilhões com exposições temáticas. A sua dimensão foi de ordem a permitir a renovação de toda a parte ocidental de Lisboa, nomeadamente da Praça do Império, a edificação de monumentos, e a construção do aeroporto internacional. Desta vez a exposição não era restrita a um único centro. Recobria cerca de 600 mil metros quadrados e incluía monumentos nacionais que foram requalificados expressamente para o efeito.
Este evento constituiu claramente uma afirmação de poder face aos estados estrangeiros, em primeira instância, mas também ao país e às colónias. Com um número estimado de três milhões de visitantes, tornou-se inquestionavelmente a mais visível intervenção cultural e política do regime. Uma exuberante estátua, entretanto esquecida, foi chamada “Soberania”. Dominava visualmente o pavilhão principal.
Este conjunto de iniciativas, para além da sua configuração interna, procurava claramente o reconhecimento da legitimidade territorial portuguesa em África. Como uma forma particular de predicamento ideológico, tais estratégias de afirmação cultural pública baseavam-se esteticamente numa visão modernista dos espaços colonizador e colonizados, ao mesmo tempo que redefiniam o texto imperial em circulação.
Os primeiros etnógrafos
Os anos 30 e 40 foram significativos em termos de produção editorial. Os múltiplos acervos de textos etnográficos produzidos nomeadamente durante toda a primeira metade do século xx foram em larga medida complementares do trabalho de produção ficcional da época. Herdeira directa da Comissão de Cartografia a partir de 1936, a JIU (Junta de Investigações do Ultramar), produziu e encomendou inúmeros textos acerca das colónias, num total de 1550 títulos. As suas colecções têm entre os seus autores nomes como Héli Chatelain, Jorge Dias, Margot Dias, Viegas Guerreiro, Henri Junod e Carlos Estermann2. Henri Junod foi publicado também pela Imprensa Nacional de Moçambique. A sua obra Usos e Costumes dos Bantos – A vida duma Tribo do Sul de África3, foi considerada por Malinowski “O melhor livro de etnografia”. A sua primeira versão saiu pela primeira vez em Londres (The Life of a South African Tribe) em 1927.
Estes cientistas de diferentes nacionalidades jogaram um papel activo no suporte às Ciências Sociais em Portugal. Uma importante parte do trabalho de terreno em África, na primeira metade do séc. xx, deveu-se de facto ao esforço de muitos estrangeiros, frequentemente missionários. O seu trabalho teve impacto sobre a produção cultural e sobre os métodos que foram usados subsequentemente, tanto na Literatura como na Etnografia. Contribuíram também para a identificação de formas de distribuição demográfica de certos grupos étnicos e para o entendimento generalizado das suas políticas endógenas sobre propriedade e transmissão patrimonial.
O trabalho de C. Estermann, por exemplo, reflecte-se em muitos textos, nomeadamente dos anos 60. Datado de 1941, Negros é uma obra que mostra uma tipologia textual híbrida, incluindo diferentes tipos de documentos: fotos do Sul de Angola, penteados e artesanato dos mwila, recolhas linguísticas, descrições (de culturas minoritárias, condições económicas, etnologia, turismo), contos e narrativas orais são alguns exemplos.
Estermann era conhecido como protector dos pobres e cientista com motivações sociais. Nesta qualidade, foi aceite simultaneamente no terreno pelas comunidades que estudava e pelas elites coloniais. Vários críticos têm revisto a sua obra sob a referência da História e da Etnografia contemporâneas. De acordo com o historiador angolano V. Kajibanga: “Foi um dos primeiros cientistas sociais, a viver em Angola, que durante o período colonial introduziu a metodologia etnocientífica no estudo das culturas étnicas dos povos autóctones de Angola. A substância dessa metodologia, que em pleno período salazarista se opôs à perspectiva dos chamados estudos ultramarinos promovidos pelas autoridades do Estado Novo, consistiu na investigação endógena das culturas étnicas de Angola, inserindo-as em conjuntos mais vastos e globais, designados por áreas socioculturais.”4
Os fundadores da ficção etnográfica
São muitos os autores que podemos considerar neste grupo: escolhemos nomear Assis Junior (1887-1960), Óscar Ribas (1909-2004), Castro Soromenho (1910-1968), Domingos Van-Dúnem (1925-2003) e Uanhenga Xitu (1924-), pelo facto de serem responsáveis por uma destacada vocalização das realidades angolanas autóctones. Representaram, de diferentes formas, vozes incómodas para o regime colonial, o que podemos situar em diversos acontecimentos marcantes das suas vidas (nomeadamente perseguições políticas e prisão), e em textos que se definem pela expressão de situações e de conteúdos centrados cultural e politicamente em Angola e, sobretudo, nos seus loci marginais.
Não reconhecida pelo centro, a sua escrita era, ao tempo e em primeira instância, sobre os desfavorecidos. Quer se tratasse de expropriados de terras ocupadas ao longo de gerações, dos trabalhadores explorados nas minas, dos perseguidos pelas suas opções políticas, ou dos residentes dos musseques e das sanzalas, marcados por diferentes formas de exclusão social. A sua colocação marginal permitia-lhes representar uma voz colectiva cuja autonomia, auto-proclamada e recusada pelo texto imperial, lhes aduzia legitimidade na representação do grupo em que se inseriam, por naturalidade e escolha.
Estamos, em boa medida, a referir-nos a uma estratégia de auto-representação de um grupo à procura dos meios adequados para exprimir significados de pertença a uma condição colectiva e preocupado em construir a sua relação com as comunidades de proximidade e com a nação. Para estes autores escrever o que se ouve e como se ouve, era uma forma de reconstituir o passado e de preparar o futuro, dando voz a mobilidades funcionais e conceptuais de fronteira.
Assis Júnior, ao conciliar a ficção com o jornalismo e com a descrição linguística, apresentava-se aos seus leitores como figura de abrangente presença política e pública. O seu romance O Segredo da Morta (1934) é visto por todos os críticos como uma tentativa muito importante de recolocar a escrita em português do lado dos que não eram ouvidos: descrições etnográficas, a sua validação de crenças e de rituais são vistos como formas corajosas de revelar vozes e segredos a partir de um olhar autorizado pela e na comunidade de referência (e resistência).
Castro Soromenho nasceu em Moçambique e viveu a maior parte da sua vida em Angola. A sua obra Terra Morta (1949) foi proibida pelas autoridades coloniais, o que se deduz facilmente da forma como evidencia os conflitos culturais e laborais notórios na companhia de diamantes5. Outra obra sua que deve ser referida é Homens sem Caminho (1941).
Estes romances mostram a configuração de localismos etnográficos através de inúmeras descrições culturais, e de narradores que demonstram empatia pelas personagens africanas. “Estava um homem, que fora um dos grandes da tribo, dado à morte para melhor viver na história do seu povo, pendurado numa árvore sagrada, a afrontar e a encher de pavor a sua gente, lá do outro lado da montanha, aos pés da aldeia onde se acoita, perdido num sono de ópio e de alcóol, o soba; (…).6
Uanhenga Xitu é conhecido sobretudo pelo seu texto Mestre Tamoda, que o trouxe para o centro do debate linguístico e da discussão das modalidades de leitura dos universos antropológicos de transição. Deve notar-se que este autor continua a escrever até hoje e pode dizer-se que os seus textos mantêm o mesmo tipo de interesse: exposição crítica de injustiças, paródia ao sistema político e suas instituições Vejam-se por exemplo O Ministro (pela sua frontalidade na exposição dos erros do regime pós-colonial) e Cultos Especiais (pela complexa interpretação das ambiguidades religiosas e políticas).
De Domingos Van-Dúnem gostaríamos de citar a obra Dibundu, publicada pela UEA (União de Escritores Angolanos), texto que tem também as características que definem o património linguístico e etnográfico já referido. Este autor provém de uma linhagem de mestiços literatos; aos vinte anos envolveu-se no activismo político, na Liga Nacional Africana, em conjunto com outros escritores que vieram a ser líderes políticos proeminentes. Van-Dúnem tinha em primeira instância interesses culturais e a sua ficção é documental e politicamente situada, nomeadamente pela forma como ele lê as tensões raciais e sociais nas margens da cidade.
Uma estratégia narrativa que temos visto em alguns autores relaciona-se com esta perspectiva comum da vida urbana em África. Os narradores nestas histórias parecem situar-se num espaço de transição onde a resistência cresce ao mesmo tempo que a realidade se transforma progressivamente. Texto a texto. Por esta via, a cidade colonial volta para nós como uma visão espectral e, uma vez mais, marcada pela espera e por transições. “Como pensar, pois, em mudanças estando a cúpula em mãos alheias?”.7
De facto, do ponto de vista ideológico, esta cartografia cultural traz consequências políticas, uma vez que determina estratégias de emancipação a todos os níveis de expressão formal.
Os arredores das cidades representam a emergência de proto-nacionalismos, que desafiam a frágil legitimidade dos espaços urbanos como ícones da dominação colonial. Todos estes escritores traduzem a experiência da história na escrita da cultura. Todos fornecem um registo de África como um complexo conjunto de corpos textuais que resultam num cânone de obras que contribuíram para a formação de um capital simbólico referente ao mundo colonial. O que os diferencia são as formas de identificação com os seus informantes e, ou, o leitor implicado, e os diferentes sistemas de recepção.
Convém não esquecer que o primeiro leitor de cada texto etnográfico é, claro, o próprio etnógrafo, o que o define como sujeito vigilante das modalidades de representação da escrita de fronteira.
Os autores nómadas
Na introdução a Ethnography unbound Brown e Dohin referem que a etnografia tradicional já não é viável, uma vez que se reinventou a si mesma in the wake of this postmodern critique. Procuram também demonstrar como este postpositivist moment tem possibilitado a substituição e redefinição do papel teórico e pragmático do trabalho de terreno. A Etnografia actual está a movimentar-se toward a new ethnographic praxis informed by postmodern theory, yet moving beyond the limitations of it.8
Na combinação de factores em mudança, um que talvez tenha mudado radicalmente é o terreno em si mesmo. Haverá hoje lugares mais ou menos aceitáveis para conduzir pesquisa empírica? Ou será que todos têm o mesmo grau de legitimidade? Quem, ou o que, permite desambiguar essa dúvida? Só a etnocrítica, pressupõe-se, mas aquela que se reporta à discussão de estratégias de poder e de consolidação territorial. Critical ethnography is finally showing signs of recovering from the “theoretical anxiety” of the postmodern critique that temporarily disabled and almost permanently crippled it.9 Brown e Dohin consideram que a crítica pós-moderna permitiu de facto deslocar a perspectiva crítica da etnografia da ciência para a política.
No mesmo sentido, a definição de multivocalidade é estratégia necessária para resposta a questões várias: como podemos representar o Outro, e não o Mesmo, no acto de escrita, como podemos criar condições textuais que permitam aos outros falar e transmitir, através dos nossos textos, os seus próprios poderes de reconhecimento, representação e persuasão. Multivocal, innovative forms of writing “highlight rather than suppress the problems of representation in our writing, and expose the multiple, shifting, and contradictory subject positions of researchers and participants.
Luandino Vieira e Arnaldo Santos, de Angola, por exemplo, foram responsáveis por criar uma leitura duradoura das culturas em contacto como espaços em constante luta por uma explícita diferenciação semiótica. A razão por que estes testemunhos se tornaram tão relevantes ao longo dos anos 60 e 70 não é, em nosso entender, apenas devida à sua mensagem política mas sobretudo à sua mobilidade e comutabilidade simbólica e cultural. A verosimilhança da reconstituição de rituais colectivos e de papéis sociais de rápida identificação contribuíram para a sua projecção de longo termo.
Tais práticas derivaram, em grande medida, de modelos etnográficos. Na altura das independências, em 75, este arquivo foi imediatamente recuperado e transformado e os textos que tinham sido escritos antes, depressa se republicaram e foram extensivamente disseminados. A prática revolucionária influenciou em grande medida a reabilitação da escrita cultural. Muito disto foi, de novo, inspirado nos antigos etnógrafos. A actualização do trabalho de campo foi no entanto sustentada por novas metodologias, nomeadamente através de escritores como Ruy Duarte de Carvalho, que iniciou uma obra de recolecção que restaurou a Etnografia Angolana e a trouxe para a frente do debate cultural sobre Angola.
Um outro caso que deve ser referido aqui é o do texto de Manuel Rui Sim camarada!, publicado em Cuba em 1985, para celebrar 10 anos da independência de Angola. Esta antologia, de cinco histórias curtas, raramente referidas pelo autor ou pelos críticos, é ainda assim um bom exemplo da revisitação do império através dos seus despojos. Um desses textos merece particular atenção: “Cinco dias depois da Independência”10. Liga-se à modalização paródica do texto de abertura, “O Conselho”, que faz a leitura de casos ocorridos durante a transição de poderes entre Portugal e Angola: “(…) o Palácio que fora dos colonos passava para os legítimos donos”.
Sob a narração deste processo de transição, podemos identificar uma estratégia retórica que se liga ela própria a escolhas circunstanciais. A emergência de um modelo de auto-representação da nação combina ansiedade social, asserção política e hesitação ficcional. A produção destes novos conteúdos ajusta-se à revisão do projecto político do MPLA e à legitimação da sua estratégia de liderança. Esta obra não é um manifesto mas transporta os sinais de escolhas políticas claras. Tais escolhas têm a sua representação na bandeira, no hino e no líder. Uma iconografia que é também uma etnografia da transição nacional.
Manuel Rui é neste caso o narrador que joga o papel do etnógrafo, aquele que está no terreno e que documenta todo o conjunto de circunstâncias que dão voz aos múltiplos sujeitos da revolução: o jovem guerrilheiro, a mulher que faz perguntas acerca do momento político, o comandante, os angolanos e os portugueses que circulavam na altura entre África e a Europa. Há aqui uma antecipação das formas que haviam de determinar Portugal e Angola como espaços pós-coloniais.
A urgência de definir a nova nação é visível em muitos textos escritos durante a primeira década após a independência. Isto significa que tal estratégia foi vista como um projecto colectivo de grande importância e que os seus conteúdos foram seriamente lidos como atinentes à consolidação e legitimação de procedimentos transitórios e de experiências de reterritorialização no pós-guerra.
Para elaborarmos sobre o tópico das mobilidades forçadas devemos lembrar como nomadismo, a mode of thought, foi definido por Deleuze e Guattari em A thousand plateaus11.
Plateaus, termo de Gregory Bateson, não se reporta a referentes espaciais, como alguns têm dito, mas a experiências sobrepostas e comunicação: A plateau is a piece of immanence. A negação de estruturas hierárquicas a favor da experiência rizomática, como defendem os autores, suporta um discurso de violenta resposta à homogeneidade e ao totalitarismo, através do conceito de nomadic war machines. No seu tratado sobre nomadologia, os autores admitem que se trata de uma matéria de pensamento e não de ciência e que deve ser lida como tal.
Neste sentido, o termo plateaus aplica-se perfeitamente à leitura de um autor como Ruy Duarte de Carvalho; a sua obra Vou lá visitor pastores é baseada na ideia de espaços vividos, percorridos, visitáveis, que são intersticiais ao conceito de de-territorialização. Isto combina metáforas de espaço através da escrita da experiência transumante.
Ao mesmo tempo que é aceite pela comunidade de pastores sobre que escreve, constrói uma rede de referências que se ligam à comunidade sobre a qual quer escrever, e associa a comunidade observada à história nacional. Destaca dessa forma conteúdos micro-culturais ao mesmo tempo que desconstrói a macro-narrativa da nação através das vozes em contenção de historiadores, pastores, aventureiros, cronistas, jovens, vendedores, escritores. O seu papel de observador está sob escrutínio e a sua prática autoreflexiva força-o a uma permanente negociação do seu próprio texto. Uma experiência pan-nomádica, poderíamos dizer.
A pluralização do discurso e das ideologias assegura na sua obra um engajamento na leitura absoluta do Outro e o ajustamento empírico de conhecimento e criação à medida que os diferentes sujeitos se movem. Instaura por essa via uma metáfora possível das mobilidades actuais. Ou, se preferirmos, das etnografias contemporâneas.
Adaptado do nosso livro The Protean Web: Literature and Ethnography in Lusophone Africa (no prelo). Publicado em Textos/Pretextos, “A Viagem”, 13. Out-Inv. 2009, pp. 69-76.
- 1. Ver Clifford, J., Routes, Harvard University Press, 1997, p. 2.
- 2. Héli Chatelain era um missionário suíço que dedicou a maior parte do seu trabalho a Angola e em particular às língua e cultura Kimbundu (vejam-se, nomeadamente, Grammatica elementar do Kimbundu ou língua de Angola (1888) e Contos populares de Angola (1964)). Jorge e Margot Dias escreveram extensivamente acerca dos Makonde (veja-se Os Macondes de Moçambique: v. III, Vida Social e Ritual (1970)). V. Guerreiro também estudou este grupo, bem como os Khú do sul de Angola (vejam-se Os Macondes de Moçambique (1966) e Bochimanes !khu de Angola (1968)). Carlos Estermann (um missionário católico da Alsácia) publicou na JIU a sua obra principal em dois volumes: Etnografia do Sudoeste de Angola (1961). Henri Junod foi autor de Usos e Costumes dos Bantos – A Vida duma Tribo do Sul de África (1974).
- 3. Ver Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1974, 2a. ed.
- 4. Ver www.ebonet.net/vkajibanga
Esta inserção em universos endógenos e a concitação de métodos de referência abrangente em simultâneo iriam ser factores de dinamização das formas locais de análise e estiveram na base de géneros e sub-géneros literários que se podem enquadrar genericamente na expressão empírica de realidades sociais, linguísticas, culturais e políticas.
/docs/sintesecomunicacao.doc,2000, 2-3. - 5. Acerca da história da Diamang e das suas implicações em termos antropológicos e etnográficos, veja-se N. Porto, “Artes da Nação: Colonialidade, Políticas e Mercados das Artes em Angola e Cabo Verde”, Encontro Internacional Comunidades Imaginadas: Nações e Nacionalismos em África, org. do Centro de Estudos Interdisciplinares do séc. XX (CEIS 20), Coimbra, Fevereiro 2008. Veja-se também a obra etnográfica de J. Redinha.
- 6. Ver Homens sem caminho, 4a. ed., Lisboa: Atlântida, 1966, 139.
- 7. Ver .op. cit., 1989, 13.
- 8. Ver ed.State University of New York, 2004, 1.
- 9. Ver op. cit., 3.
- 10. Ver Sim, Camarada!, UEA, 1985, 95-191.
- 11. Deleuze, Gilles & Guattari, Felix, A Thousand Plateaus: Capitalism And Schizophrenia. (Trans. and Foreword by Brian Massumi), Minneapolis: U. of Minnesota Press, 1987.