Será que o vento pronuncia melhor o meu nome do que eu própria?
Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já me não dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
— Fernando Pessoa
A minha avó materna é testemunha de Jeová, e não gosta do desconhecido.
Certo dia, jogando eu às cartas, a minha avó não queria que eu tentasse adivinhar que carta viria a seguir. Ficava desconcertada. De certo modo ela também emprega a sua fé no desconhecido para se sentir reconfortada e esquecer que nada é o que outrora foi.
Olho para o relógio e depressa me arrependo de ter pedido para ir dormir a casa da ‘Vó. Ainda faltava muito para a noite passar e eu tinha pouco mais do que as minhas cartas, com as quais não podia brincar.
Enquanto escrevo recordo-me de outros momentos na mesma casa, onde fazíamos almoços de família e podia correr livremente pelo prédio. Apercebo-me de que pouco ou nada sei sobre o passado dos meus antepassados.
Por falar em pais dos pais, quem me ensinou a distinguir o acento das palavras avô de avó foi a minha melhor amiga. Ela disse-me que o avô anda sempre penteado então tem chapéu, e a avó não se penteia então o cabelo dela está sempre no ar. Não sei se fez sentido só pela óbvia caracterização dos acentos, ou por nunca ter visto uma fotografia dos meus avôs despenteados. Também não sei se faz sentido sentir saudades de alguém que nunca conhecemos, mas é isso que sinto.
“Era tudo tão diferente antes…” e a frase termina com “filha, Catarina ou Katy”, varia conforme a pessoa que conversa comigo e expressa o seu saudosismo ou nostalgia. A frase desperta-me curiosidade e, nas fotografias, eu era tão pequena e inocente perante o destino que me acercava. Nada me fazia prever que cresceria a ouvir sobre quão bom ele seria ao invés de o observar, ao destino.
Existe uma constante batalha para tentar entender quem sou para além do que mostro ao mundo. Antes de conseguir responder-lhe é preciso compreender melhor o mundo em si.
Muitas vezes revejo o meu passado e quase que fujo dele, não pelas poucas memórias aqui relatadas, mas porque regressoàs fases que me incomodaram, quando tinha oito anos e fui beijada na boca sem o meu consentimento por um homem desconhecido de 30 anos. Quando tinha 17 anos e fui seguida por um desconhecido no carro ou quando aos 19 fui ameaçada.
Deixamos estes sentimentos em banho-maria para lidar com eles depois, o que acontece quando eles nos pedem que lidemos com eles antes de estarmos prontas? Ignorei o que senti, partilhei já mais velha e com nojo, repulsa e arrependimento de não ter gravado os sujeitos e exposto para que todos soubessem quem são. Lembro-me que era uma tarde de verão, sei de cor e salteado a roupa que trazia, e o que fui comprar à mercearia, também sei que nunca mais vesti o top, e que deixei de querer sair à rua sozinha. Ao escrever isto, fico incomodada, mas não posso deixar de pensar que faz toda a diferença partilhar experiências e falar, mostrar que nada nem ninguém tem poder sobre nós. Porque eu, tu, nós somos fortes, por muito que algo nos afete.
Vejo muitas denúncias por aí e o meu coração fica minúsculo, mas dentro da miniatura que se torna um dos órgãos vitais do corpo humano, está uma força inimaginavelmente gigante de superar qualquer adversidade. Pois, eu sou mais do que uma ação tida por outrem.
Durante demasiado tempo permiti que estes acontecimentos marcantes moldassem a minha maneira de pensar, agir e por vezes os meus planos futuros, agora não. Não podemos ter vergonha, chega uma fase de exaustão mental e por vezes física de nos debatermos connosco mesmas por sabermos que somos mais e melhores do que aquilo que pintamos no nosso pensamento. Não faz mal mostrar ao mundo a realidade, não temos de fingir, chegou a hora de mudar e fazer uso da nossa voz, não somos mais crianças, nem meninas assustadas que são seguidas, nós somos mulheres que dizemos sim ou não quando queremos, que fazemos uso do nosso corpo para o que queremos, que consentimos quando desejarmos e exigimos respeito em todos os momentos da nossa vida. Não vamos desistir.
Já experienciaram uma fase da vossa vida na qual faziam maioritariamente merda? E queriam libertar-se do vosso old you, ser rebelde, então arriscavam? Eu já. Coincidiu com o início da pandemia, e foram tempos estranho, desfiz laços e terminei amizades que considerei durante muito tempo como as melhores que já tinha tido. O início de algo que eu dizia não ser uma fase, foi o terminar de um ciclo. E eu sou grata por ter tido oportunidade de terminar o meu ciclo de forma saudável.
Recentemente encontrei, por acaso, uma das pessoas que faz parte do meu passado e ela estava ressentida, notava-se que queria uma resposta a uma pergunta que não tem necessidade de existir, não nos fazíamos bem. Terminar amizades é das coisas mais dolorosas nesta vida, e constrangedoras! Porque encontrar a pessoa de novo é pior do que agradecer e responder “para si também” ao bom proveito que o empregado nos deseja.
Conto tudo à minha mãe, não, não estou a exagerar, tudo. Então ela foi a primeira a saber que aquele homem me tinha seguido, aliás quando eu cheguei a casa e lhe contei sobre ter sido seguida ela quis sair de casa para ir bater nele. Não há ninguém neste mundo que eu ame mais que a minha mãe, ou melhor dizendo, os meus pais. Ensinaram-me tudo e deram-me todas as ferramentas para eu me safar neste mundo, acho que todos amamos os nossos pais.
“’Alícia’ foi o vento que me disse”, diz-me quem me trouxe ao mundo, rio-me e respondo “´tá bem ó vento, conta lá a verdade”, e ela jura-me que foi o vento o responsável pelo meu nome. Ainda há quem pense que me chamo Alice e hoje em dia não gosto de lá ir, não corro mais pelo prédio e sou eu quem diz “Era tudo tão diferente antes.”
Mas ainda bem que é diferente, porque eu faço parte da mudança e finalmente estou feliz, sinto-me enquadrada no meu espaço, que eu criei e lutei para ter. Todas nós temos um propósito, todas nós temos direitos e não vamos parar nem descansar até eles serem impostos! Muito menos recuar.