Contai aos vossos filhos

Há as atrocidades em Gaza e há as fotografias que nos chegam dessa realidade cada vez mais difícil de enfrentar, de testemunhar, daqui do sossego onde estamos. O Exército de Israel não quis, e não quer, autorizar os fotógrafos nem os jornalistas – o que não se vê não existe, terão pensado. Há os jornalistas palestinianos que lá se encontravam – e já foram mortos mais de cem – e assim há apesar de tudo alguns testemunhos que conseguem passar o bloqueio. É neles que em grande parte assenta a consciência que temos da realidade de Gaza. São esses, hoje, os nossos olhos em Gaza.
A fotografia e a guerra formam, na nossa época, uma parelha que tem muito que se lhe diga, mas não uma leitura única. Susan Sontag, uma escritora americana que descreveu, historiou, e tentou explicar a estranha coligação deste estranho casal (a fotografia e os sofrimentos da guerra) no seu livro “Ohando o sofrimento dos outros” (que diga-se de passagem, foi traduzido por mim) diz a certa altura: “As guerras são agora também imagens e sons de sala de estar. A informação sobre o que está a acontecer noutro sítio, a que se dá o nome de «notícias», sublinha o conflito e a violência – If it bleeds, it leads [«Se há baixas, há cachas»], reza a provecta divisa dos tabloides e dos programas noticiosos de 24 horas – que recebem em resposta compaixão, ou indignação, ou excitação, ou aprovação, à medida que cada notícia vai surgindo.”
À indignação junta-se, à sorrelfa, em contrabando, um certo voyeurismo, de que ao mesmo tempo nos envergonhamos, mas para que nos treinam e nos condicionam as tantas imagens que nos chegam a toda a hora de toda a parte. As guerras do nosso tempo estão indelevelmente associadas a imagens que se tornaram ícones, tão familiares que servem de ilustração do sentido que temos do passado recente: o vietcongue assassinado à queima roupa pelo chefe da polícia de Saigão, as cabeças decepadas de guerrilheiros africanos mortos pelos soldados portugueses, as caras da população tutsi esfaceladas a golpes de catana na guerra civil no Ruanda, as decapitações dos reféns do daesh – uma enfiada de imagens no limite do suportável.

À primeira vista, nada disto tem a ver com a fotografia que apareceu ontem nos jornais – uma selfie com as ruínas de Gaza em fundo. Mas tem. Ou pelo menos assim me pareceu, ao olhar para aquelas mulheres sorridentes, envergando a farda do Exército israelita (“o exército mais moral do mundo”, diz a propaganda oficial). Aquela selfie será em breve uma recordação, passará de mão em mão, ou antes de telemóvel em telemóvel, será talvez o testemunho de uma bela amizade entre mulheres-soldado “forjada no ardor da guerra”, como gostam de dizer as legendas dos postais ilustrados. É essa “normalidade”, essa indiferença ao que está em fundo, essa banalização do horror que a mim mais me impressiona e mais me faz temer que poderá não haver esperança.
É como as imagens de Abu Ghraib, a prisão do Iraque onde os soldados americanos tiraram fotografias uns aos outros enquanto torturavam, humilhavam, matavam os presos iraquianos. A militar Sabrina-Harman sorri para a câmara diante do corpo do preso que se calhar acabou de matar ou de ajudar a matar. Para mim, essas fotografias depois partilhadas nas redes sociais entre amigos e familiares, aquele sorriso quase tão ingénuo e orgulhoso como o de um caçador diante de um troféu de caça, falam mais alto, mais claramente do que a veemência de muitas das denúncias dos crimes da América nos países que invade. Não há ali nem sombra da indignação que as fotografias dos jornalistas despertam – mas que ao mesmo tempo são olhadas como se olham as provas de acusação num tribunal, como se apesar de tudo houvesse ali um qualquer viés, uma intenção que o fotografado poderia desmentir. Aqui não: fotógrafo e fotografado têm o mesmo ponto de vista, um ponto de vista onde não há sequer culpa.


É assim também que se tornam ainda mais impressionantes as fotografias tiradas por um guarda alemão do campo de exterminação de Auschwitz-Birkenau, certamente um funcionário exemplar, a julgar pela organização metódica do álbum, pela sobriedade profissional das legendas: “Chegada de um carregamento” ao cais de Birkenau, “Homens ainda utilizáveis”, “Homens inutilizáveis”, “Mulheres e crianças inutilizáveis”, “Mandados para o campo de trabalho”, e assim por diante (200 fotografias). O álbum foi descoberto depois da guerra, as fotografias datam provavelmente de fins de Maio ou princípios de Junho de 1944. É talvez um dos testemunhos mais crus e mais cruéis do funcionamento da monstruosa máquina de morte nazi. Um testemunho, também neste caso, involuntariamente fidedigno – poderá haver ali um propósito de se vangloriar, de mostrar o bom trabalho que ali se fazia, mas nem sombra de indignação ou de culpa. Como a selfie das militares israelitas ou dos militares americanos em Abu Ghraib.

O álbum do funcionário nazi faz parte de um livro (também neste caso, olha a coincidência!, traduzido por mim), com o título “Contai aos vossos filhos…” (ed. Gótica, 2000). Foi escrita por dois historiadores suecos, integrado no projeto “História Viva” do Governo sueco, para sercvir de base a ações educativas e informativas sobre o Holocausto, realizadas nas escolas. O Governo português da altura (veja-se como os tempos eram outros…) comprou uma parte da edição que foi distribuída gratuitamente em várias escolas.
É importante lembrá-lo hoje, em Portugal, mas também em Israel, na América e em todo o lado onde se queira apagar essa memória, para que não se possa dizer mais tarde, o que o historiador inglês J. P. Stern escreveu no seu testemunho sobre os crimes nazis: “O povo do Reich, ao que parece, sabia tanto (por exemplo, acerca da morte dos seus concidadãos alemães) ou tão pouco (por exemplo, acerca dos seus concidadãos judeus) quanto desejava saber. Aquilo que não sabiam era porque não o queriam saber, por razões óbvias. Mas não querer saber quer sempre dizer saber o suficiente para saber que não se quer saber mais.”

Artigo publicado originalmente aqui. 

 

por José Lima
Vou lá visitar | 15 Março 2024 | censura, Fotografia, Gaza, israel, jornalismo, Susan Sontag, testemunho, violência