"Batida de Lisboa" - Um olhar sobre as diferenças culturais presentes na música
O documentário Batida de Lisboa, de Vasco Viana e Rita Maia (2019) é uma espécie de diário de campo que nos permite entrar em contacto com culturas, costumes e comunidades.
Os realizadores levam-nos numa viagem cinematográfica até aos mais variados bairros na periferia de Lisboa, dando-nos a conhecer o trabalho dos DJs que têm contribuído para uma mudança na perspetiva e interpretação da música africana em contexto português.
A música que se faz nos bairros tem uma vitalidade e qualidade e um agilizado sistema organizacional. Outra característica singular é a independência na produção: os DJs fazem e editam os seus próprios sons. Por vezes com a colaboração da editora Príncipe e SAF (Somos a Família), dois exemplos que têm deixado a sua marca no panorama musical da periferia de Lisboa e catapultar para a internacionalização. O DJ Marfox (Príncipe), distingue dois momentos enquanto artista. tocar em Lisboa e tocar fora dela, o que ele tenta transmitir e as reações do público à música, são muito diferentes diz o DJ. Quando tocam em Lisboa, no Musicbox, adaptam as suas músicas para um estilo mais “leve”. Afinal, dizem os DJs, Kuduro e Afro é o que os brancos e no estrangeiro mais se procura.
Estes artistas fazem da música a sua vida, todos os alicerces são, desde cedo construídos, a partir do mundo musical e dentro de uma comunidade que partilha e apoia estes interesses. Sendo do mesmo bairro e partilhando a cultura bairrista1, o sucesso que uns alcançam serve de motivação para todos os que fazem parte daquele grupo e que querem prosperar na vida.
Portugueses de origem africana manifestam o orgulho comum do seu legado e cultural, reacriação e mistura. E é através da música que o perpetuam. Kuduro, Afrohouse, Ghetto, Funaná, Rap Crioulo, Batuque, são vários os estilos que procuram disseminar e fazer chegar aos mais diversos públicos. Ao longo do documentário observamos que todas estas vertentes musicais africanas unem as comunidades num ambiente de descontração e interação.
“Em Lisboa, o kuduro teve momentos de grande expressão de dança e música entre a juventude da periferia, tendo chegado logo a Portugal nos anos 90 através de imigrantes angolanos.”2
Atualmente, por promover militância e trazer junto de vários agentes cívicos os mais assuntos polémicos, pode dizer-se o Rap Crioulo tem força crítica na sociedade. Tomemos como exemplo o conhecido Vado Más Ki Ás. Cresceu no bairro 6 de Maio na Amadora, e desde pequeno se apoiou no Rap como salvação. Sensibiliza os mais novos, e todo o seu público, para temas controversos, como por exemplo o racismo.
“(…) o rap é uma art verbal e amplia uma discussão na qual as subjectividades destes jovens dão a tónica das suas formas de expressão ou ao que chamam de rualidades.”3
Foi no bairro de cada um que cresceram enquanto DJs. Entre aqueles prédios cultivaram este gosto pela música, sempre cunhando com culturas africanas, como por exemplo o caso de DJ Maboku, que adotou o estilo “lata lata”, na produção da sua música, porque sempre lhe disseram “o vosso estilo tem muitas latas”, tendo assim trabalhado para mudar mentes e impactar a contemporaneidade.
O bairro e os artistas andam “de mão dada”. Toda aquela “batida” emana da vivência do bairro, de uma vivência familiar e comunitário, de sentimentos partilhados de racismo e violência policial e portanto uma certa postura de defesa contra a sociedade que os quer marginalizar, devolvendo-lhes os músicos a sua altivez e criatividade. No entanto, ser classificado como negro bairrista, pode ser um modo redutor de o perspectivar, tirar-lhe o valor a tudo aquilo porque trabalhou, estigmatizando socialmente o indivíduo sem permitir que este evolua para lá do núcleo onde cresceu.
Por serem diariamente estereotipados e julgados fora da sua zona, para ali regressam e constroem laços, tão fortes quanto os de sangue com os seus irmãos que a vida lhes deu.
E Portugal? Que papel tem nesta história? Desde sempre “senhorio”, quer em terras estrangeiras injustamente expropriadas, quer na sua própria “casa”. Se é assim acolhedor quanto se pinta, qual é a razão para tanta discriminação? Um país que de historicamente grandioso apenas teve as bárbaras e cruéis “conquistas”, que custaram demasiadas vidas inocentes, construído sob as injustiças de aculturação e colonização, é agora avesso à multiculturalidade?
O problema não está no bairro da Quinta do Mocho, nem no bairro da Jamaica, o problema reside na perpetuação de preconceitos criados para excluir e prejudicar qualquer chance de um indivíduo negro, com a “agravante” de ser conotado como sendo do “gueto” suceder na vida.
A realidade social portuguesa está a tornar-se cada vez menos favorável à aceitação e integração das demais etnias. Estamos a assistir a um retrocesso e tentativa de imposição de supremacia branca4, a qual devemos combater a todo o custo. Enquanto somos livres em escolha e pensamento, devemos defender e apoiar todas as culturas e a sua livre expressão. Especialmente uma cultura tão rica quanto a africana, que desde os primórdios teve impacto em várias comunidades.
- 1. O homem enquanto ser social tem necessidade de conviver com outros indivíduos, e estas interações constituem elementos estruturantes organizativos da vida urbana. Simultaneamente, este mecanismo permite um funcionamento equilibrado do sistema urbano, potenciando a criação de laços sociais através do encontro do equilíbrio e da sociabilidade humana. Sociabilidade e Bairrismo são duas particularidades do espaço social urbano, resultado das interações e atividades dos indivíduos sobre o espaço geográfico e sobre a vida social ao longo dos tempos. Trata-se de particularidades análogas que ainda se encontram presentes nos bairros populares, ou em espaços relativamente pequenos. Maria Helena Calçarão Carvalho
- 2. Percepção da música da periferia, caso do kuduro, Marta Lança.
- 3. Ângela Maria de Souza
- 4. (…)basta reparar no diminuto número de negros em posições de destaque, na vida pública e na vida privada do nosso país para se tornar óbvia a existência, entre nós, de discriminação racial. Os últimos dias mostraram que há em Portugal grupos que cultivam um racismo agressivo. Francisco Sarsfield Cabral