Diferentemente da primeira geração, que tinha o “sonho francês” de uma vida melhor e a ilusão de retornar a Argélia, Guène tem consciência que a relação dos pais com o país de origem é baseada numa certa negação, numa ilusão que eles alimentaram de um país que não existe mais. Ela acrescenta “para nós era também um país que não existia. Para mim a Argélia se divide entre um país real e um imaginário, e a Argélia é parte de mim tanto quanto a França. Hoje eu me defino como franco-argelina, pois aprendi muito cedo que, apesar de eu me considerar francesa, a sociedade formada pela “escola da república” sempre me viu como menos francesa que os outros e nunca se interessou pela nossa história”. O desinteresse da França em incluir nos manuais escolares e no discurso público a história francesa que ocorreu fora das fronteiras do hexágono produziu uma grande frustração na geração de Faïza Guène: “Entrar num apartamento de um migrante argelino é entrar em um território estrangeiro : a língua é diferente. Nós falávamos em árabe em casa, os objetos, a comida, nosso corpo é diferente; o que eu aprendi desde cedo é que não tínhamos as mesmas oportunidades que os outros e que as pessoas não me conheciam”, afirma ainda na entrevista citada. Quando Faïza Guène assinala que há uma alteridade que é ignorada desde a escola, ela constata que esse território é ainda marcado por uma história colonial que não foi tratada pela França, e acrescenta: “A França não sabe gerir seu passado colonial. Há enormes traços visíveis na sociedade e que são subestimados: falo do desprezo, da condescendência com a qual somos muitas vezes tratados. Nós interiorizamos um sentimento de sermos dominados, da mesma maneira que alguns interiorizaram o sentimento de dominar, e isso determina as relações na sociedade francesa. Interessei-me pela questão colonial exatamente porque não tinha resposta às minhas perguntas”. Os livros de Faïza Guène tratam de uma mesma questão de diferentes maneiras: o que fazemos com uma herança? “Meus personagens são arquétipos de um posicionamento, porque sempre nos construímos de acordo com nossa história : seja em oposição, seja reproduzindo-a. Trata-se sempre de uma escolha”, afirma a escritora. O percurso da escolha de uma herança é o cerne do romance Un homme, ça ne ne pleure pas (2014) onde Faïza Guène questiona o destino de três personagens de uma mesma família de pais argelinos que emigraram para a França: Mourad, o narrador, está preso entre uma pesada herança familiar e uma cultura diferente daquela de suas origens e da qual ele gosta particularmente. Dounia, a irmã mais velha, quer fazer carreira política na França “preenchendo a cota de diversidade”. A irmã mais nova, Mina, segue o caminho traçado por seus pais, de se casar com um muçulmano e construir uma família em França. Através deste afresco familiar, Faïza Guène questiona como podemos escolher nossa herança, bem como os problemas relacionados com cada opção de vida. É particularmente interessante examinar a escolha de Dounia, na medida em que ela carrega apenas a herança de seu biótipo e de seu nome, afastando-se da família e rejeitando as heranças culturais: “Dounia agrada porque simboliza o que a República produz de melhor: um sucesso acidental” (2014: 95) (3). Apesar de todo seu esforço em apagar sua herança familiar e adotar todos os códigos da república francesa, o irmão de Dounia conclui que os migrantes são vítimas da “síndrome de Babar”: “Babar pode andar com duas pernas, vestir ternos de três peças, gravata borboleta e rolar em um conversível, ele sempre será um elefante!” (4). A alteridade não respeitada leva a problemas contemporâneos, como a relação da França com suas periferias – ilustrada de maneira negativa pelo conceito de “comunitarismo”. Para a autora, “estar em comunidade é algo positivo. Se eu posso estar entre pessoas que se parecem comigo, juntos podemos pensar em problemas que nos dizem respeito. Assim, eu sinto-me menos só em um sistema que não me reconhece. Não é anódino que no nosso bairro os nossos modelos de arte tenham vindo dos Estados Unidos, com seus problemas de racismos e minorias. Quando eu escrevi meu primeiro livro, vi que pela primeira vez uma parte de meu público poderia ter um modelo, podia se identificar com essa história que eu contava. Foi então que percebi porquê eu escrevia. Escrever é poder deixar um traço de sua história e contar uma experiência. Meu desejo é de transmitir essa história sem desnaturalizá-la”. Hoje, Faïza Guène diz sentir-se orgulhosa de ser uma herdeira da resistência: “Escrevo para ser honesta com a história e tenho a preocupação de transmitir. Se há problemas na sociedade francesa hoje, temos que analisar o passado. […] Nossa geração deve pensar em uma identidade nova, saindo de uma relação de poder vertical, para que assim as novas gerações não tenham que se confrontar com os mesmos velhos problemas. […] E os romances que escrevo estão para mostrar mais histórias e poder criar novas maneiras de identificação e pertencimento”. A literatura de Guène está intimamente ligada à sua história pessoal. Ela busca fragmentos de histórias e arquivos particulares de cidadãos ligados ao passado colonial francês para moldar sua própria história e deixar uma herança para aqueles que até hoje não tiveram modelos para ancorar sua identidade na Europa contemporânea. Guène, Faïza. Kiffe Kiffe Demain. Paris: Hachette, 2004. –. Un homme, ça ne ne pleure pas. Paris: Fayard, 2014.
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