A esquerda portuguesa e a luta contra o racismo – a propósito de um artigo de José Pacheco Pereira
No fim de uma semana na qual o racismo se assumiu enquanto um tema político importante na vida política portuguesa, o historiador José Pacheco Pereira (JPP) escreveu um artigo de opinião em torno de Marx, dado à estampa no jornal Público, no dia 26 de janeiro. Tal como outros leitores que têm estima pelo pensamento de Marx, comecei por me alegrar com o feito; não é todos os dias que a imprensa portuguesa se interessa pelo velho barbudo, sobre cujo nascimento acabaram de passar duzentos anos. Devo confessar, no entanto, alguma acrimónia quando, após completar a leitura do dito artigo, inicio a redacção das linhas que se seguem, as quais visam contribuir para o debate acerca da centralidade ou não que o combate ao racismo deve assumir entre as esquerdas. O presente texto organiza-se em duas partes: na primeira, questiono a prática de leitura de Marx que JPP desenvolve; na segunda, a inconsistência da sua crítica às famigeradas política de identidades.
O marxismo de JPP
No seu artigo, JPP vem a terreiro reivindicar para a sua guarda o cadáver de Marx, que pretende colocar a salvo das profanações que estará a sofrer às mãos de uma esquerda radical chic. Esta esquerda – que gravitará em torno do Bloco de Esquerda – tenderá a dar excessiva importância ao antirracismo e ao feminismo e a afastar-se do propósito inicial de Marx, que seria o de defender a classe operária da exploração capitalista. Discutirei mais adiante a pertinência da crítica que JPP dirige ao que reputa de radicalismo chic, mas gostava de começar por não deixar passar incólume o facto de o seu artigo retomar uma prática dogmática de leitura e discussão de Marx. O procedimento que JPP segue é este: identificar um núcleo essencial do pensamento de Marx, definir os seus limites e assinalar quem os trespasse. Esta atitude trata de arreigar o marxismo a um exercício narcísico, de seita, e vem a contrário do esforço de auto-crítica que não poucos marxistas têm desenvolvido no sentido de se abandonar a ilusão de uma apropriação genuína e autêntica de Marx. E, claro, como toda a operação fundamentalista, a leitura dogmática a que JPP sujeita Marx é mistificadora, porque a leitura que JPP ou qualquer um de nós façamos de um dado autor diz tanto sobre este como sobre quem o lê. A meu ver, a esquerda e o marxismo não precisam desta atitude.
Acresce ainda que o recurso de JPP a Marx enquanto argumento de autoridade é tanto menos aceitável quando o que sobre ele escreve pouco reflecte o conhecimento dos principais debates em que a sua obra tem estado envolvida. Este conhecimento está ausente do modo abrupto como JPP pretende resolver o problema da relação entre clivagens de classe, de um lado, e clivagens raciais ou de género, do outro. Ao contrário do que o artigo de JPP faz supor, existem no próprio campo marxista posições divergentes – mas igualmente sustentadas na leitura de Marx – em torno deste assunto. Atalhando caminho nesse debate: se há marxistas que entendem que a classe social é a principal razão determinante das relações de poder que grassam nas nossas sociedades, há também marxistas que entendem que essa razão se intersecta com discriminações raciais e de género, de tal modo que uma análise do capitalismo e uma política que o combata devem montar praça no terreno dessa intersecção.
O identitarismo de JPP
Mas a principal perplexidade que a leitura do artigo de JPP me suscita tem que ver com a inconsistência da crítica que dirige às chamadas políticas de identidade. Tal inconsistência manifesta-se quando JPP considera que as temáticas racial e de género são questões identitárias e, pelo inverso, desconsidera que a nação e a própria classe sejam temáticas que assim também podem ser compreendidas e mobilizadas. Entendamo-nos: a ideia de que o racismo e o género não devem ser matéria de mobilização política é seguramente legítima e não está em causa o direito de JPP a subscrevê-la; outra coisa é JPP vender a ilusão de que uma leitura classista ou nacionalista do mundo e da vida sejam necessariamente menos identitaristas do que o feminismo ou o antirracismo.
De resto, da inconsistência da crítica de JPP à política de identidades é ainda testemunho o modo como o seu artigo se refere à religião. Tal como a classe e a nação, para JPP o radicalismo chic desprezaria a importância da religião ou a ela levianamente se oporia. Ora, esta acusação não anda certamente a par da crítica que José Pacheco Pereira vem dirigindo, de há anos a esta parte, a quem, à esquerda e no campo do marxismo, em razão de uma alegada mundivisão multiculturalista, supostamente condescenderia com o fundamentalismo islâmico ou com o islamismo tout court. Fica por isso a suspeita de que, mais do que o alegado desprezo pela importância das temáticas da nação e da religião, o que incomoda JPP é o facto de a tal esquerda radical chic não prestar tributo às formas particulares de vinculação nacionalista e religiosa que são queridas a JPP. Estas formas particulares exprimem-se tanto no tipo de críticas que JPP frequentemente dirige à União Europeia (e que tendem a mobilizar mais o arsenal idenditário dos nacionalismos do que as críticas da economia política caras à esquerda marxista) como na sua defesa da inscrição do cristianismo enquanto referencial civilizacional europeu.
Finalmente, não queria deixar de sublinhar que, ontem como hoje, não é difícil encontrar exemplos que mostram que a esquerda e o marxismo foram tanto mais transformadores quando articularam uma crítica de classe e uma crítica antirracista do mundo em que vivemos. Se o PCP ainda hoje insiste na necessidade de ler Marx com Lenine, é também porque a memória positiva do encontro entre movimento operário e movimento anticolonial subjaz tanto à história da disseminação mundial do comunismo como à Revolução de Abril de 1974. E se JPP procurar pela experiência política de governo que, na Europa de hoje, mais tem feito pelo combate às desigualdades económicas e sociais, encontrará a cidade dirigida pelo projecto Barcelona em Comum, de Ada Colau, que nunca colocou o combate ao racismo e a necessidade de uma política feminista a reboque do que quer que seja.