Discutir o Brasil Contemporâneo

João Luís Lisboa, Débora Dias, Henrique Chaves, Lucas Augusto da Silva e Carlos Hortmann

Quatro anos após o golpe de 2016 que destituiu sem fundamento constitucional Dilma Rousseff, seguido da eleição de Jair Bolsonaro para a presidência, paira sobre o Brasil uma expectativa diária de mais violência e barbárie. Essa violência tem uma escalada concreta e o temor face à gravidade do que pode ainda vir a acontecer é diário. Mas, por outro lado, as estatísticas de violência parecem já não chocar, como se a ascensão do medo fosse uma anestesia ou gerasse habituação. Avança-se a passos largos no projeto de criminalização dos movimentos sociais e no genocídio da população negra e indígena, por exemplo, quando políticos ligados ao grupo do presidente eleito defendem o extermínio como política de Estado.

Com atenção ao vocabulário do genocídio, o mundo volta-se para o Brasil em busca de compreender não somente as linhas de continuidade e as rupturas dos processos em curso – rupturas democráticas, institucionais, que em muitos casos podem ressignificar o que se entendia como retrocessos. As urgências desafiam o entendimento de uma conjuntura complexa, permeada por falsificações, manipulações em massa, culturas de ódio, intolerância, interesses geopolíticos, conexões entre grupos políticos e económicos de alcance transnacional: Trump, Cambridge Analytica, Steve Bannon, não são nomes alheios ao cenário brasileiro. Há quem considere nesse caldo um rol de cortinas de fumo que a todo momento roubam a atenção, a energia, a sensibilidade. Há quem argumente que esse fumo também mata: por homofobia, por racismo, por misoginia.

Bordel, anos 30, Di CavalcantiBordel, anos 30, Di Cavalcanti

Por trás do calculado improviso, constata-se que está em curso uma estratégia pensada. O caos e as aparentes contradições são combustível para o funcionamento de uma máquina que não pode parar, sob o risco de ela própria ruir. Desde o início, os anúncios de nomes bizarros para áreas importantes, como o astronauta que vende travesseiros ou os defensores de que a terra é plana; ou a ministra que viu Jesus na goiabeira e defendeu a “bolsa estupro1”, ou ainda o diplomata inexperiente que reforça o time do fundamentalismo religioso, nada é aleatório. Os factoides produzidos em Twitter, o que é dito e depois desdito, para se dizer novamente de um outro modo, é também uma forma de controlar a narrativa. Enquanto isso, grandes decisões são tomadas, património público é arruinado, vendido ou está em processo de venda. O projeto do capital ganha contornos mais nítidos e extremos em um tempo que parece encurtado: direitos antes tidos como garantidos são anulados2, a conhecida desigualdade ganha impulso e atualiza o mapa da fome3, em paralelo à exterminação de recursos naturais: fogo na Amazónia, óleo no Atlântico, lama no Rio Doce. As vidas estão sendo dizimadas de muitos modos, de que a pandemia é também uma parte. “E daí?”, foi a resposta.

Zero Real, 2014 Cildo MeirelesZero Real, 2014 Cildo Meireles

Ainda não se sabe quantos já morreram em consequência desse agravamento social, económico e político, nem se mediu com exatidão o quanto as liberdades já foram cerceadas a cada dia4. A velocidade dos acontecimentos atropela a urgência dos factos. Perante isto, mais do que reagir a cada novo escândalo, notícias de sensação, a caricatura da política, danças de ministérios ou afirmações escandalosas, conjecturas ou apenas formas de testar a opinião pública, o desafio maior é o de assumir uma narrativa própria, alternativa, justa, feita de verdade.

Nesse sentido, não há contradição entre a disputa da memória e a disputa do terreno social actual. É preciso falar da ditadura de 1964, porque os fantasmas brasileiros nunca foram enfrentados e porque se substitui a tortura de Estado política pela repressão social. Os porões das delegacias nunca estiveram vazios5. Não haver uma polícia política não impede a existência de uma Política polícia. A trama em torno do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, num caso que cada vez mais aproxima grupos e indivíduos do Estado, milícias e a família do próprio presidente da República, é um dos fortes indicadores dessa conjuntura.

Por um lado, há que compreender o cenário devastador desenhado em relação ao desmonte do Estado e à ascensão da violência urbana e rural, mantendo ativa a batalha das ideias; por outro, há os desafios de reorganização social, disputas permanentes na definição de novos rumos. Há uma forte disputa de imaginários.

Daí a urgência de falar do Brasil.

Linha de força. 1965. Pedro Geraldo EscosteguyLinha de força. 1965. Pedro Geraldo Escosteguy

Falar do Brasil

De Portugal, um vídeo viralizou no dia da primeira volta das eleições brasileiras à presidência do país (7/10/2018). Em frente à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, único local de votação do pleito na capital portuguesa, vê-se um conflito envolvendo eleitores brasileiros, quando um rapaz identificado entre os apoiadores bolsonaristas é acusado de fascista. De pronto, ele responde: “Isso mesmo. Sou fascista, sou italiano, sou branco e sou hétero. Sou fascista, mesmo”. 

O episódio, debatido nas redes sociais e na comunicação social portuguesa6, evidenciou o estranhamento em ver um aparente imigrante professar uma doutrina de base antidemocrática e ultranacionalista. Ou ainda de um jovem reivindicar supostas origens étnicas, de cor e de orientação sexual para transformar um insulto em elogio. O pano de fundo é complexo, com nuances e, não por acaso, o conceito de fascismo foi a principal dúvida dos brasileiros em 20187, num vocabulário que não esfriou nos anos seguintes. A palavra intriga, sugere muitas pistas, como se pode entender pelo interesse suscitado por um livro joco-sério de 2019, de Rui Zink, Manual do bom fascista. Aí se entra num mundo onde o “bom fascista” não se deixa insultar porque “não só não o é (…) como não haveria grande mal se o fosse”8

E porque falar do Brasil, em Portugal?

O debate sobre a conjuntura brasileira não se justifica na sociedade portuguesa apenas quando se é brasileiro residindo em Portugal, ou se tem laços com o Brasil. Também não se esgota nas relações estratégicas entre os dois países, os seus laços culturais, os fluxos contínuos de imigração nos dois sentidos. 

Um outro viés é entender a importância e as implicações globais da história recente do Brasil. O uso de fake news como estratégia eleitoral, a mentira como arma política, o culto da violência, o apelo a valores chauvinistas e a defesa de uma pretensa naturalidade nacionalista e rácica, baseada em valores religiosos hostis, a mitificação de uma pretensa supremacia civilizacional, o medo e o antagonizar da diferença, o elogio da ignorância, a difusão de preconceitos e concepções contra as ciências em geral, e os saberes sociais e humanísticos em particular, o desprezo pela vida, o culto da competitividade agressiva, a defesa dos mais fortes e dos privilégios estabelecidos, nada disto é exclusivo do Brasil.

O avanço em poder e visibilidade de uma extrema direita, com traços e estratégias fascistas ainda que em regimes autodenominados democráticos, é notado em várias partes do mundo, como uma pandemia. Sabemos que as palavras se atualizam. Não é tudo igual, mesmo que no combate político corrente possa haver confusões e usos inadequados das palavras. Por isso mesmo importa discutir o valor do que se diz e a razão do uso de conceitos em diferentes circunstâncias, ontem, como hoje.

Falemos de fascismo. Como experiência histórica de regime, identificamos as características próprias de uma série de movimentos de extrema direita, presentes em diversos países ocidentais entre as décadas de 1920 e 1940. 

O fascismo dos anos 1930, em Itália, não se reproduziu em cópia portuguesa, por exemplo. Diz-se Estado Novo, o “fascismo à portuguesa” no século XX, a mais longa ditadura da Europa. Salazar não era o líder carismático nos moldes de Mussolini. Também carrega traços únicos o fascismo alemão, nazista, fortemente antissemita e com preponderante componente racial, pertencendo a uma mesma família autoritária, agressiva e socialmente comprometida.

Para compreender o recuo dos regimes fascistas é preciso regressar à conjuntura da guerra e do pós-guerra e à eclosão da Guerra Fria. A conjuntura alterou-se, mas as matrizes do pensamento fascista não desapareceram, o nacionalismo agressivo, o ódio ao movimento operário e a negação do conflito social através da tentativa do seu esmagamento, físico e simbólico, o culto da raça como imaginário de mobilização, a defesa sem limites do poder dos grandes grupos económicos e financeiros, a justificação da repressão violenta e a limitação do contraditório, com ou sem instituições censórias, a refutação da política em geral e da democracia em particular, o que implica assumir a acção própria como não política.

Falar de fascismo? de totalitarismo? de ditadura? Como dissemos, as palavras não são inócuas nem universais. Mudam de sentidos e de eficácia. Por isso, quando se recusa a palavra “fascista” como caracterização, pode estar a fazer-se um de vários exercícios, negar as características de um movimento, negar as suas afinidades, sobrevalorizar as suas diferenças, mas também negar a eficácia comunicacional e política do seu uso. O paradoxo dos nossos dias é o de se notar que, ao mesmo tempo que existe um grande pudor ou mesmo aversão face à palavra “fascista”, se dá um movimento inverso face à palavra “totalitarismo”. Como se, perante o que é irredutivelmente específico no fascismo, se diluíssem todas as distinções no que é totalitário, conceito que se estende a situações muito distintas de ditaduras várias. Nem todas as ditaduras são fascistas, como é evidente, e aceita-se o uso acrítico e alargado de totalitarismo?

A questão é saber do que se fala, e não de disparar palavras como pedras. Há elementos fascistas na conjuntura atual no Brasil e em Portugal? Encontramo-los nos lugares mais inocentes, nos desabafos contra a política e os políticos, no culto do chefe. Também nas praxes académicas que, não sendo fascismo, transportam alguns dos seus focos. Para além das suas justificações como dinâmica de grupo, as praxes popularizam hierarquias, interiorizam preconceitos, naturalizam a humilhação que se pratica com base nesses preconceitos, cultivam o trajar como distinção, como uniforme, máscara, descaracterização do individuo pela casta, diluem a diversidade das partes em prol de uma homogeneização de aspecto (podemos até dizer totalitário), mesmo aparentemente apolítico ou exatamente porque aparentemente apolítico. Mais importante, temos as emergências xenófobas, racistas, homofóbicas, misóginas, o amalgamar de toda a diferença na classificação de “marxismo cultural”, classificação que, a despeito de se pretender vaga, está ancorada nas bocas da extrema direita para identificar os alvos a abater. O facto de alguma direita, ainda com veleidades de democrática, aderir a esta designação de alvo não a democratiza. Significa, como sempre significou, a convicção de que quem não está por nós está contra nós, que toda a diferença é, afinal, identificável no comunismo, na traição, na rejeição do que é próprio da comunidade, nos seus valores ancestrais, no género e na cor da pele dos seus heróis.

E temos hoje em força a palavra “colaborador”, a lembrar a mentalidade corporativa, negando a dimensão assalariada e procurando esconder, sob uma mentira, as relações desiguais de trabalho.

Na pauta e linguagem da extrema direita, a que uma parte da direita até aqui moderada vem aderindo, mistura-se como novidade execrável o que é de um percurso de consciência de direitos humanos de vários séculos e de lutas sociais muito antigas. Daí que se vejam as raízes antidemocráticas e mesmo antiliberais destas posições.

Perceber as tensões e tragédias brasileiras de hoje inscreve-se, assim, no esforço de entender problemas que são globais, com a particularidade de haver uma história e uma tradição escravocrata que enforma ainda hoje, em democracia, as relações e o imaginário de poder. E com a especificidade que vem da importância das questões racial e indígena no conjunto dos movimentos sociais de longa duração.

Bolsonaro e o que ele representa fazem parte dessa violência característica, a negação da política institucionalizada, como os partidos políticos e o Parlamento, a judicialização da política, a incompreensão da separação dos poderes. E, também, a produção de inimigos generalizados para os ataques, como a destruição de locais simbólicos para a democracia. É a placa da Marielle, é a exaltação da tortura, é a banalização da violência. Assistimos a uma visão do mundo que chega ao poder com amplo apoio popular, embora seja fortemente antidemocrática.

 

O conceito de fascismo é útil e necessário, mas não esgota as complexidades desse tempo. Não dá conta da sensibilidade de quem espera uma mão forte para conduzir a nação em direção a um futuro melhor. O fascismo também não explica, como conceito, os efeitos perversos do galopante avanço do neoliberalismo, no Brasil como no resto do mundo, e de como a extrema direita, nos seus programas, quando os tem, se inscreve totalmente numa agenda económica neoliberal, entregando todos os recursos e centros de decisão económica a grandes grupos e destinando o aparelho de Estado apenas a funções repressivas. E a adesão do capital aos regimes autoritários faz acender todos os alertas dos riscos que se correm.

 

O curso sobre o Brasil e o golpe, também em Lisboa

No início de 2018, o professor de ciência política Luis Felipe Miguel lançou na Universidade de Brasília (UnB), a disciplina optativa do “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”. A disciplina, apesar de ter cumprido todos os ritos da instituição, foi publicamente criticada pelo então ministro da Educação9, o que despertou intensa reação à tentativa de censura e cerceamento da autonomia universitária durante o governo de Michel Temer. 

Livro de Carne (1977-78), de Artur Barrio.Livro de Carne (1977-78), de Artur Barrio.

Também em Lisboa se realizou um programa tendo como inspiração a iniciativa de diversas universidades brasileiras10 e estrangeiras11 de oferecer disciplinas onde se discutisse o Brasil actual e os seus constrangimentos políticos e culturais. Tratou-se de um curso livre que teve lugar em Janeiro / Fevereiro de 2019 na Universidade Nova de Lisboa, em parceria com o Coletivo Andorinha, com o título “O Brasil contemporâneo e a democracia: problemas políticos, jurídicos e culturais”.

O curso propôs grandes eixos temáticos em torno dos processos culturais, históricos e jurídicos que permitissem entender as fraturas democráticas na conjuntura brasileira atual. Tendo como referência temporal o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e os conflitos ulteriores, havia espaço para debater os desafios da atualidade, na sequência das eleições presidenciais que entretanto tiveram lugar, não apenas numa perspetiva política e constitucional, mas também tendo presente as dinâmicas culturais e sociais em que todo este processo se desenvolveu e ondas de choque geradas. Partindo de episódios recentes, percorreram-se de modo transversal diferentes temporalidades nas questões sociais e culturais, que atravessaram a historiografia brasileira, bem como seus pontos de contacto, cruzamento e diferenciações com outras historiografias. O que incluiu pensar o modo como a cultura, a educação, a comunicação e seus agentes interferem e reagem a conjunturas autoritárias e de exceção; o espetro dos fascismos; a construção de políticas de memórias, mas também os mecanismos de produção de silenciamentos e esquecimentos.

Reuniram-se saberes distintos, de constitucionalistas, de historiadores, de sociólogos, de estudiosos de literatura e das artes, da comunicação e semiótica, de estudiosos da cultura e do movimento indígena. As sessões foram vivas e as discussões ultrapassaram, como se pretendia, as salas de aula, numa primeira fase com visitas de estudo e sessões de cinema e, numa segunda fase, repercutindo os temas debatidos em outros espaços12.

 

E este livro?

Este livro não é a tradução em papel do curso realizado. É uma consequência dessa vontade de reunir informação, de conhecer, de divulgar e de levar mais longe o questionamento da realidade. Este livro é feito também de contributos e de autores que se juntaram já depois do curso ter acabado, a partir da mesma ideia e da mesma equipa de base. Nesse esforço coletivo, é necessário destacar a participação contínua de Adelaide Gonçalves, do Plebeu Gabinete de Leituras, professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do MST e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Nos muitos trânsitos Brasil-Portugal, Adelaide esteve desde o início do planejamento do curso e na feitura deste livro, incluindo a recolha de alguns dos artigos de investigadores brasileiros para esta publicação.

Tudo somado é parte de um processo que certamente contará com outras iniciativas futuras – as reflexões suscitadas pelo Brasil contemporâneo são de interesse contínuo, assim como a multiplicidade de perspectivas e temas são de abundante complexidade.

Este livro é formado por um conjunto de leituras sobre a atualidade brasileira que, explícita ou implicitamente, compartilham algumas compreensões sobre esta mesma realidade, embora mantenham uma diversidade de pensamento e abordagens em áreas distintas. Se é preciso “dar nome aos bois”, como propõe Michael Löwy, os textos deste livro não se furtam a chamar “golpe” à sucessão de eventos que destituiu Dilma Rousseff em 2016.

A prática, conhecida e recorrente na história latinoamericana, da qual o Brasil faz parte, aparece agora em uma nova modalidade inaugurada pelas oligarquias locais, com o sempre vigilante apoio dos Estados Unidos, como Löwy destaca: é o golpe de Estado legal, testado antes do Brasil nas Honduras e no Paraguai. No artigo que abre o livro, o sociólogo e filósofo realiza uma síntese sobre esta rutura recente. Se o golpe de 1964 é visto como tragédia, o de 2016 é a farsa que contribuiu para a ascensão de um apologista da ditadura, que defende explicitamente a tortura e a morte. Como um prenúncio da destruição que viria, há uma cena simbólica. Durante a sessão da Câmara dos Deputados, que votou a autorização para abertura de processo de impeachment, Bolsonaro dedica seu voto a um notório torturador, o primeiro militar condenado pela Justiça brasileira pela prática de tortura durante a ditadura de 1964. Aquele que seviciou, entre outros, a jovem militante Dilma Rousseff.

A força da política nos trâmites e argumentos mobilizados durante esse processo, muitas vezes afirmados como de natureza “técnico-jurídicos”, são analisados por Marco Kalil Filho, no artigo “As aparências enganam: natureza jurídica, regimes de crença e as expectativas em torno do impeachment de Dilma Rousseff”. Em causa está a disputa de uma narrativa que contou com o apoio decisivo dos meios de comunicação brasileiros. Num diálogo entre o Direito e a semiótica, o autor reconstitui a formação de regimes de crenças difundidos pelos medias que muito contribuíram para a criminalização de Dilma, sem que se soubesse exatamente qual o crime praticado. “A verdade e a falsidade estão em disputa discursivamente em uma arena com implicações éticas e estéticas”, como reforça Kalil.

Nesse “novo tipo de golpe”, a ausência de uma ação militar foi uma característica fortemente debatida, enquanto um grupo de juízes e promotores ganhava protagonismo antes e depois de maio de 2016. Em “A Lava Jato em tempos de Vaza Jato”, Marcelo Uchôa discute a desconstrução da credibilidade desse grupo, que ganhou protagonismo nacional com a Operação Lava Jato e teve no juiz Sérgio Moro sua grande promessa de herói nacional. As revelações de diálogos secretos de Moro com procuradores, iniciadas pelo portal jornalístico The Intercept em maio de 2019, confirmaram uma trama que tinha como um dos seus propósitos centrais a prisão do ex-presidente Lula, tirando-o da corrida presidencial.

Já Lincoln Secco demonstra, no artigo “Dinâmica Militar e Ideologia”, que setores militares sempre estiveram atuantes, mesmo após a redemocratização brasileira, sem julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura 1964-1985, acumulando privilégios de casta, por vezes tutelando governos civis e até mesmo mantendo ações secretas ilegais com países estrangeiros. E sempre com papel ativo em golpes de Estado na América Latina. Essa profícua análise faz com que se perceba porque, como arremata Secco, os “militares não voltaram a influenciar a política brasileira porque dela nunca saíram”.

Se está definida uma ruptura em 2016, também estão desenhadas linhas de continuidade, recuos e mesmo equívocos vistos no ciclo anterior, dos quais os governos do Partido dos Trabalhadores não estiveram isentos. Ao longo deste livro, as charges de Carlos Latuff, algumas desenhadas antes de 2016, outras muito recentes, mostram não só a atualidade dos temas, como a gravidade de problemas estruturais, exemplo da violência contra indígenas pelo agronegócio, que agora se aprofundam em ritmo acelerado. Essa perspectiva também é desenvolvida a partir do Mundo do Trabalho por Ruy Braga, no artigo “Contornos do pós-lulismo. Bolsonaro e o desmanche da cidadania salarial no Brasil”. O autor questiona como Jair Bolsonaro, apesar de todos os alertas a respeito do desastre que seu governo para os direitos da classe trabalhadora, e das medidas efetivamente tomadas desde que tomou posse, angariou apoios junto às classes subalternas que também colaboraram para sua eleição.

Por outro enfoque, João Pedro Stédile discute “Os desafios contemporâneos para a classe trabalhadora e o campesinato no Brasil”. Em comum, a compreensão de que está em curso um programa do capital, iniciado por Michel Temer, mas que agora conta com a legitimidade das urnas. No entanto, Stédile defende que um “golpe eleitoral” levou Bolsonaro à presidência, constituindo um governo sem base social, nem projeto para a sociedade, composto por vários núcleos de poder com contradições internas, mas que mantêm entre si uma unidade quanto aos interesses dos grandes grupos económicos. Daí partem os desafios propostos aos trabalhadores e trabalhadoras, com destaque para os do campesinato, como caminho de superação de uma crise internacional.

Essa crise manifesta-se nos grandes centros e tem seu processo discutido na entrevista com a urbanista Ermínia Maricato. De passagem por Lisboa, em 2019, Ermínia enfatiza as atividades dos movimentos sociais e das ações educativas como perspectiva de superação. 

Há alternativas, há outro possível, mesmo quando se compreende que a crise brasileira passa pelo entendimento de uma nova configuração geopolítica internacional e das políticas de controle dos Estados Unidos para a América Latina, numa ofensiva global mais agressiva para manter sua zona de influência e apropriação de territórios e recursos naturais. Assim desenvolve Miguel Enrique Stédile no artigo “A aplicação das Guerras Híbridas no Brasil”.  Para o caso latinoamericano, práticas como o Lawfare, fake news, a influência dos grantes oligopólios tecnológicos, são discutidos sob a sombra das experiências fascistas. E se o inimigo não é invencível, nem absolutamente eficaz, o autor alerta para o facto de que é igualmente certo que não será derrotado pelos seus próprios métodos.

Para esse enfrentamento, há chaves decisivas no pensamento, na história, na experiência e na arte ibero-americana. Em “José Martí e a actualidade brasileira”, Isabel Araújo Branco destaca o potencial de contribuição do poeta, filósofo e escritor cubano, em resposta tanto ao colonialismo europeu como ao neocolonialismo norte-americano. A sua atualidade se demonstra na oposição ao que Bolsonaro representa, no ataque aos povos indígenas, na estrutura que o sustenta e que inclui o agronegócio, madeireiros, latifundiários, empresas de mineração. Numa escalada de autoritarismo, em que a censura ao cinema, à literatura, ao ensino já é um dado concreto.

Essa busca por caminhos é também explorada por Cristina Pratas Cruzeiro no artigo “Arte e conflito político no Brasil: Práticas e tradições”. A autora percorre o desenvolvimento das práticas artísticas ativistas no Brasil desde a ditadura militar até à actualidade, destacando casos em torno do coletivismo. O potencial transformador e transgressor da arte é visto numa perspetiva comparativa por Henrique Chaves em “Da Quinta do Mocho a Paraisópolis: dinâmicas de transformação ou repressão em torno de práticas artísticas. Uma reflexão Portugal-Brasil”. E se a arte produzida em territórios periféricos integra o rol de repressões e segregações que essas populações enfrentam – incluindo os aparatos policiais e a discriminação por parte de medias – esta é também a via de inserção urbana e de busca por garantia de direitos.

A intensa transformação da imagem internacional brasileira, ancorada fortemente na devastação ambiental e erosão social, é questão desenvolvida por Thiago Ávila em “Brasil, o país do impossível: golpe, pandemia, depressão econômica, destruição da Natureza, ameaça fascista e a necessidade de uma saída popular para a crise”. O esforço é de transformação. E se o “mundo não vai acabar”, como sussurra o palhaço do poema quarentenário #4, de Lucas Augusto da Silva, é sabido o poder dos livros e da literatura para a construção de novos mundos, aliados segundo a lição de Martí de que “conhecer é resolver”.

 

ÍNDICE 

Apresentação - Discutir o Brasil Contemporâneo

João Luís Lisboa, Débora Dias, Henrique Chaves, Lucas Augusto da Silva e Carlos Hortmann.

 

Impeachment, Carlos Latuff 

 

Da tragédia à farsa: o golpe de 2016

Michael Löwy

 

As aparências enganam: natureza jurídica, regimes de crença e as expectativas em torno do impeachment de Dilma Rousseff

Marcos da Veiga Kalil Filho

 

Lei de anistia, Carlos Latuff

 

Dinâmica Militar e Ideologia

Lincoln Secco

 

Contornos do pós-lulismo. Bolsonaro e o desmanche da cidadania salarial no Brasil

Ruy Braga

 

A Lava Jato em tempos de Vaza Jato

Marcelo Ribeiro Uchôa

 

Ninguém solta a mão de ninguém, Carlos Latuff

 

Os desafios contemporâneos para a classe trabalhadora e o campesinato no Brasil

João Pedro Stédile

 

2013-2019: Crise urbana, política e social no Brasil e formas de resistência. Entrevista a Ermínia Maricato

Henrique Chaves, Lucas Augusto da Silva, Ana Carolina C. Farias e Inês Vieira

 

A aplicação das Guerras Híbridas no Brasil

Miguel Enrique Stédile

 

O agronegócio e a questão indígena no Brasil, Carlos Latuff

 

José Martí e a actualidade brasileira

Isabel Araújo Branco

 

Arte e conflito político no Brasil: Práticas e tradições

Cristina Pratas Cruzeiro

 

Da Quinta do Mocho a Paraisópolis: dinâmicas de transformação ou repressão em torno práticas artísticas. Uma reflexão Portugal-Brasil

Henrique Chaves

 

Presidência do Brasil, Carlos Latuff

 

Brasil, o país do impossível: golpe, pandemia, depressão econômica, destruição da Natureza, ameaça fascista e a necessidade de uma saída popular para a crise

Thiago Ávila

 

quarentenário #4

Lucas Augusto da Silva

 

Vai ter luta, Carlos Latuff

  • 1. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu em 11/12/2018, ainda antes de assumir oficialmente o cargo, priorizar a tramitação no Congresso Nacional do projeto de lei sobre criação do Estatuto do Nascituro, duramente criticado por dificultar o aborto legal mesmo em casos não puníveis pelo Código Penal brasileiro: risco de vida à gestante e estupro, além de gravidez de feto anencéfalo. Damares defendeu publicamente o artigo do projeto de lei que estipula que o estuprador tenha que pagar pensão alimentícia para a criança ou, não sendo identificado, que o Estado ofereça um valor mensal à vítima que continuar a gravidez, o que foi chamado de “bolsa estupro”. (www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=770928). Cf. Exame. 2018. “Damares Alves defende “bolsa” a mulheres estupradas”, 11/12/2018 (https://exame.com/brasil/damares-alves-defende-bolsa-a-mulheres-estuprad...).
  • 2. Conferir neste livro o artigo “Contornos do pós-lulismo. Bolsonaro e o desmanche da cidadania salarial no Brasil”, de Ruy Braga.
  • 3. Os dados do relatório The state of food security and nutricion in the world 2019, lançado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), indicam retrocesso na segurança alimentar brasileira nos últimos anos, demonstrando que o país está voltando ao Mapa da Fome, do qual tinha saído em 2014. Cf. www.fao.org/state-of-food-security-nutrition/en/
  • 4. Um indicador que atesta o crescimento da violência na sociedade brasileira é a publicação anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conflitos no Campo Brasil. Para o ano de 2019, a publicação atesta um aumento recorde nos conflitos pela água e o maior número de assassinatos de lideranças indígenas. Cf. www.cptnacional.org.br/
  • 5. Sugerimos ver: Teles, Edson; Safatle, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • 6. Como exemplo dos que se manifestaram sobre o episódio, em Portugal, ver Daniel Oliveira, https://expresso.pt/blogues/opiniao_daniel_oliveira_antes_pelo_contrario...
  • 7. “‘O que é fascismo?’: a maior dúvida dos brasileiros em 2018, segundo o Google”, El País, 13/12/2018 (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/12/politica/1544636164_055761.h...).
  • 8. Zink, Rui. 2019. Manual do bom fascista. Porto: Ideias de Ler / Porto Editora. Porto, Ideias de Ler / Porto Editora, p. 27.
  • 9. Ao ter conhecimento da iniciativa na Universidade de Brasília (UNB), o Ministro da Educação e Cultura (MEC), Mendonça Filho, declarou vir a acionar a Advocacia-Geral da União (AGU), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF) para se apurar “improbidade administrativa” por parte dos responsáveis pela criação da disciplina. Em solidariedade e como defesa da autonomia universitária, outras universidades anunciaram que iriam oferecer disciplinas semelhantes. O então ministro se tornou alvo de duas representações – uma no Conselho de Ética da Presidência e outra na Procuradoria Geral da República – por violação da autonomia universitária e da liberdade de cátedra e recuou nas suas intenções.
  • 10. Foram mais de 100 cursos em diferentes modalidades, de aulas a atividades de extensão. Como a Universidade de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), entre outras. Em 2018, foi realizado um seminário na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Cf. www.brasildefato.com.br/2018/05/16/universidades-que-ofertaram-cursos-so...
  • 11. Casos da Universidad de los Andes, Bogotá, e a Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM.
  • 12. Durante a realização do curso, foram realizadas atividades paralelas na Quinta do Mocho, Museu do Aljube, Espaço Cultural Valsa, Livraria Sá da Costa, em torno de temas como arte urbana, transições democráticas ibero-americanas, poesia de resistência e ataque aos indígenas, respetivamente.

por vários
A ler | 8 Setembro 2020 | Bolsonaro, Brasil, Coletivo Andorinha, homofobia, racismo, Trump