Ideologia, ciência e povo em Amílcar Cabral

Discutindo escritos de autoria de Amílcar Cabral (1924-1973) e outros sobre si produzidos, o presente artigo começa por dar breve conta do seu percurso biográfico e por apurar algumas tendências interpretativas manifestas nos estudos cabralianos, abrindo uma janela de onde é possível observar e discutir parte do passado de uma das figuras mais notórias da história africana contemporânea. Em seguida, de forma crítica e complementar ao entendimento que aqueles mesmos estudos fazem da formação científica de Cabral, o texto contribui para o debate de uma questão de interesse histórico e historiográfico mais geral: a das relações entre ciência e ideologia. Traçando as distintas proveniências do conceito cabraliano de “povo”, consideraremos tanto a emergência do pensamento nacionalista anticolonial no antigo Império português como desenvolvimentos dos estudos agrários no Portugal metropolitano.

Amílcar Cabral e os estudos cabralianos

Em 1945, quando chega a Lisboa, Amílcar Cabral tem pouco mais de 20 anos. Nascido em 1924, no território da atual Guiné-Bissau, viajara ainda cedo para Cabo Verde, acompanhando a sua família. No arquipélago, ao largo da costa ocidental de África, o seu percurso escolar é a tal ponto exemplar que o governo português lhe concede uma bolsa de estudos universitários. É essa bolsa que o traz à então capital do Império, mais especificamente ao Instituto Superiorde Agronomia (ISA). Nos primeiros anos em Portugal, frequenta a Casa de Estudantes do Império, construída em 1944, com o objetivo de albergar os estudantes oriundos dos territórios coloniais. Envolve-se em alguns movimentos oposicionistas, que procuram derrubar a ditadura salazarista, e acompanha as notícias de acontecimentos que prenunciam um mundo pós colonial, como a independência da Índia (1947) e a Revolução Chinesa (1949). Mas só a partir de inícios dos anos 1950 é que a atividade política ganha maior importância na sua vida. Ao mesmo tempo que, já licenciado, vai realizando diversos trabalhos de investigação agrária – porexemplo, os estudos de solos em Angola, com Botelho da Costa e Ário Lobo de Azevedo, ou acolaboração com a Brigada de Estudos de Defesa Fitossanitária dos Produtos Ultramarinos –,Cabral começa a tomar parte de encontros políticos que culminarão, em 1956, na formação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), organização que dirigirá no decurso de uma longa guerra contra o colonialismo português (1963-1974).

Assassinado em janeiro de 1973, em circunstâncias que estão ainda por esclarecer cabalmente, Amílcar Cabral já não assistirá à declaração da independência da Guiné-Bissau, tampouco à queda do mais antigo dos impérios coloniais europeus, na sequência da Revolução Portuguesa de 25 de abril de 1974. O seu nome, conquanto, ficará indelevelmente associado atal desfecho histórico, e a seu respeito serão produzidos inúmeros estudos de pendor biográfico, realizados em várias partes do mundo, os primeiros dos quais ainda no seu tempo de vida.

Podemos dizer que Amílcar Cabral tem sido objeto de uma atenção incomparável à que vem merecendo qualquer outra figura política do século XX português – e mesmo qualquer outro dos líderes anticoloniais que se opuseram ao Império português.

Parte dos estudos cabralianos tem valorizado, sobretudo, a importância histórica da ação política de Cabral. É o que sucede, nomeadamente, naquela que se estabeleceu como a sua biografia académica de referência internacional (Chabal, 1983). Escrita por Patrick Chabal que, a partir daí se constituiria como uma figura cimeira no campo dos chamados estudos lusófonos, Amílcar Cabral: revolutionary leadership and peoples’s war dá particular relevo àviragem estratégica do PAIGC em finais dos anos de 1950. Após o 3 de agosto de 1959, quando cerca de meia centena de pessoas são mortas pelas forças de autoridade colonial, que assim procuravam pôr cobro a uma greve de estivadores em Bissau, o núcleo mais ativo do PAIGCdecide bater em retirada da cidade. No rescaldo do chamado massacre de Pidjiguiti, militantes como Cabral partem rumo ao interior, com o objetivo de aí reunirem forças e desenvolverem  uma nova estratégia de combate ao colonialismo. Nessa guerra de libertação, a ação de AmílcarCabral é frequentemente reconhecida – e por Chabal de forma particularmente enfática – como um fator decisivo tanto no nível militar como no diplomático.1 Reivindicando a necessidade do método biográfico contra abordagens que apelidava de “estruturalistas” ou “marxistas” e que dizia desvalorizarem a vontade humana como fator histórico determinante, Patrick Chabal atribui grande importância à figura de Amílcar Cabral e, em particular, ao seu desempenho como líder político e militar.

Essa representação biográfica de Amílcar Cabral como um homem de ação era promovidapor Patrick Chabal contra autores que, ao debruçarem-se sobre o dirigente máximo do PAIGC, haviam enfatizado a singularidade do seu pensamento. Semelhante enfatização tem vindo a intensificar-se nos últimos anos, no quadro do tratamento teórico que a questão da cultura vem merecendo no âmbito dos chamados estudos pós-coloniais, nos quais Cabral é leitura obrigatória. Por exemplo, no recente Routledge companion to postcolonial studies, é dito: Um teórico, mais do que um autor criativo, Cabral tornou-se uma figura importante nos estudos pós-coloniais devido às análises do processo de descolonização efetuadas em publicações em inglês como Return to the source (1973) e Unity and struggle (1980).Tornou-se assim na contraparte lusófona de Franz Fanon, que escreveu sobretudo acerca da traumática guerra de independência da Argélia contra França (1954-1962), e de autores e líderes independentistas anglófonos, como John Kenyatta (Quénia) e Kwame Nkrumah (Gana)2 (Murphy, 2007, p.67).

Mas certa canonização do pensamento ou da produção teórica de Cabral decorreu igualmente de outras vias que não as dos estudos pós-coloniais. Trabalhos há que o apresentaram preferencialmente como um dos grandes teóricos de estratégia militar, ao lado de Clausewitz ou Nguyen Giap (Chaliand, 1982); e outros que reservaram à ideia cabraliana de cultura um lugar específico na história do marxismo, a par de Antonio Gramsci ou Paulo Freire (Marrocu, 1998; Pereira, Vittoria, 2012). Seja como for, qualquer desses enquadramentos a que o pensamento e as ideias de Cabral foram e vêm sendo sujeitos – e outros exemplos poderiam ser referidos – expõe-se à crítica elaborada por Patrick Chabal no início dos anos 1980. Ainda que no seu próprio estudo reservasse um capítulo ao quedesignava como o pensamento político e social de Cabral, na biografia de que era autor, Patrick Chabal manifestava reservas face a análises como as de Ronald Chilcote (1968), investigador norte-americano que ainda em 1968 publicara, no The Journal of Modern African Studies, um artigo significativamente intitulado “The political thought of Amílcar Cabral”.Para Chabal (1983, p.167), trabalhos como os de Chilcote pecariam por tenderem a forçarum corpo heterogéneo de textos – como os que foram escritos por Cabral em circunstâncias e com finalidades diversas – a um princípio de unidade.

Devedoras da própria trajetória biográfica dos biógrafos de Cabral, as divergências entre os seus estudiosos dão-nos bom conselho na hora de avançarmos – nós mesmo – para uma investigação em torno de Cabral. Gostaríamos, nomeadamente, que a nossa leitura evitasse dois riscos. Por um lado, que resistisse à tentação de enformar os textos de Cabral numa ideia de obra, como em parte sucede nas aproximações que acentuam o seu pendorteórico, moldando-o à imagem de um autor, eventualmente pronto a ser canonizado e, desse modo, abstraído das vicissitudes da prática militante que fez o seu percurso. Por outro lado, gostaríamos também de considerar devidamente a importância que a atividade intelectual assumiu na vida de Cabral. Tal consideração nem sempre pauta alguns dos estudos produzidos, desde logo a biografia realizada por Patrick Chabal (1983), em que prevalece um entendimento da linguagem como realidade política segunda, por exemplo evidente quando o biógrafo afirma: “Cabral era, antes de mais, um homem de ação. A sua liderança política é melhor entendida se considerarmos o que ele fez e não o que ele disse” (p.167).

Ora, é tendo em conta esse estado da questão que, mais adiante, propomos contribuir para uma genealogia do conceito de “povo” no discurso de Amílcar Cabral. Ao elegermos um conceito como objeto de análise, na senda da história dos conceitos de Reinhart Kosellecke da Escola de Bielefeld, procuramos devolver às palavras a importância que outros lhes negaram: é para nós claro que, se o conceito de “povo” descreve, identifica e objetiva umadada realidade, ao mesmo tempo constitui, ativa e subjetiva essa realidade (Koselleck, 2011).

Por sua vez, ao realizarmos essa análise genealogicamente – para usarmos termos próximos de Michel Foucault (1979) –, pretendemos praticar uma história das ideias em que elas surgem menos como efeito de um pensamento original do que como elemento constituído numa série de relações com outros sujeitos e objetos. Neste artigo em particular, procurando a multiplicidade de relações históricas que a proveniência do conceito cabraliano de “povo”compreenderá, consideraremos principalmente as relações que o conceito estabeleceu com outras práticas discursivas. Tratamos de procurar perceber o que um autor pretende dizerquando enuncia uma dada palavra, mas, participando da viragem promovida por Pocock, Skinner e a Escola de Cambridge, também tomamos esse ato de enunciação como parte deum contexto linguístico que enreda as próprias intenções do autor (Pagden, 1987). Assim, estaremos particularmente atentos à intertextualidade do conceito “povo”, nomeadamente ao fato de o “povo” cabraliano ter múltipla ressonância nos universos semânticos das ideologiaspolíticas contemporâneas, mas também de conter significados circunscritos no âmbito dossaberes científicos.

O nosso procedimento, refira-se no fim destas notas introdutórias que compõem a primeiraparte do presente artigo, será porventura resultado da nossa exposição a determinadas propostas teóricas, nomeadamente as que foram constituindo-se a partir de expressões foucaultianas como “transferência de tecnologias” (Foucault, 2000, p.333), assim como donosso acesso a material empírico relativo ao caso em análise, como, por exemplo, a seguinte declaração de Luíz Cabral, militante e dirigente do PAIGC: “ele [Amílcar Cabral] falava da luta na mesma forma que falaria de agricultura” (Chabal, 1983, p.53).

Amílcar Cabral e Luiz CabralAmílcar Cabral e Luiz Cabral

De acordo com historiadores que têm analisado a guerra colonial na Guiné, um dos principais fatores do sucesso político-militar do PAIGC residiu na sua capacidade de adaptaçãoao meio. No entender dos biógrafos de Cabral, entre outras razões de ser, essa adaptabilidade refletiria uma sensibilidade própria do biografado, a qual teria sido primeiramente apurada no decurso do seu trajeto profissional. Terminando a licenciatura em 1952, com uma monografiafinal centrada na localidade de Cuba, no Alentejo, sul de Portugal, Amílcar Cabral assumiu nosanos seguintes funções profissionais na área agronómica, regressando à Guiné como diretor adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais. E em 1953 acabou por chefiar uma pequena equipa que procedeu a um recenseamento rural da Guiné, por encomenda do governo português, que se havia comprometido com a realização de um tal estudo junto da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) (Cabral, 1956). A realização desse inquérito – que se compreende no contexto das pressões internacionais a que o colonialismo português foi estando sujeito no quadro do segundo pós-guerra – é assinalada por biógrafos de Cabral como um dos momentos mais importantes do seu percurso. Patrick Chabal (1983,p.48) afirma: “A oportunidade de percorrer toda a Guiné e de falar com os aldeões foi um aexperiência crucial para Cabral, que, tendo sido educado em Cabo Verde e Portugal, não possuía, até então, real conhecimento de África”. Durante aproximadamente cinco meses de1953, Cabral e a sua pequena equipa percorreram o território da Guiné, recolhendo informaçãoe levantando dados que se traduziram em séries de estatísticas sobre a economia rural e, simultaneamente, inteirando-se das dinâmicas sociais e quotidianas locais. Essa experiênciater-lhe-á permitido adquirir um conhecimento do território e da população que se revelaria decisivo para a compreensão quer da estrutura económico-social, quer das circunstâncias político-culturais do país, e, nos anos da guerra, esse conhecimento acumulado reverteriaem favor do próprio sucesso militar do PAIGC (Rudebeck, 1974; Borges, 2008). Combinando planos de ação militar com a tessitura de redes económicas, sociais e culturais que sustivessemos guerrilheiros e, ao mesmo tempo, se substituíssem às funções de governação do território eda população assumidas pelo Estado colonizador e antecipassem um modo de governo póscolonial, a estratégia de guerra do PAIGC fará um uso inesperado dos contatos e conhecimentos humanos acumulados pelo líder no início dos anos 1950 – então como agrónomo, e não como guerrilheiro, a serviço do Estado colonial, e não contra o colonialismo.

Essa relação entre a prática de inquérito científico e a estratégia político-militar convida a que se equacione a questão geral da concertação ou não entre modos de conhecimentoe de ação política. A questão, diga-se, não tem suscitado grande interesse junto dos biógrafos de Cabral, inclusivamente junto dos que procederam, ainda assim, a uma reflexão maisaprofundada acerca do significado da sua formação científica, como foram os casos do já citado Patrick Chabal e, também, de Mário Pinto de Andrade e de Pablo Luke Idahosa. Comecemos pela biografia realizada por Chabal, na qual se argumenta que a formação científica terá levado Amílcar Cabral a ter da política um entendimento mais prático do que teórico, entendimento que Chabal (1983, p.168) classifica como mais realista: “Era fundamentalmente um realista.

A sua aproximação às coisas era empírica e pragmática. Fora treinado como cientista e trabalhara durante quinze anos enquanto agrónomo, depois então comprometendo-se a tempo inteiro com a militância nacionalista. Esta experiência, e a aproximação pragmática à realidade que exigiu, permaneceu uma influência dominante sobre a sua personalidade”. Se, até certo ponto, podemos acompanhar a leitura de Chabal, dela porém nos distanciamos quando apresenta a ciência como fator de subtração de Cabral à influência da ideologia,influência que o biógrafo tem como perniciosa. A interpretação de Chabal procede a uma divisão excessivamente rígida entre ciência e ideologia, como se replicasse a distinção entre coisas e palavras no interior do domínio das próprias palavras, supondo que a terminologiacientífica fará transparecer a realidade e que as categorias ideológicas a iludirão. Esse tipo departição acaba por constranger a análise a que o biógrafo submete a formação científicade Cabral. É o que sucede quando Chabal aponta a monografia final de licenciatura de Amílcar Cabral como um contributo para a inovação do estudo do problema da erosão do solo: consistindo esse contributo no fato de as análises de Cabral integrarem elementos relativos àestrutura económico-social do país, Chabal de imediato restringe as razões de tal integração a um âmbito estritamente científico, como se a genealogia não pudesse remeter a ciência ao utro âmbito que não o da própria ciência – diz Chabal (1983, p.39): “Ainda que em partes da tese Cabral recorra avulsamente a noções marxistas, o que mais claramente ressalta do estudo é a sua ênfase numa correta abordagem científica”. Não admitindo contaminação entre terminologia científica e categorias ideológicas, o biógrafo argumenta que AmílcarCabral não recorria a noções abstratas – em que seriam pródigos o marxismo-leninismo e o seu jargão –, mas que antes falava da “realidade económica, social, política e cultural” (p.65).Em suma, Patrick Chabal (p.186) afirma que Cabral “concebia a teoria como uma descriçãoda realidade e não como um mero exercício especulativo”, mas Chabal, ele próprio, partilhatal conceção da teoria, supondo em consonância que os discursos de Amílcar Cabral estariam isentos de qualquer tipo de enviesamento ideológico. Como se a própria forma de segmentara realidade empírica entre “económica, social, política e cultural” não fosse já determinadahistoricamente por certa cultura científica.

De resto, a ideologia marxista-leninista, na senda da partição feita em Marx entre infra e superestrutura, esteve longe de ser estranha a essa mesma cultura científica. Veja-se como a relação entre modos de conhecimento científico e de ação política em Cabral havia sido analisada, ainda antes da biografia de Patrick Chabal, por Mário Pinto de Andrade (1974).

Intelectual, sociólogo e militante angolano, Andrade foi um dos primeiros a escrever sobre Cabral, que conheceu de perto. Em A guerra do povo na Guiné-Bissau, pequeno livro publicado em Portugal em 1974, mas que retoma textos que já haviam sido publica dos alhures, Andrade afirmava, a respeito do “Recenseamento agrícola da Guiné”, que nesse, “além do recenseamento, tratava-se de aprofundar a análise das estruturas socioeconómicas, de situar o estádio de desenvolvimento social e cultural, de demonstrar os mecanismos de exploração,numa palavra, de conhecer a realidade histórica”; e logo acrescentava: “Mas [Cabral] nãopoderia ter levado a bom termo tal empreendimento se os seus conhecimentos e a suatécnica não estivessem de antemão informados por um aparelho conceptual: o ‘materialismo histórico’” (Andrade, 1974, p.20; destaques no original). Detenhamo-nos por um momento em torno da interpretação de Andrade. Por um lado, e tal como Chabal, Andrade defendeque o “Recenseamento agrícola da Guiné” é exemplar de uma prática de conhecimento que permitira aceder à realidade analisada. Por outro lado, ao contrário de Chabal, Andrade defende Ideologia, ciência e povo em Amílcar Cabral7 que tal conhecimento é possível por causa da filiação marxista de Cabral e não apesar dessa filiação. Ou seja, para Andrade, o materialismo histórico é menos o nome de uma ideologiado que de uma ciência. Tal como muitos dos cultores do materialismo histórico, Andrade o presumia como um método cientificamente superior aos demais, sobre estes recaindo os opróbrios do idealismo e da ideologia.

Aliás, podemos entrever as semelhanças entre o positivismo anti marxista de Chabal eo marxismo positivista de Andrade atendendo, ainda, a outra coincidência. É que ambosencontram na ideologia um sintoma de estrangeirismo. Se Chabal afirma que uma dasvirtudes de Cabral residia no fato de a sua linha política não se expor a modelos e ideiasestrangeiras, mas sim inspirar-se na sua própria história – segundo Chabal (1983, p.142), asua ideologia “baseou-se essencialmente na sua própria história e não em ideias ou modelosestrangeiros” –, Andrade (1974, p.VII) defende que foi sob influência do Partido Comunista Português (PCP), e enformado pelas conceções ideológicas de um marxismo eurocêntrico, que, na segunda metade dos anos 1950, o PAIGC terá erradamente apostado na luta urbana,só depois corrigindo a sua estratégia, após o já referido massacre de Pidjiguiti.

Será apenas nos trabalhos sobre Amílcar Cabral publicados por Pablo Luke Idahosa,professor na York University, Canadá, que nos depararemos com uma forma menos antinómicade compreender ciência e ideologia. Para Idahosa (2002), que publicou um artigo seminal na revista Lusotopie intitulado “Going to the people: Amílcar Cabral’s materialist theoryand practice of culture and ethnicity”, os escritos agrários de Cabral tanto visam recensearuma “cultura de produção” como efetuar uma “sociologia da formação da identidade e dodesenvolvimento”. Cito Idahosa (p.41): ainda que os inquéritos descritivo-interpretativos realizados por Cabral resultassem da necessidade de traçar as bases agrárias da economia mercantil colonial, encontravamigualmente raízes no seu próprio desenvolvimentismo moral, à luz do qual a técnicaé um instrumento do bem-estar popular e no seio do qual é possível observarmostanto uma cultura de produção como as premissas de uma sociologia da formação da identidade e do desenvolvimento.

Seguindo a leitura de Idahosa, não é simplesmente o conhecimento científico que permite aceder à realidade, conferindo realismo à orientação política, como vimos suceder, desde logo, na interpretação de Patrick Chabal. É antes uma determinada conceção político ideológica que, permeando a prática científica, a leva além dos seus eventuais propósitos.

A ideologia política de Cabral teria feito com que os seus trabalhos científicos, apesar deresponderem à solicitação do poder colonial e de servirem à economia colonial, acabassem porsatisfazer preocupações com diferente sentido político ou, pelo menos, moral. Afirma Idahosa(2002, p.36): “A compilação de fatos e estatística feita por Cabral não era, obviamente, puroestudo académico, mas refletia a sua preocupação em ter uma visão direta do que acreditavaserem as experiências efetivas dos colonizados”.

Seguindo a perspectiva de Idahosa, diríamos que a atividade científica é determinada porpropósitos e contrapropósitos político-ideológicos. Tal circunstância obriga as disciplinascientíficas a tornarem-se objeto de uma história que não pode apenas ser uma história internalista da ciência, isto é, uma história em que a origem de mais e melhor conhecimento científico reside apenas e só no desenvolvimento do próprio debate científico. Importa também pesar os fatores político-ideológicos do trabalho científico de Cabral, desde logo ofato de a sua familiaridade com o marxismo e um seu pendor humanista poderem instigálo a convocar o social e o económico para o estudo do meio natural. Contudo, a análise desenvolvida por Idahosa também acusa limites importantes. Nomeadamente, corre o risco de resumir a história da ciência à história das lutas pela sua determinação político ideológica, dispensando a necessidade de uma história do próprio campo científico. Ou seja, na análise de Idahosa, a ideologia determina a ciência, mas o inverso não parece tão admissível.Se na visão de Patrick Chabal (ou na de Andrade) a ciência funciona como um fator de revelaçãocristalina da realidade, luz que ilumina a ação política no sentido do realismo e a liberta doobscurecimento ideológico, segundo a perspectiva de Idahosa a ciência é tendencialmenteconduzida por orientações político-ideológicas. Como se as vicissitudes do campo científicofossem um capítulo secundário na história geral daquelas orientações.Da nossa parte, distanciamo-nos quer das interpretações de Patrick Chabal e de Mário Pintode Andrade, quer da interpretação de Pablo Luke Idahosa. E, sem prejuízo para a valorizaçãode inúmeros elementos empíricos e analíticos que as suas obras oferecem, propomos situar os trabalhos científicos de Cabral no quadro tanto de uma história da ciência como de uma história das ideologias políticas. Tratamos, pois, de colocar questões como a seguinte:preocupar-se-á o “puro estudo académico”, ele também, com as “experiências efetivas doscolonizados”? A nossa resposta a essa pergunta é afirmativa. Se a ciência colonial procurou objetivar os recursos naturais e a qualidade dos solos, nem por isso desconsiderou o queentendia como sendo da ordem do social e do humano, conforme têm indiciado recentestrabalhos sobre ciência no Império português do segundo pós-guerra (Castelo, 2012, 2014;Ágoas, 2012). Acresce que hoje também sabemos, devido a trabalho igualmente recente sobre história da sociologia em Portugal, de autoria de Frederico Ágoas, que os estudos agrários constituíram uma das proveniências da disciplina da sociologia em Portugal. Ao longo do século, incluindo o período ditatorial, uma parte daqueles estudos passou de umaprática de administração da gestão agrícola para – num primeiro momento – a realização deanálises num âmbito que era já o da economia política; e – num segundo momento – parao desenvolvimento de disciplinas como a geografia agrária e a sociologia rural (Ágoas, 2010,p.199). Ora, podemos dizer que essa inclinação sociologizante de uma parte do conhecimento agrário de algum modo se manifestou no percurso científico de Cabral. Isso é visível, desdelogo, no estudo monográfico que realizou como trabalho final de licenciatura. Tal estudo seráum dos testemunhos de uma viragem no campo da pedologia, com essa disciplina assumindopara si uma preocupação ecológica, sendo que por esta última se entende aqui não apenas a atenção à terra, à flora e à fauna, mas também aos homens e às suas relações sociais. Dir-se-ia,pois, que a monografia de Cabral e os seus estudos agrários de algum modo participaramnum mais largo processo de sociologização da agronomia. Ou seja, da nossa parte, não setrata propriamente de discordar de Idahosa (2002, p.43) – pelo contrário – quando este diz:“Se bem que para Cabral não haja uma correlação linear entre produção e cultura, ele quisafirmar uma afinidade importante entre o modo como as pessoas produziam e as suas visõesda vida e do mundo”. Mas, sim, tratamos de situar a asserção dessa afinidade como efeito,Ideologia, ciência e povo em Amílcar Cabral9 quer da motivação político-ideológica de Cabral, quer do seu trajeto profissional e científico,como veremos em seguida a propósito da genealogia do conceito cabraliano de “povo”.

“Povo” em Amílcar Cabral

Escritos fundamentalmente nos anos de 1950, nos textos agrários de Amílcar Cabral há uma tese que ganha forma: o progresso económico do território guineense, dependendo do progresso da agricultura, depende não apenas da “adaptabilidade de várias culturas industrializáveis e de elevado rendimento ao meio agroclimático”, mas também da criação de “condições que permitam, quer no campo humano, quer no campo físico, a valorização dos recursos do meio e a sua integral utilização a bem do progresso da Guiné” (Cabral, 1959,p.349). E, nesse sentido, Cabral (1959, p.350) sustenta ainda, em artigo na revista Agros, do Instituto Superior de Agronomia, que deveria fomentar-se tanto o “acesso dos guineensesao ensino técnico agrícola em particular e à instrução em geral” como, e “com base nastradições locais, uma estrutura agrária compatível com o desenvolvimento progressivo daspopulações”. Ou seja, do ponto de vista agronómico assumido por Cabral, haveria que olhar não apenas questões que poderíamos considerar de índole estritamente natural, mas tambémvariantes humanas e sociais dessa natureza, consequentemente propondo a qualificaçãotécnica dos indivíduos e a modelação da estrutura agrária às especificidades locais.5Essa ambição reformadora que os textos agrários de Cabral revelam poderá ser entendidaa uma dupla luz. Por um lado, no contexto das funções éticas que ele atribui ao engenheiroagrónomo, explícitas quando afirma que os agrónomos “devem trabalhar afincadamente,contra todos os obstáculos, pela elevação do nível de vida das populações rurais” (Cabral, 1959,p.350). Essa ideia da função do agrónomo revela uma conceção humanista da ciência, bem como da cultura em geral e da técnica em particular. Por outro lado, a ambição reformadora veiculada nos escritos agrários de Cabral, sendo efeito de uma ideia humanista que em partereleva de uma ordem política e moral – que tanto poderíamos supor inerente à ciência, o quesucede na análise de Andrade, como a ela imposta, o que acontece na análise de Idahosa –,é já também testemunho de um processo mais geral: uma crescente mobilização económica dos elementos sociais e humanos e dos saberes científicos que destes explicitamente se ocupam. A essa luz, podemos dizer que, quando Amílcar Cabral (1951, p.15) apelava à responsabilidade humana da ciência e dos cientistas, empreendia uma crítica ao intelectualque se alhearia do mundo e se encerraria na sua torre de marfim, para retomarmos termos próprios das polémicas intelectuais antifascistas dos anos de 1930, mas também indiciavauma crescente articulação entre os domínios da ideologia política, do saber científico eda produção económica, articulação que a flexibilidade e polivalência de certos conceitos igualmente sugerem.6 E é justamente num dos seus textos agrários que Amílcar Cabral faráum primeiro esforço de definição conceptual do sujeito povo.

Em “Acerca da contribuição dos ‘povos’ guineenses para a produção agrícola da Guiné”, de1954, publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Cabral apresenta algumas reflexõesresultantes do trabalho de recenseamento rural por si dirigido em 1953. Criticando o fato de  a análise agronómica na área da pedologia – na qual faz a sua tese de licenciatura – estar aindaexcessivamente condicionada pela centralidade que nela assumia o rácio território-população, procura então pela primeira e – muito provavelmente – única vez apurar uma definiçãodo conceito de “povo”, afirmando não bastar “considerar o fator população para inferir asdiferenças na contribuição para a área total cultivada”, sendo igualmente necessário convocaroutro fator, que nomeará de “povo” (Cabral, 1954, p.776). Escreve Cabral (p.776): “Um ‘povo’com uma dada população pode cultivar uma área maior (menor) do que a cultivada por outroque tenha uma população maior (ou menor). Tal fato sugere a importância do estudo das características da exploração agrícola familiar (técnica agrícola, área cultivada, produtividade)para o completo conhecimento do valor económico de cada ‘povo’”.

A emergência do nome “povo” nos escritos agrários de Cabral não surpreende quem leiao seu discurso à luz do contexto político-ideológico que mais diretamente o envolveu. Comparticular acuidade nos anos de 1940, “povo” é uma palavra que ganha destaque em universossemânticos que circunstanciavam a vida política de Cabral. O termo destaca-se no quadrode várias lutas anticoloniais e anti-imperialistas que marcam o imediato pós-guerra, como,por exemplo, na exclamação da guerra popular, associada ao maoísmo chinês, e torna-se também um dos nomes de sujeito político mais enunciado no discurso antifascista europeu, como nos mostra, por exemplo, um breve apontamento estatístico que elaborámos parao caso do comunismo português, em cujo discurso a palavra “povo” – em associação a outrascomo “democracia” – terá adquirido maior protagonismo nos anos imediatamente seguintesa 1945.7 Essa evolução pode ser entendida, aliás, como uma evolução consentida, e até deliberada, se atendermos a mudanças verificadas no seio da teorização marxista da questão nacional entre a primeira e a segunda metade do século XX. Em 1908, uma marxista como Rosa Luxemburgo (1988, p.39) dizia: Ao falar do ‘direito dos povos à autodeterminação’ referimo-nos generosamenteà totalidade de um ‘povo’, a uma unidade social e politicamente homogénea, mas exatamente tal noção de ‘povo’ corresponde a certas categorias da ideologia burguesa que foram objeto de uma revisão radical por parte da teoria marxista, que demonstrou fielmente que por detrás dessas cortinas de fumaça, tais como ‘a liberdade do cidadão’,a ‘igualdade diante da lei’ etc., se esconde em cada caso um conteúdo histórico bemdefinido. Numa sociedade de classes, o povo, como um todo social e político homogéneo,não existe, enquanto o que existe em cada nação são as classes sociais com seus interessese ‘direitos’ antagónicos (destaques no original).

Ao passo que, na segunda metade do século XX, encontramos já, por exemplo em ÁlvaroCunhal (1974, p.214), dirigente principal do PCP, a seguinte definição: Na época do imperialismo, à fórmula de Marx e Engels [‘Proletários de todos ospaíses, uni-vos!’], Lenine deu nova expressão: ‘Proletários de todos os países e povosoprimidos, uni‑vos!’. Hoje, que a luta anti‑imperialista se estende a todo o mundo e se desmorona o sistema colonial, a consigna de Lenine tem particular atualidade. A unidade da classe operária internacional e da sua maior criação e fortaleza, o camposocialista, com o movimento nacional‑libertador dará ímpeto invencível às forças revolucionárias (destaques no original).

Nesse contexto, é lícito supor que a enunciação do nome “povo” por Cabral – mas o mesmo poderia dizer-se a respeito de outros militantes anticoloniais – participa de uma estratégiade mobilização política nacional que se afirma na senda dos liberalismos oitocentistas e doIdeologia, ciência e povo em Amílcar Cabral11 marxismo novecentista europeu, tratando-se em qualquer dos casos de identificar um sujeitoa um tempo uno – capaz de fundir diferenças étnicas e sociais internas à nação – e fraturante –capaz de afirmar a nação contra um inimigo externo (Neves, 2008, 2009).

De igual modo, o recurso de Amílcar Cabral ao vocábulo “povo” guarda também sentidocomo momento de ressonância de movimentos e projetos literários como a revista caboverdianaClaridade, surgida em 1936 (Alberto Carvalho, 1998). Mas, conforme vimos, é bem no quadro dos estudos agrários por si desenvolvidos que Cabral faz do “povo” objeto de um esforço de definição conceptual. A ciência revela-se, assim, um campo importantede determinação dos nomes do sujeito coletivo e de disputa dos significados destes nomes.

No caso específico da agronomia, nomes como “população” e “povo” foram uma e outravez mobilizados como forma de objetivação e subjetivação de relações sociais e/ou de umacomunidade nacional. E, neste domínio particular, as posições de Cabral, não podendo serdissociadas dos desenvolvimentos coevos da pedologia em contexto colonial, nomeadamenteda inserção internacional dos estudos do seu professor Botelho da Costa (Sousa, 1971), devem também ser vistas como fruto de um processo histórico mais antigo. Veja-se o caso – estudadoainda por Frederico Ágoas (2010, p.298) – de monografias e trabalhos realizados no InstitutoSuperior de Agronomia dos anos 1920, em que uma aceção demográfica da populaçãoé acrescentada de uma aceção de sentido “demológico”, esta veiculando uma dimensão económico-social, aquela uma conceção estritamente naturalista. Citemos um artigo publicadona revista de estudantes do instituto, a Agros, que, como já vimos, mais tarde acolheria escritosde Cabral; um artigo de 1927, no qual, tendo como título geral “População: importância do seu estudo dentro da economia”, um estudante afirmava: “Com efeito, se nalgum dos ramosem que o homem pode exercer a sua atividade, ‘melhor e mais profundamente precisaconhecer o meio em que vive e nesse meio principalmente a população que o habita’, esseramo é a Agricultura” (Benoliel, 1927, p.130; destaques no original). Nesse caso, se bem queoperando ainda por meio do conceito de “população”, reclama-se já por uma ciência dirigidaao fator humano e social da produção, um saber que proceda simultaneamente à contagem dos produtos e ao inquérito da subjetividade dos produtores. Voltemos a citar o artigo de1927: “Qual o fator principal da produção? Qual o incansável organizador da circulação? Qualo regulador da repartição? Qual, enfim, o consumidor obrigado da maior parte das riquezasque a produção criou, que a circulação pôs ao seu dispor e que pela repartição lhe coube?”.E, à pergunta, responde-se: o homem, “átomo do enorme, do incomparável, do complexotodo que é a população; desse ser coletivo com a sua vida própria, os seus movimentos, osseus períodos de vigor e de decadência” (Benoliel, 1927, p.128-133). De resto, refira-se que,em ocasiões posteriores à da definição de povo nos seus escritos agrários de final dos anos de1950, Cabral irá, ele mesmo, reinvestir o termo “população” com o sentido que antes haviareservado a “povo”. Em Análise de alguns tipos de resistência, livro que compila um conjunto depalestras proferidas em 1969 e destinadas a quadros, militantes e militares do PAIGC, Cabral (1975, p.34) afirma que “cada terra tem as suas riquezas naturais e a sua população, que é a maior riqueza de uma terra. A população, na medida em que desenvolve a sua capacidadede trabalho, de produção, das suas riquezas naturais já reais ou em potência, e os meios paraproduzir”.´

O conceito cabraliano de “povo” guarda características que importa assinalar. À semelhançado que sucede com outros nacionalismos anti-imperialistas – desde logo, correntes quemantiveram proximidade ao maoísmo –, o povo de Cabral revela-se a um tempo portador deuma identidade cultural e política. É frequente que, na senda da distinção entre modelo cívicoe modelo étnico de nação que foi estabelecida – entre outros – por Anthony Smith (1986), se atribua ao conceito de povo ou um significado preferencialmente político ou um significadopreferencialmente cultural. No primeiro caso, tende a remeter-se ao entendimento do povocomo aquele em que reside a vontade soberana da nação, sendo ele, por isso, definido nafigura do cidadão, ao passo que, no segundo caso, tende a remeter-se à ideia de povo como fieldepositário da tradição nacional, sendo ele, neste sentido, imaginado na figura do camponês (Leal, 2010). Ora, no caso do discurso cabraliano, os dois tipos de significado tendem acoincidir, de tal modo que é justamente a partir do campo que o sujeito político se afirma.

É desde logo nesse sentido que podemos falar da politicidade da ideia cabraliana de cultura.Mas o que porventura singulariza o povo cabraliano é precisamente o fato de ele resultarde práticas de conceptualização próprias dos saberes agrários. Essa circunstância confere ao povo cabraliano não apenas um sentido político-cultural, mas também económico-social. A esse respeito é particularmente significativo que Cabral (1954), em uma ou outra passagem dos seus escritos agrários, faça questão de precisar não se tratar simplesmente de dizer “povo”,mas o plural “povos”. Do ponto de vista de uma história das ideias políticas, poderíamosdizer que esse recurso ao plural testemunhará a intenção de Cabral definir uma diversidadeétnica em articulação com uma ideia de unidade nacional, combinando particularidades culturais e unidade política, mas o recurso ao plural pode ser igualmente entendido comoparte de uma estratégia de mobilização produtiva que supõe uma análise capaz de inquirir ofuncionamento das diferentes partes da sociedade. Veja-se, por exemplo, o apelo de Cabral àcompatibilização entre o projeto agroeconómico e as tradições locais. Esse apelo decorrerá depreocupações humanistas, como por exemplo a necessidade de fazer a inovação respeitar atradição, mas também da preocupação em fazer com que as várias dimensões da vida humana e da sociedade se impliquem no processo produtivo.

De resto, será também aqui que a ideia de cultura de Cabral assumirá singularidade: comefeito, tal ideia já não tratará apenas de proceder a um reconhecimento político identitário,mas também de ser sensível à transformação económico-social. Nesse sentido, na ideia cabraliana de cultura encontrar-se-ão sentidos políticos e nacionais tantas vezes sublinhados nos estudos cabralistas, mas também um sentido propriamente económico e social. ComoCabral (1999, p.141) mais tarde afirmaria, há “a necessidade, para o movimento de libertação,de conceder uma importância primordial não só às características gerais da cultura dasociedade dominada, mas também às de cada categoria social”, reclamando que “é aí que acultura atinge todo o seu significado para cada indivíduo: compreensão e integração no seumeio, identificação com os problemas fundamentais e as aspirações da sociedade, aceitaçãoda possibilidade de modificação no sentido do progresso”. Esse processo de “socialização” e“economicização” da cultura será, aliás, um dos motivos porque em Amílcar Cabral (1999,p.133) se alertará, uma e outra vez, contra tentações culturalistas: “a identidade não é umaqualidade imutável, precisamente porque os dados biológicos e sociológicos que a definem estão em permanente evolução”.

 

Considerações finais

Referências ao povo ocupam um lugar frequentemente central nos estudos cabralianos.Por exemplo, expressões como “guerra popular”, “people’s war” ou “going to the people” fazem o título de trabalhos como os de Patrick Chabal, Mário Pinto de Andrade e Pablo Luke Idahosa. É menos frequente, no entanto, que se preste atenção à historicidade daemergência do próprio conceito de “povo” no discurso cabraliano. Foi dessa questão que nos ocupámos na investigação que deu origem à segunda parte do presente artigo, mostrando que em tal conceptualização se intersectam – pelo menos – trajetórias de sentido ideológicoe científico. O caso estudado indicia, pois, a necessidade de compreendermos o que afasta os domínios da ciência e da ideologia, mas também o que uma e outra entre si partilhem. Ao mesmo tempo, julgamos que este estudo permite alertar para a necessidade de, conformeidentificado na primeira parte do artigo, os estudos cabralianos concederem maior atençãoao contexto de mobilização económica dos saberes científicos de que o pensamento políticoe cultural de Cabral participa.

 

NOTAS

1 Em Dadda (1993) há uma análise que concede menos relevo à figura de Cabral no quadro geral da lutaanticolonial na Guiné. Destaquem-se também duas recentes biografias em torno de Cabral: Tomás (2007) e Sousa (2011), ainda que pouco acrescentem ao debate em torno da questão específica que nos ocupa nesteartigo, oferecem outros novos elementos sobre diversos aspetos do trajeto de Cabral.

2 Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.

3 Veja-se também o recente trabalho de Rabaka (2009), em que o cabralismo é posto em relação preferencialcom o que o autor designa como a tradição africana de pensamento crítico.

4 O nosso interesse pelos estudos cabralianos começou por ter origem no nosso interesse pelo próprio Cabral ena consequente necessidade de nos inteirarmos do conhecimento sobre si produzido. No entanto, a variedadede interpretações biográficas com que nos deparámos acabou igualmente por se constituir, em si mesmo, alvodo nosso interesse historiográfico. O presente artigo reflete já, em parte, esta circunstância, que contamostratar mais centralmente em artigo futuro, na senda de pesquisas de cariz metabiográfico como as realizadas,por exemplo, a pretexto de Alexander von Humboldt (Rupke, 2008) e de Oliveira Martins (Maurício, 2005).

5 Para uma descrição relativamente exaustiva dos escritos agrários de Cabral, ver o trabalho de Paulo CampbellFranco (2009, p.113-137).

6 Carlos Cardoso (2005) desenvolveu esforço semelhante em torno do conceito de “desenvolvimento” nopensamento de Cabral. Em Cardoso, no entanto, não se trata de uma análise genealógica do conceito, masda filtragem do pensamento de Cabral à luz do conceito de “desenvolvimento” definido pelas Nações Unidas.

7 Analisando os títulos de todas as notícias publicadas entre 1930 e 1974 no jornal Avante!, principal órgãode comunicação do PCP ao longo da sua história, pude verificar uma acentuação do recurso à palavra “povo”nos anos seguintes ao pós-guerra. Por exemplo, se em 1936 a palavra aparece em 2,38% dos títulos, em 1946o índice sobe para 9,18%, sendo que até ao final da década se verificam valores semelhantes a este último.

 

Artigo publicado originalmente em História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, disponível no SciELO (2017). 

Fotos da Fundação Amílcar Cabral. Arquivo Amílcar Cabral na Casa Comum, Fundação Mário Soares. 

por José Neves
A ler | 1 Abril 2017 | Amílcar Cabral, anticolonialismo, ciência, estudos agrários, povo.