Introdução a "O Passado, Modos de Usar", de Enzo Traverso
Em meados dos anos 1980, com pouco mais de vinte anos de idade, Enzo Traverso partiu para França. Tinha descoberto a política em Itália no curso da década anterior, mas, diferentemente de outros compatriotas seus, a chegada a Paris não lhe foi determinada por necessidades de ordem política e policial. Licenciado em História na Universidade de Génova, veio a realizar na capital francesa a sua investigação de doutoramento, beneficiando de uma bolsa que lhe franqueou a entrada na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Concluída em 1989, esse mesmo ano em que o Muro de Berlim foi derrubado, a dissertação de doutoramento de Ezno Traverso esteve na origem do seu primeiro livro, Les Marxistes et la question juive (1990).
Fazendo a história de um debate marxista relativamente esquecido, a primeira obra do nosso autor tomou como ponto de partida o escrito de Marx sobre a questão judia (1843) e fez de La conception matérialiste de la question juive, de Abraham Léon (1942), o seu ponto de chegada. Foi apenas o primeiro de vários livros entretanto escritos por Enzo Traverso, mas a relação entre marxismo e judaísmo não mais o abandonou. Por exemplo, numa das suas obras mais recentes, Mélancolie de gauche: La force d’une tradition cachée (XIXe-XXIe siècle), é bem evidente a atracção do historiador por figuras como Walter Benjamin e o filósofo trotsquista Daniel Bensaïd. E logo em 1994 foi publicado, de sua autoria, o livro Siegfried Kracauer: Itinéraire d’un intellectuel nómade (1994).
A atracção de Traverso por figuras como Benjamin e Kracauer não é certamente estranha à sua proximidade a Michael Löwy, sociólogo e pensador francês e brasileiro que orientou o seu doutoramento. Desde os anos 1960 que Löwy vem trazendo a crítica marxista do capitalismo ao convívio com a crítica romântica da modernidade. A este convívio se deve uma parte do interesse de Enzo Traverso pelos modos de usar o passado. Com efeito, a crítica romântica da modernidade é também, argumentou Löwy, uma crítica à concepção progressista da história. Pronunciada pelas grandes guerras mundiais ou pelas crises globais do capitalismo, como a de 1929, a erosão de uma tal concepção progressista acabou por se conjugar com a crise da autoridade científica da própria disciplina da História, questionada pelo pós-modernismo conotado a Hayden White ou, mais tarde, pelo pós-colonialismo de Dipesh Chakrabarty. Sendo que a crise de autoridade científica do ofício historiador, por sua vez, não tem sido estranha à oportunidade de resgate ou invenção de outros modos de usar o passado. A valorização da literatura testemunhal com Primo Levi ou a importância das imagens em movimento com Claude Lanzmann, para citar dois casos abordados em O Passado, Modos de Usar, são exemplo de tal oportunidade.
De resto, uma segunda e mais específica razão do interesse de Traverso pela questão do modo de usar o passado pode ser encontrada nos desafios que lhe foram sendo colocados pelos trabalhos que, a partir dos anos 1990, ele mesmo foi realizando em torno do nazismo e da perseguição aos judeus. O seu interesse por Levi ou Lanzmann compreende-se no contexto da publicação de obras como Les Juifs et l’Allemagne, de la symbiose judéo-allemande à la mémoire d’Auschwitz (1992), L’Histoire déchirée, essai sur Auschwitz et les intellectuels (1997) e La Violence nazie: Essai de généalogie historique (2002). Estes livros tornaram Traverso um historiador com uma voz própria nos estudos sobre a Alemanha nazi, uma voz que se fez ouvir em oposição radical à dos negacionistas, mas que igualmente se diferenciou das leituras do passado alemão inspiradas pelo patriotismo constitucional de Jürgen Habermas.
É então no cruzamento entre os seus interesses pela problemática do romantismo e da modernidade em geral e a sua condição específica de historiador da Alemanha nazi que Traverso se tornou um interveniente qualificado em debates de natureza teórica, epistemológica e ética em torno do ofício historiador. E, nestes domínios, O Passado, Modos de Usar é provavelmente a sua intervenção mais marcante. Traduzido em várias línguas, o livro teve a sua primeira edição francesa em 2005, com o título Le Passé – Mode d’Emploi, que não deixa de glosar o conhecido romance de Georges Perec, La Vie mode d’emploi (1978). A primeira edição portuguesa, essa, data de 2012 e foi da responsabilidade das Edições Unipop, numa tradução de Tiago Avó que agora ganha nova cor.
Uma das razões porque em boa hora a Tigre de Papel reedita este pequeno livro é de índole mercantil. A primeira edição do livro deixou de estar disponível para aquisição. Mas talvez que a razão mais ponderosa que nos traz a estas páginas seja um rumor que nos últimos anos se pressente aquando do derrube de uma qualquer velha estátua erigida em homenagem a um qualquer “grande homem”. Esse rumor, que nos leva de uma pequena cidade ucraniana em que se destruiu uma estátua de Lenine a uma grande metrópole americana em que Colombo se retira do pedestal, murmura que as fronteiras que os historiadores traçam para demarcar o presente do passado são bem mais frágeis do que se supunha. Trata-se, então, de discutir os modos de usar o passado, mas também que país é esse que dizemos passado.
José Neves
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Da contra-capa:
Apoiando-se em vários exemplos da história do século XX – fascismos, Shoah, colonialismo, comunismos –, Enzo Traverso analisa as linhas por que se tecem os diferentes segmentos da memória colectiva, a escrita histórica do passado e as políticas da memória.
Diante de um século a ferro e fogo, a memória reivindica os seus direitos sobre um passado que detém, como num caleidoscópio, uma multiplicidade de configurações diferentes. Da indústria cultural aos museus, passando pelas comemorações e pelos programas educativos, tudo contribui para que se faça da memória do passado uma espécie de religião civil das sociedades contemporâneas.
Muitas vezes, essa religião civil cumpre uma função apologética: conservar a recordação dos totalitarismos de forma a legitimar a ordem liberal, ocupar os territórios palestinos para evitar um novo Holocausto, invadir o Iraque para não repetir Munique (o compromisso das democracias ocidentais com Hitler em 1938)… Em outras circunstâncias, porém, trilham-se outros caminhos da memória, mais discretos, por vezes mais subterrâneos, decididamente críticos, que transmitem a linha vermelha das experiências de emancipação, da utopia, da revolta contra a dominação.
A escrita da história é o resultado de um trabalho que emerge dessa trama complexa de recordações pessoais, de memória colectiva, de saberes herdados, de convenções literárias, de constrangimentos institucionais e de questionamentos políticos ancorados no presente. É essa trama subterrânea que o ensaio de Enzo Traverso se propõe explorar.
Em causa está um vasto debate intelectual que redefine as fronteiras da história e que coloca em causa os processos da sua escrita. Um debate de que Enzo Traverso reconstitui aqui as grandes linhas, de Maurice Halbwachs a Paul Ricœur, de Walter Benjamin a Yosef H. Yerushalmi, de Carlo Ginzburg a Dominick LaCapra.
Enzo Traverso é historiador e professor de Ciência Política na Universidade de Picardie Jules Verne. Publicou, nos últimos anos, inúmeros trabalhos sobre o Holocausto e o totalitarismo.
Nota de Apresentação 9
José Neves
Introdução – A emergência da memória 17
I – História e memória:
uma dupla antinómica? 31
Rememoração 33
Separações 41
Empatia 50
II – O tempo e a força 67
Tempo histórico e tempo da memória 69
«Memórias fortes» e «memórias fracas» 85
III – O historiador entre juiz e escritor 103
Memória e escrita da história 105
Verdade e justiça 116
IV – Usos políticos do passado 125
A memória da Shoah como «religião civil» 127
O eclipse da memória do comunismo 138
V – Os dilemas dos historiadores alemães 147
O desaparecimento do fascismo 149
A Shoah, a RDA e o antifascismo 158
VI – Revisão e revisionismo 169
Metamorfoses de um conceito 171
A palavra e a coisa 177
Nota bibliográfica e agradecimentos 187
Notas 191