Fotos e fraturas: as ambiguidades da África do Sul pelas lentes de David Goldblatt
Os retratos a preto e branco, de brancos e pretos, que estão presentes na retrospectiva do fotógrafo sul africano David Goldblatt no centro Pompidou, em Paris, revelam mais de 200 fotografias que ilustram quase 70 anos de história da África Do Sul.
Nascido numa família de judeus oriundos da Lituânia e da Letônia, David viveu numa cidade mineradora perto de Joanesburgo. O fotógrafo acompanhou com o olhar e com a câmara o que significava ser branco ou negro no regime de separação de raças. E foram os mineradores uns dos primeiros temas das suas fotos, pela proximidade do sujeito. Na série “Particulars”, retrata os detalhes que revelam traços imperfeitos criados pelo tempo e condições de vida. É assim que somos recepcionados nessa exposição que vai do detalhe do humano ao gigantesco das estruturas das cidades.
Os territórios, as construções e as pessoas compõem a obra desse senhor de 87 anos. Um dos atributos da exposição é que, para além dos textos que acompanham as fotos, podemos escutar as fotografias. Em cada sala há vídeos nos quais o autor comenta com vivacidade e senso crítico aguçado algumas das fotos apresentadas na exposição. Entendemos o contexto da foto e o que o seu olhar capturou naquele momento. Por exemplo, se quem cometia um crime fosse negro, era transportado a pé pela polícia, algemado, sob o olhar de todos. Se se tratasse de um branco, dispensava-se o cortejo de olhares, pois o indivíduo estava protegido dentro de um carro.
Entre retratos de desigualdade e injustiça que marcaram a história contemporânea do país, o pai da foto sul africana, fundador de uma escola de referência, a Market Photo Workshop, nunca quis que suas fotos fossem militantes. Essa postura causou muita incompreensão fora do país, entretanto o fotógrafo continuou a fazer seu trabalho porque fazia sentido para ele e seus compatriotas. Ele ainda fotografa todos os dias, pois para Goldblatt “a fotografia é um instrumento mágico porque revela claramente a realidade e ao mesmo tempo aquilo não é a realidade. É essa tensão que me estimula.”
A exposição é organizada em seções, separadas por cor e classe, mostrando um mapa do país. O olhar é frontal, “eu te vejo e você me vê”. E nas fotos não há diferença de tratamento: branco ou negro, todos são (re)tratados da mesma maneira.
Ele consegue penetrar Soweto, periferia chave para as manifestações anti-apartheid. Ele entra nas casas e fotografa o quotidiano, há tanto a miséria como seu contraponto na alegria do futebol e brincadeiras de crianças em imensos descampados. Cada série de fotos do passado, feitas em preto e branco, é confrontada com um olhar a cores atual. No caso de Soweto, vemos um grande e moderno centro comercial – mostrando a “evolução” daquele território em relação a 50 anos antes.
Outro momento da vida dos negros, e talvez um dos pontos mais perturbantes da exposição, é a série de fotos que traçam a odisseia diária dos trabalhadores negros que saem de suas casas em KwaNdabele às 2h40 da manhã para irem trabalhar na cidade branca de Pretória, onde não têm direito de viver. São duas horas e meia de trajeto de ida e mais duas e meia de volta – fazendo as contas, as pessoas ficam no máximo três horas em suas casas. Muitas viajam em pé, porque não há assentos suficientes para todos. “Se o apartheid acabou, diz o fotógrafo, aqui não sabemos quando foi o seu fim” – é o que revela a foto de 2012 mostrando a herança do apartheid ainda presente na mesma rota e os negros a encherem os ônibus.
A cidade branca também está presente no seu trabalho. Ele fotografa por exemplo a cidade classe média de Boksburg e quotidiano entre aulas de piano e aparar a relva. Já os Afrikaners, descendentes dos colonos holandeses, os primeiros brancos a se estabelecerem no país e responsáveis pelas políticas do apartheid, também têm lugar na exposição. Na série “Some Afrikaners Photographed” é possível ver a austeridade nos olhares e ao mesmo tempo um suspiro de humanidade em fotos que revelam certa cumplicidade com seus criados negros. O fotógrafo, antes de se dedicar exclusivamente ao ofício, teve que trabalhar na loja de tecidos de seu pai e pôde acompanhar no seu dia a dia as nuances da vida – e é o que se revela nessa série.
Para além das pessoas, ele se interessa também pelas construções – “as estruturas que condicionam a existência”. São fotos que indicam a presença e domínio branco no território sul africano desde 1660, como os vestígios de uma cerca viva plantada para proteger o território dos europeus contra os indígenas. Além de prédios públicos e diversas igrejas, há também uma inocente passarela sobre os trilhos de trem. Na foto de 2016 já não há cartazes, negros de um lado e brancos de outro. Mas persiste a divisão criando duas passagens a utilizar – vestígios de um passado não tão longínquo assim.
A exposição termina com os restos de uma revolta estudantil em 2015 e 2016 na Universidade do Cabo. Os estudantes queriam a remoção da estátua de Cecil Rhodes, magnata das minas e colonizador britânico. Goldblatt mostra o auditório carbonizado, as paredes dos corredores com fotos e quadros que foram dilapidados. O fotógrafo explica “eu continuo a fotografar as estruturas quando elas são pertinentes em relação ao meu trabalho passado”.
Ver essa exposição, para além da experiência de ter um olhar interno de anos de história de um país que ilustrou um dos períodos mais vergonhosos do mundo contemporâneo, é um convite a refletir sobre os dias atuais. Sobre as segregações visíveis, mas não declaradas, que persistem em nossas sociedades. Todos os países que colonizaram ainda possuem uma relação assimétrica com os que imigraram das antigas colônias. Várias cidades são constituídas nesse paradoxo de cor. Se na África do Sul, assim como nos Estados Unidos, esse regime de exclusão e separação de raças era nomeado, hoje em dia as suas estruturas persistem, mas hesitamos em nomeá-lo e criamos, dessa maneira, dificuldades para combatê-lo.
Se o movimento #blacklivesmatter ultrapassou as fronteiras norte-americanas é porque é flagrante o genocídio da população jovem negra. E não só no Brasil, onde as notícias de assassinatos e prisões revelam essa segregação. Talvez precisemos de mais fotógrafos para denunciar esse momento e não deixar a história pesar apenas nos países onde foi extinto o nome apartheid.
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