Nos Trilhos da Independência: 90 dias pelo Leste de Angola
No início deste ano a Associação Tchiweka de Documentação (ATD), publicou no Novo Jornal uma matéria inédita com imagens e testemunhos directos sobre Bernó, uma importante base guerrilheira da 1ª região militar do MPLA. Esse material faz parte do muito já recolhido pelo Projecto “Angola - Nos trilhos da Independência” que desde 2010 a ATD promove, com a produção audiovisual da Geração 80 (G80). O foco da actividade do Projecto deslocou-se em 2013 para as vastas regiões do leste do país e um pouco mais além, na Zâmbia, para documentar a importante fase da luta anticolonial que se abriu naquela região a partir de 1966. O processamento de todo o material recolhido será complexo e demorado, mas virá a constituir, certamente, uma base de trabalho para estudantes e investigadores da luta de libertação do povo angolano, objectivo prioritário da Associação Tchiweka de Documentação.
Entretanto, pareceu-nos que a experiência de três meses de viagem percorrendo terras do leste e centro do país deveria ser partilhada, já que o sucesso deste e outros projectos similares dependerá sempre do interesse que a sociedade em geral lhes reconheça. E, sobretudo, do interesse dos próprios protagonistas da luta de libertação em participarem, deixando registadas as suas memórias dessa luta, ajudando a chegar aos locais que se tornaram históricos, chamando a atenção para aspectos já esquecidos, ou até recriando para as câmaras as situações vividas no passado.
O que publicaremos aqui e em próximos números do Novo Jornal sobre esta viagem é apenas uma introdução ao trabalho em curso, em jeito de reportagem, enquanto algo mais substancial não for produzido com o material recolhido, como é intenção da Associação Tchiweka de Documentação. Esta é também uma forma de agradecer a confiança dos que têm apoiado e colaborado com o Projecto “Angola - nos Trilhos da Independência”.
No seu quarto ano de actividade, o projecto da ATD Angola – Nos Trilhos da Independência definiu um marco fundamental: 90 dias de viagem, por terra, no leste de Angola com passagem pela Zâmbia. O objectivo mantém-se desde o início do projecto, em 2010: recolher depoimentos e registar imagens de locais históricos relacionados com a luta de libertação nacional, numa perspectiva o mais abrangente possível. Isso significa entrevistar combatentes e não combatentes, personagens bem conhecidos e outros anónimos, militantes de organizações políticas ou crentes de diversas igrejas que também sofreram a repressão colonial. No caso do leste do país, era necessário recolher o testemunho de membros da FNLA, do MPLA e da UNITA, já que estas três organizações ali combateram, de armas na mão, o colonialismo português.
Com este objectivo a equipa de sete integrantes fez-se à estrada a 1 de Junho pois viajar por terra, é no cacimbo!
MAPA com a rota desta primeira parte da viagem
A preparação e planificação do longo percurso contou com alguns apoios, tanto institucionais como privados, destacando-se principalmente os dos Governos Provinciais e respectivas administrações municipais e comunais, das Delegações dos Antigos Combatentes, das Forças Armadas Angolanas e da Polícia Nacional. A colaboração de elementos dos três partidos historicamente envolvidos na luta pela independência foi essencial. No terreno, foi fundamental a solidariedade da população local com a equipa do projecto Trilhos.
DA LUNDA-SUL À ZÂMBIA
LUNDA SUL
A primeira etapa de trabalho desta viagem foi a Lunda Sul. Saurimo, Dala e Cazage foram os principais pontos de paragem. Entre os locais históricos filmados destacam-se o Centro de Instrução de Cazage, onde o MPLA formou muitos jovens que viriam a distinguir-se nas Forças Armadas, e o túmulo de Nicolau Gomes Spencer “Muandoji” destacado combatente e comandante de uma Região Militar do MPLA, tombado durante a luta de libertação em Samugimo.
A maior parte das entrevistas realizou-se nas línguas locais com ajuda de tradutor. É sempre difícil destacar alguém, quando se entrevistam pessoas que protagonizaram a luta pela independência do país. Na Lunda-Sul, entre os 62 entrevistados encontram-se representantes dos três movimentos de libertação, como José Nelito Cajambi “Não Contava” (MPLA), Garcia Kiteta (UNITA) e Francisco Lingueno (FNLA).
Momento forte desta recolha de testemunhos é, sempre, o registo dos cantos da guerrilha preservados na memória colectiva. Aqui, pudemos sentir a sua força mobilizadora, interpretados por mulheres que guardam a memória daqueles tempos.
Com 52 horas de entrevistas registadas em vídeo na Lunda Sul, a equipa Angola - nos Trilhos da Independência fez-se à estrada rumo ao Moxico.
MOXICO
Seguindo o plano traçado, de oito a 22 de Junho a equipa fez entrevistas e outras filmagens no Luena, Lumege-Kameia, Luau, Cazombo, Lumbala-Kakengue e Caripande.
Foi em língua Luvale que se fizeram a maior parte das entrevistas e mais uma vez o trabalho de um tradutor foi fundamental.
Nesta primeira passagem pela província do Moxico, 42 entrevistados contaram as suas lembranças da história da luta pela independência nos respectivos movimentos de libertação, como os casos de Amélia Massoje Namoginga (MPLA), Moisés Mulenga Kambakaia (FNLA) e Moisés Njolomba (UNITA).
As entrevistas evocaram muitas vezes lugares de marcante significado que, em alguns casos, foi possível filmar. Por exemplo, as Bases Certeza e Tchissombo que foram as primeiras bases de guerrilha a norte do rio Cassai na designada 4ª Região Militar do MPLA, onde ainda é visível um antigo depósito de armas. Foi também o caso do túmulo do Comandante do MPLA Hoji Ya Henda, perto do rio Londoje, na comuna de Caripande. A zona de Teixeira de Sousa (actual Luau) evoca um momento significativo do início da luta armada da UNITA, o ataque àquela vila em Dezembro de 1966.
Na comuna de Lumbala-Kakengue, situada nas margens do rio Zambeze, foram filmados cânticos e momentos de teatro que retrataram as vivências do tempo da guerrilha. À noite a equipa pôde usar os seus recursos audiovisuais para criar um espaço de convívio animado com a projecção de fotografias e filmes.
ZÂMBIA
A viagem prosseguiu para o interior do território zambiano, tendo sido cruzado mais de oito vezes o rio Zambeze, de jangada ou pelas pontes, em todo o percurso próximo à fronteira com Angola. As passagens por Chavuma, Zambezia (ex-Balovale), Mongu, Sikongo, Lusaka e outros locais proporcionaram não só entrevistas com Angolanos e Zambianos, como também a visita a sítios que marcaram a solidariedade que os Angolanos receberam naquele país no período da luta de libertação. O apoio dos consulados angolanos em Solwezi e Mongu, bem como da Embaixada em Lusaka facilitaram os trabalhos realizados. O Dr. Mark Chona, político zambiano, além de ter acedido a ser entrevistado, tornou possível a realização da entrevista com o 1º Presidente zambiano Kenneth Kaunda.
Entre os entrevistados encontram-se Samiatchi James Kapalu Savualia, zambiano que recebeu os primeiros angolanos que se instalaram em Kassamba, David Japão Correia Cassamba, que participou no ataque a Lumbala-Caquengue ou ainda o mais-velho Nelson Chicoma, um dos primeiros nacionalistas angolanos na Zâmbia.
Entre outros locais históricos que as câmaras filmaram, estão as famosas bases de Kassamba e Sikongo que serviram de suporte logístico a várias regiões da guerrilha no interior de Angola. Também foram registadas imagens de locais históricos de passagem de dirigentes nacionalistas em Mongu e Lusaka bem como alguns depósitos de material militar da época.
Em meio às belezas naturais próprias de uma viagem desta dimensão, a equipa enfrentou os incontornáveis acidentes de percurso.
Concluída a etapa da Zâmbia, era tempo de regressar a Angola mas já por um novo “trilho”, a rota Mongu-Sikongo que levaria a equipa novamente ao Moxico, agora mais a sul, na comuna do Ninda…