zona de desinteresse
Há um livro que traduzi há tempos e que agora quase não há dia em que não me volte incessantemente à ideia. Conto já porquê.
O título, «Contai aos vossos filhos» (Editora Gótica, 2000), vem de uma citação da Bíblia (Joel, I, 2-3): «Ouvi, anciãos, e prestai atenção! / Vós todos que habitais a Terra. / Foi no vosso tempo que isto se passou / ou no tempo dos vossos pais? // Contai aos vossos filhos, e que eles o contem aos filhos deles, / e os filhos destes à geração seguinte.» O livro é uma espécie de recolha de testemunhos do horror nazi que culminou nos campos de extermínio, onde morreram milhões de judeus da Alemanha e dos territórios dominados pelos nazis – inclui e comenta cartazes, páginas de jornais da época, músicas, desenhos e muitas fotografias, algumas com legendas num tom burocrático e neutro, escritas à mão pelos próprios guardas dos campos de concentração («Chegada de um carregamento», «Homens ainda utilizáveis», Mulheres e crianças inutilizáveis», etc). Ao lermos o livro, apercebemo-nos de que é a própria factualidade do texto e dos números que torna ainda mais impressionante a dimensão do crime que expõe. E no entanto devo dizer que a impressão mais profunda que me ficou da leitura (e da tradução) talvez tenha sido um poema do poeta polaco Czeslaw Milosz incluída no livro. Porquê, não sei bem ao certo. Talvez porque a linguagem poética acaba por nos atingir em zonas menos defendidas, porque menos conscientes. Acabamos por conseguir lidar com coisas tremendas e atrozes porque arranjamos processos para as delimitar e integrar no que já sabíamos, antes de se tornarem intoleráveis. A zona indistinta e móvel a que à falta de melhor chamamos inconsciente, essa que no meio do sono nos tira para fora, essa que nos faz entrever o que preferimos não querer ver, essa, é-nos mais inacessível. A linguagem que usa para nos interpelar não tem regras claras. Talvez que a linguagem poética chegue lá de maneiras que também não saberemos destrinçar nem controlar, mas que nos atingem. Para voltar a Milosz: o poema abriu talvez comportas que não estão normalmente acessíveis. Fala do Campo dei Fiori, uma praça de Varsóvia:
Recordo o Campo dei Fiori
em Varsóvia, junto ao carrocel
um belo entardecer pela Primavera
e os acordes de uma canção de Carnaval.
A melodia alegre abafava
as rajadas atrás do muro do gueto
enquanto os pares voavam
alto no azul do céu.
Por vezes o vento trazia dos incêndios
faúlhas enegrecidas à deriva
e as pessoas do carrocel
apanhavam essa pétalas no ar.
O mesmo vento ardente
levantava as saias das raparigas
fazendo rir a multidão
nesse luminoso domingo de Varsóvia.
(…)
Os que se divertiam na praça sabiam de onde vinham (e o que eram!) essas faúlhas enegrecidas. Ou então esforçavam-se por não saber. Quem, de entre nós, não faria o mesmo para não ter de enfrentar a terrível interpelação que isso nos colocaria?
Para defender as pessoas – as pessoas normais, diriam eles – de tais dilemas, os próprios nazis delimitavam à volta dos campos de concentração uma área de uns quarenta quilómetros, chamada «zona de interesse», para que não houvesse testemunhas dos crimes que aí eram cometidos e para impedir qualquer contacto dos condenados com o mundo exterior. Há um filme que passou recentemente nos cinemas («Zona de interesse», de Jonathan Glazer) que mostra a vida bucólica e tranquila da família do diretor do campo de extermínio de Auschwitz na casa de campo onde habita, ignorando (querendo ignorar) os cheiros, os sons, o sofrimento que lhes chegavam do lado de lá dos muros do complexo de fornos crematórios onde eram assassinados milhares de judeus.
Poderíamos dizer que a zona de interesse hoje em dia tem de abranger uns bons milhares de quilómetros, para nos isolar das atrocidades que se cometem por esse mundo fora. E nem assim. Porque ao mesmo tempo vai-se restringindo a distância a que as coisas acontecem. Tudo nos chega aos olhos e aos ouvidos. E quase no instante em que acontecem, o que mais aumenta o nosso sentimento de desamparo e de impotência diante das monstruosidades que de certo modo presenciamos e que nos questionam instantemente.
Hoje, nesta bela manhã de sol, a olhar o rio do meu terraço, leio o jornal do dia. Tudo se atropela a pedir atenção: há o administrador do banco central que afinal pode ganhar mais uns (muitos) milhares de euros porque a lei oportunamente foi mudada há três dias, e há o derby Benfica-Sporting, e há o fim do ano na Madeira e há… Lá se vai a zona de conforto! Há uma entrevista com Raul Manarte, um português que faz parte da organização Médicos Sem Fronteiras, que o levou já a várias situações de guerra: na Ucrânia, em Cabo Delgado, nos campos de refugiados na Grécia, no Sudão do Sul, com casos horríveis… Está agora em Gaza. Viu muita coisa, como se calcula, mas, diz ele: «o que eu nunca vi foi as pessoas não poderem fugir. E nunca vi uma assimetria assim tão grande. As pessoas estão presas aqui num bocadinho de terra e sente-se um colosso militar permanentemente que não só mata as pessoas, mas tortura-as porque os drones estão sempre a passar, as bombas estão sempre a cair, a marinha está sempre a disparar, não há escolas, a comida não entra e agora até a chuva entra pelas tendas. Isso eu nunca tinha visto.» E vê isso todos os dias. E nós pelos olhos dele. Vê os militares do Exército israelita (o exército mais moral do mundo, diz a propaganda) a invadirem e incendiarem um hospital ao mesmo tempo que obrigam os doentes e o pessoal médico a concentrarem-se no pátio e a tirarem as roupas em pleno inverno, para serem interrogados e depois levados sabe-se lá para onde. Vê as centenas de crianças mutiladas, sem pernas, sem braços, com próteses improvisadas, que vagueiam entre os destroços. E com ele vemos nós também. E lá se vai a zona de conforto. Nem tantos milhares de distância nos poupam. Pois se até os israelitas, os justos de Israel, ali a dois passos, já deixaram de ver o que se faz em Gaza em nome deles! Talvez que o apelo de Joel o profeta – «Contai aos vossos filhos!» – não tenha afinal passado de geração em geração até à atual geração de Israel.
O jornalista do Público (Luis Octávio Costa) pergunta ao entrevistado se acha que o testemunho dele é importante. «Será que muda alguma coisa? – responde Raul Manarte – A solução para o que se passa aqui não é humanitária, é política. Por mais ajudas humanitárias que haja, não vão acabar com isto. Acho que é a acção cívica em massa que vai acabar com isto.»
Chegado aqui, com um apertozinho no coração, lembro-me daquela miúda sueca que começou a faltar às aulas às sextas-feiras para se ir sentar à porta do parlamento com um cartaz a exigir aos políticos do país ações concretas para combater os efeitos das alterações climáticas provocadas pela ação humana. Depois dela, outros seguiram o seu exemplo. Primeiro na Suécia, depois no resto da Europa, depois no mundo todo. A voz dela acabou por passar muito para além dos muros que rodeavam a zona de interesse que os do Poder acabam sempre por erigir à volta do que querem escondido, ou pelo menos disfarçado, ou normalizado, ou banalizado. Há sempre outras coisas que têm de ser atendidas. Para nosso bem, dirão. São essas que estão no centro das preocupações deles.
E se calhar das nossas… ai de nós.
Publicado originalmente aqui.