Com os olhos em Gaza
Não sei se conheces, se já leste alguma coisa de Amos Oz, o escritor israelita. Li só um livro dele, em francês, La troisième sphère, que não será seguramente o melhor. Li-o há muito, muito tempo e já pouco ou nada me lembra da história. Mas há uma cena que nunca me saiu da ideia: Fima, a personagem principal, segue num autocarro e ao olhar pela janela, à luz de um candeeiro, repara numa frase escrita na parede: “Morte aos árabes!”. Instintivamente traduz a frase para alemão e tem um acesso de raiva. Fima é um intelectual, um sonhador, e ali mesmo decide nomear-se a si próprio presidente e, mais ainda, decide fazer nessa qualidade uma visita oficial à aldeia de Deir Yassin no aniversário do massacre que os israelitas aí praticaram contra a população árabe indefesa e fazer um discurso pela paz entre os dois povos.
Fima é claramente uma projeção do próprio autor. E quem conhece Amos Oz, um dos fundadores do movimento “Paz Agora”, sabe como sempre alertou incansavelmente para os perigos da ocupação militar de uma terra onde existem duas nações. Num pequeno texto que acabei de ler (“Sonhos de que Israel deve livrar-se rapidamente”), di-lo claramente: “Se aqui não houver dois Estados, e rapidamente, é muito provável que, para conter o estabelecimento de um Estado árabe do mar até ao rio Jordão, reine, temporariamente, uma ditadura de judeus fanáticos, uma ditadura de caraterísticas racistas, uma ditadura que vai oprimir com mão de ferro tanto os árabes como os seus opositores judeus. Uma ditadura assim não perdurará por muito tempo. Quase nenhuma ditadura de uma minoria que oprime a maioria teve longa duração na época moderna.”
Oz não esconde os duros factos da ocupação: cerca de um terço das terras da Cisjordânia foi já saqueada por Israel (o texto data de 2015), e esse roubo continua. Denuncia a violência e a arrogância dos colonos dos territórios ocupados para quem a ocupação é não só um direito, “mas principalmente uma obrigação, a obrigação religiosa de ocupar cada palmo de terra”. Também não esconde as dificuldades de encontrar um caminho de saída. Diz: “Não posso garantir que, se, no âmbito de um acordo de paz, sairmos dos territórios, tudo vai ficar maravilhoso. Mas tenho a certeza de que se ficarmos neles, tudo vai piorar (…) O contrário de um acordo de concessões mútuas é fanatismo e morte. Nós e os palestinianos não podemos tornar-nos, de um dia para o outro, uma família unida e feliz. Precisamos de dois Estados. Com o decorrer do tempo talvez consigamos cooperação, um mercado comum, uma federação. Mas numa primeira etapa esta terra tem de ser um condomínio com duas residências para duas famílias, porque nós, os judeus israelitas, não vamos sair daqui. Não temos para onde ir. E os palestinianos tão-pouco irão para algum lugar. Eles também não têm para onde ir.”
À “direita fanática” que diz que a situação é irreversível, aponta os exemplos de tantas outras situações “irreversíveis” que a coragem e a ponderação das alternativas conseguiram reverter: quem viu Charles de Gaulle, o herói da direita francesa, a conceder a independência à Argélia; quem viu Menachem Begin o líder da direita israelita, a abdicar do “império” israelita conquistado durante a guerra dos Seis Dias, em troca de um acordo de paz com o Egipto; quem viu Itschak Rabin e Shimon Peres, dois falcões apoiantes dos colonatos, apertarem a mão a Yasser Arafat e tentar chegar a um acordo de dois Estados; quem viu Mikhail Gorbachóv, desmantelar inesperadamente e definitivamente o Império soviético, quem viu tudo isso não vai engolir facilmente as pílulas de desesperança da “situação irreversível”.
As palavras de Amos Oz trazem-me à ideia as palavras de um outro israelita que, de passagem por Lisboa, ficou uns dias em minha casa. Era na altura historiador investigador no Museu do Holocausto do Yad Vashem e, inevitavelmente, a conversa foi dar à “questão palestiniana”. Dizia-me ele: “A solução dos dois Estados é inevitável. Tudo isto é uma perda de tempo e de vidas”. Dito por ele, estas palavras têm outro peso: Vivia em Jerusalém e tinha dois filhos no exército, o que, em Israel, quer muitas vezes dizer na guerra.
Não podia adivinhar ainda, nessa altura, o beco sem saída para onde Netanyahu haveria de conduzir Israel. Estava ainda longe de imaginar como a mistura de desespero e humilhações acumuladas – uma mistura explosiva – haveria de rebentar em ódio e terror cerca de vinte anos mais tarde, em 2023, com o massacre perpetrado pelo Hamas no Kibutz Nir Oz.
“Numa terra de profetas, é difícil ser profeta”, dizia Amos Oz, mas é muito possível, vamos acreditar, que o espelho que daqui resulta – o massacre odioso do Hamas, o mundo devastado de Gaza deixado pelas retaliações do exército israelita – faça todos recuar de horror e permita abrir uma janela para a única solução que ainda se vislumbra e que Oz há muito antevira.