Calado eras poeta, e outros pensamentos de uma feminista
Com a chegada de 2022 vieram também as novas resoluções que não partilhei com ninguém. Antes de ver o mundo quase acabar na passagem de ano de 2019, recordo que eu e as minhas amigas queríamos escrever num papel todos os acontecimentos que nos magoaram, marcaram pela negativa e que, portanto, pretendíamos deixar no passado antes de entrarmos naquele que seria o nosso ano: 2020. Resumidamente, a entrada nesse ano aparentemente já distante, não foi nada de especial, quase ficámos cegas por estarmos na primeira fila do fogo de artifício no Parque das Nações, não escrevemos os nossos tormentos em papel e muito menos queimámos esse papel imaginário. Pergunto a uma delas, “o que desejaste?”, como se de um aniversário se tratasse, estranhamente a memória trai-me e até hoje não me lembro da sua resposta, o que quer que seja, espero que tenha conseguido alcançar.
Correndo o risco de me perder nos meus pensamentos no primeiro parágrafo, adianto agora que uma das minhas resoluções para 2022 é escrever sobre o que vivi, o que experiencio, o que sinto e relatar o que me acontece enquanto mulher numa sociedade que sofre constantes alterações. Talvez escrever mágoas numa folha A4 para depois as queimar com o mesmo isqueiro com que acendíamos os nossos cigarros não vá mais ao encontro da minha personalidade, porque eu própria mudo ao meu ritmo, no entanto, escrever para refletir ajuda-me a entender que tenho em mim o poder de reagir conforme quero, que sou livre. Tal como a escritora Virginie Despentes: “não peço desculpa de nada, não me venho lamentar”, o meu único e inicial propósito ao longo desta série será o de mostrar que existimos enquanto seres individuais, todas temos vontades, direitos e várias estórias nas quais nos alicerçamos para sermos quem hoje somos.
7 dias e 2 minutos
“Ligamos dentro de trinta minutos se os resultados forem positivos”. Em dois minutos recebo uma chamada de um número privado “Senhora Alícia Gaspar? Sim, é a própria. O seu resultado veio positivo. Está com Covid-19”. Estava à porta do metro e a praguejar quando desliguei a chamada, nem queria acreditar, parecia uma cena saída de um filme, eu “senhora” Alícia, que nem idade tenho para ser senhora, infetada. Era oficial, aqueles que eram supostos serem os melhores anos da minha vida estavam a revelar-se monótonos. Nos 7 dias que se passaram senti que estava a protagonizar no filme Janela Indiscreta, impedida de sair à rua, não tive outra opção senão virar-me totalmente para o entretenimento, quando os sintomas o permitiam.
No processo deparo-me com um tweet que re-partilhava a imagem de uma campanha contra a partilha voluntária de conteúdos sexuais no meio virtual. Esta campanha rapidamente captou a minha atenção graças a quatro fatores:
- A organização que está por detrás do apelo é a Guarda Nacional Republicana;
- O soutien cor de escarlate vivo que se destaca sob vários smartphones;
- A fotografia de uma mulher em roupa interior exposta no ecrã desses mesmos smartphones;
- A frase “Pensavas que era só ele que ia ver?”.
A campanha é claramente dirigida ao público feminino, não só por apresentar elementos como o soutien e as imagens de uma mulher no ecrã dos telemóveis, mas também por mencionar um “ele” na frase. É alarmante que uma instituição como a GNR, cuja missão é a de “(…) assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei”, tenha conscientemente partilhado uma imagem cuja mensagem é misógina e machista, perpetuando assim a culpabilidade da mulher na divulgação de certos conteúdos íntimos.
Foram disseminados conteúdos danosos que, ao invés de ter como alvo o criminoso e as suas ações, possivelmente gerando uma onda de reflexão, e também denuncia por parte de conhecidos, pretendeu captar a atenção de potenciais vítimas falhando assim redondamente na missão da instituição de garantir os direitos dos cidadãos, uma vez que subliminarmente culpabiliza as vítimas e faz juízos de moral perguntando se a mesma achava que só ele ia ver. Em resposta à exposição desta campanha algumas pessoas defendiam a instituição da GNR e outras ofendiam a vítima diminuindo a mulher, afirmando que a mesma perde o estatuto de vítima após divulgar uma fotografia íntima. Seguem alguns exemplos:
No entanto, algumas pessoas concordam que a imagem promove o desconforto entre a comunidade feminina e chegam até a afirmar que a campanha se baseou no processo de culpabilização da vítima.
A divisão entre nós
O surgimento das redes sociais contribuiu bastante para realçar a enorme segregação na sociedade, que se tem adensado com a crescente vontade de reclamar o direito, indevido mas é o outro lado da coisa, de qualquer pessoa se pronunciar sobre temáticas sobre as quais está mal informada. Esta segregação é realizada intencionalmente, através da difusão de informação falaciosa em tom noticioso, que circula nos meios virtuais que mais frequentamos e a que mais facilmente temos acesso: as redes sociais, como é o caso do Facebook, do Instagram e do Twitter.
Não podia ser mais alarmante a segregação a que assistimos, de modo leviano e que se perpetua em caixas de comentários públicos, como observámos na campanha da GNR. Muitas opiniões ofensivas partiram de homens que defendiam e apoiavam a campanha por considerarem ser culpa da mulher a divulgação de fotografias íntimas na internet. Estas mesmas opiniões ganham força quando veem uma campanha destas ser divulgada pela GNR, uma instituição que foi criada para garantir os direitos dos cidadãos… E esta é apenas uma de várias desculpas que os homens nestes comentários utilizam para justificar os seus pensamentos e atitudes retrogradas.
Questiono-me sobre quem teve a ideia para a campanha: homem ou mulher? Não podendo ter confirmação para as minhas suspeitas vou em busca de resposta para as outras dúvidas: quantas mulheres trabalham nas Forças e Serviços de Segurança? A resposta não é surpreendente, em 2020 estavam no ativo 21.995 oficiais da GNR e apenas 1.635 eram mulheres. Algumas perguntas surgem, porquê uma discrepância abismal entre oficiais masculinos e femininos tão grande? Serão as FSS são apelativas para as mulheres? Existe relutância em admitir mulheres nas FSS? Serão os homens mais respeitados por esta ser uma profissão exercida secularmente pelos mesmos?
São perguntas controversas que, independentemente da resposta, nos fazem refletir sobre o facto de, numa sociedade patriarcal, observar uma mulher no poder e em pleno controlo das suas capacidades e liberdades laborais incomoda tanto quanto uma mulher que reivindique o controlo do seu corpo e todas sabemos que nada os perturba mais do que uma mulher que luta pelos seus direitos primordiais.
Das resoluções não cumpridas
Desde que tenho memória, todos os anos em janeiro, algumas pessoas têm um surto psicótico quando se apercebem que estão a quebrar a sua resolução de quererem ser mais saudáveis e partem numa busca incessante de receitas de dietas keto e batidos com todos os vegetais existentes. Por outro lado, outras não querem saber do “ser saudável”, que se tornou moda e estética na cultura virtual, e seguem a sua vida do mesmo modo que nos outros anos, ou até radicalizando alguns comportamentos tóxicos.
Diria que me encontro entre esta panóplia de opções e talvez só me tenha apercebido deste comportamento no confinamento: quando me lembrei que há dois anos atrás a minha maior preocupação era decidir que bebida comprar para celebrar a passagem de ano e que o isqueiro iria incendiar as minhas preocupações.
Agora, procuro apenas um que reacenda a chama de todos os cigarros com travo a menta que ficaram por fumar nos sete dias em que estive à janela a observar o vai e vem dos carros, o canto dos pássaros, o ladrar dos cães, o gritar dos vendedores ambulantes e os passos acelerados das crianças que correm livremente em direção a uma nova brincadeira, distantes e alheias ao mundo online. Quão suaves eram os tempos em 2019? Seria apenas a minha inocência e escolha de me alhear dos problemas que me tornava momentaneamente feliz? Sem dúvida ambos. Correndo o risco de não cumprir algumas das minhas resoluções, revelo apenas duas: escrever e deixar de protagonizar no filme do Alfred Hitchcock.
Referências
https://www.sg.mai.gov.pt/Documents/MulheresMAI_VF_08_03_2021.pdf