O mundo de Amílcar Cabral - introdução
Amílcar Cabral nasceu em 1924 em Bafatá, na atual Guiné Bissau. Nas décadas seguintes, a sua história foi de constante movimento. No início dos anos 30, partiu com a família para Cabo Verde, onde fez a escola. Em 1945, mudou-se para Portugal com o objetivo de frequentar a universidade, tendo-se licenciado em Agronomia. No início dos anos 50, regressou à Guiné, como engenheiro agrónomo, ao serviço do Estado colonial português.
Ainda durante esta década, prestou serviços a empresas privadas em Angola. E foi nestes mesmos anos que a luta anticolonial se constituiu como o seu horizonte de vida, de tal modo que, na viragem para a década de 60, e com outros camaradas angolanos, guineenses e são-tomenses, se instalou em Conacri, capital da vizinha República da Guiné, que recentemente se libertara da tutela colonialista francesa.
A partir dessa cidade africana, em articulação com outros dirigentes e comandantes do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) — como Aristides Pereira, João “Nino” Vieira ou Pedro Pires —, Amílcar Cabral dirigiu a luta levada a cabo por esse movimento de libertação, incluindo — a partir de 1963 — a guerra contra as tropas portuguesas na Guiné-Bissau. Foi assassinado em janeiro de 1973 e em setembro desse mesmo ano o PAIGC declararia unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, condição que nas semanas e meses seguintes seria reconhecida por dezenas de Estados.
Conacri foi o quartel-general do PAIGC por várias razões, entre as quais o facto de naquela capital africana se encontrarem embaixadas de países de diferentes continentes, o que facilitava a internacionalização da luta contra o império português. A par das relações com outros movimentos e Estados africanos, logo no início dos anos 60 estabeleceram-se com regularidade os contactos com a República Popular da China, a Checoslováquia e a União Soviética, garantindo-se ao PAIGC apoios substanciais a nível material e diplomático. A estes somou-se, mais tarde, um envolvimento especialmente próximo por parte de Cuba, cujos dirigentes rivalizaram com soviéticos e chineses na liderança da histórica aliança ideológica e estratégica entre o internacionalismo comunista e os movimentos anticoloniais.
Já nos últimos anos da guerra, a ajuda humanitária proveio de governos do norte europeu, sobretudo da Suécia. Se Portugal continuou a beneficiar dos seus laços com aliados do chamado Bloco Ocidental, estas contribuições e apoios — juntamente com iniciativas de solidariedade desenvolvidas noutros países europeus e norte-americanos por organizações não-governamentais, partidos de oposição e indivíduos desalinhados com a agenda da NATO — constituíram uma vasta rede internacional e transnacional que ajudou ao sucesso da luta de libertação.
Se atendermos à dimensão da Guiné Bissau e de Cabo Verde, bem como ao lugar secundário do império português na cena internacional, a extensão da rede que envolveu a luta do PAIGC e a figura de Cabral foi surpreendentemente ampla. Cobriu a África das independências, onde só no ano de 1961 haviam sido constituídos 17 novos países, fazendo desmoronar os impérios coloniais europeus. Estendeu-se à China e Coreia do Norte, ao Caribe, a diversos estados do leste da Europa, alargou-se a toda a Escandinávia e encontrou pontos de apoio em democracias ocidentais como o Reino Unido, França, Itália, Bélgica, Holanda, República Federal da Alemanha, Canadá e Estados Unidos da América. Ao mesmo tempo, as palavras de Cabral foram reproduzidas e traduzidas em múltiplas línguas, em filmes e publicações que circularam internacionalmente, tendo sido escutadas em fóruns como a Organização das Nações Unidas, a Organização de Unidade Africana ou o Movimento dos Não-Alinhados.
Tal rede e visibilidade permitiu a chegada de armas checas e soviéticas às mãos dos combatentes africanos, o acolhimento de jovens guineenses e cabo-verdianos em campos de treino na Ásia, África e Europa de Leste, o envio de livros escolares ou de material radiofónico sueco para as zonas libertadas ou ainda a formação de cineastas guineenses em Havana. Permitiu também a transfusão de sangue da população francesa para os soldados feridos pelo colonialismo português, a bênção do Vaticano à luta da FRELIMO, do MPLA e do PAIGC ou, ainda, práticas de solidariedade de militantes antifascistas europeus como Mário Pádua, Basil Davidson, Bruna Polimeni ou Mikko Pyhäla.
Mas o apoio não tomou apenas um sentido. Cabral e o PAIGC não foram recetores passivos de apoio externo. Só entre meados dos anos 50 e o ano da sua morte, em 1973, Amílcar Cabral terá realizado perto de centena e meia de deslocações internacionais.
O partido e o seu líder inscreveram as suas ideias e os seus interesses na história do século XX e de quem os apoiou, conciliando diferentes valores e agendas com a sua causa. A odisseia cubana em África tornou-se um elemento central no prestígio internacional do regime liderado por Fidel Castro. Por sua vez, a atenção do Vaticano ao anticolonialismo africano não é dissociável da preocupação da Igreja Católica em disputar as crenças religiosas no que hoje designamos como o Sul Global. E talvez um exemplo fale mais alto do que outros na hora de apurar o saldo às dívidas de solidariedade contraídas no processo de internacionalização das lutas anticoloniais: o ânimo que levaria os capitães do Movimento das Forças Armadas a derrubar o regime fascista português, no dia 25 de abril de 1974, para colocar fim à Guerra Colonial. Por isto também chamámos a esta série de artigos “O Mundo de Amílcar Cabral”. O título pretende sugerir duas ideias: que a trajetória de Amílcar Cabral e da luta de libertação travada pelo PAIGC não pode ser compreendida sem considerarmos a importância dos diferentes nós da rede global mencionada; e que o papel de Cabral e do PAIGC nesta rede, longe de ter sido menor, foi dela mesmo constituinte.
Os 13 artigos que o leitor encontra nesta publicação assumem, cada um à sua maneira, esta dupla dimensão. São escritos por investigadores que se têm dedicado à história do século XX, nomeadamente dos movimentos anticoloniais e das suas relações — ou, no caso dos textos de autoria do sueco Lars Rudebeck e do finlandês Mikko Pyhälä, assumem uma natureza testemunhal. Em qualquer uma das circunstâncias, são textos que fazem luz sobre os principais pontos de apoio externo do PAIGC, mesmo se outros poderiam ter sido igualmente objeto da nossa atenção — é o caso, por exemplo, da vigorosa mobilização social holandesa, da estratégia africana da Alemanha de Leste ou do papel do Senegal e da República da Guiné, dois vizinhos francófonos com projetos políticos distintos e que albergaram bases do PAIGC.
Quanto ao nosso interesse historiográfico por Amílcar Cabral, ele surgiu no quadro de um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e foi desenvolvido no Instituto de História Contemporânea entre 2016 e 2019, intitulado “Amílcar Cabral, da História Política às Políticas da Memória”. Nesse contexto, e entre outras iniciativas levadas a cabo em Portugal, Guiné Bissau, Cabo Verde, Cuba, Reino Unido, EUA e Roménia, publicámos em 2020 um dossier na revista The International History Review intitulado Amílcar Cabral and the Liberation of Guinea-Bissau and Cape Verde: “International, Transnational, and Global Dimensions”, coordenado por Rui Lopes e Victor Barros.
Já esta mesma série de artigos, intitulada “O Mundo de Amílcar Cabral”, foi sendo publicada no caderno P2 do jornal Público durante o primeiro semestre de 2023, acompanhando a exposição dedicada a Amílcar Cabral pela Comissão Nacional para as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, no quadro dos 50 anos desde a morte deste líder africano. A exposição teve lugar em Lisboa, no Palácio Baldaya, e encontra-se agora em Bissau, comissariada por José Neves e Leonor Pires Martins, tendo como uma das suas componentes principais uma secção precisamente intitulada “O Mundo de Amílcar Cabral”. A publicação Cabral Ka Mori – Catálogo de uma Exposição poderá interessar ao leitor na hora de conhecer melhor algumas das ligações já referidas.
Durante os anos 90, o nosso imaginário da globalização inspirou-se frequentemente na paisagem urbana das grandes capitais ocidentais, mas o mundo de Amílcar Cabral oferece-nos uma visão diferente, onde têm lugar imagens da frente ribeirinha de Xangai, da vista panorâmica de Alger ou das ruas de Moscovo.
Uma visão onde as próprias cidades icónicas da globalização celebradas no final dos anos 90 pela cultura política liberal revelam novos sentidos, como é o caso de Nova Iorque, com o seu bairro de Harlem, que uma e outra vez acolheu Fidel Castro e os seus discursos em que citava a palavra de Amílcar Cabral.
De resto, a palavra de Cabral circulou e continua a circular pelo mundo, e o seu nome continua hoje a designar ruas e avenidas em quatro continentes, num constante movimento que vai além das fronteiras da sua vida.
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O Mundo de Amílcar Cabral, José Neves, Rui Lopes, Victor Barros (organizadores), 2024.
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