Feiticeira | 8 de Maio a 27 de Julho | Mostra de grupo | Julien Salaud, Katia Bourdarel, Dalila Dalléas Bouzar, Mehdi-Georges Lahlou, Marion Laval-Jeantet, Myriam Mechita, Annette Messager, Lionel Sabatté… Curadora Marie Deparis-Yafil, H2M, Bourg-en-Bresse (cortesia dos artistas)A lei do dia 23 de fevereiro de 2005, votada pelo parlamento francês exprime “o reconhecimento da Nação em favor dos franceses repatriados” (1) e manifesta o desejo de a França revisitar o seu passado colonial, especialmente ao inscrevê-lo nos livros e programas escolares e universitários. Passados 14 anos sobre a publicação da lei, podemos observar que, até agora, a maioria do debate deu-se num ambiente revisionista, sendo recentes os estudos (2) que questionam o discurso oficial.
No mesmo ano de 2005, em novembro, ocorreu a chamada “crise das periferias”, cuja repercussão mediática tomou os noticiários em diversos países e demonstrou que as “ex-colónias” constituem parte considerável da população das periferias das grandes cidades francesas. Constituída sobretudo por duas ou três gerações de imigrantes oriundos do Norte da África ou da África Subsaariana, a periferia comporta uma parte da história francesa que deve ser discutida de maneira menos precipitada, mais informada e evitando repetir estereótipos racistas. Entretanto, o discurso oficial não consegue abarcar a diversidade da história francesa para explicar a imigração de pessoas oriundas da colonização. Por isso, devemos estar atentos à efervescente produção artística que emerge na prática das segundas e terceiras gerações de franceses filhos de imigrantes. Essa arte desperta e informa muitas vezes o debate fornecendo elementos chave para uma discussão elaborada a partir de arquivos e histórias pessoais. O fim da colonização na Argélia dá-se em 1962 e ainda hoje observamos que os argelinos e seus descendentes cultivam o desejo de ver suas histórias contadas de outra maneira. Querem preencher as lacunas, o silêncio e as dissonâncias que permeiam as histórias (mal) contadas na família e a narrativa oficial do Estado francês – sobretudo em relação ao vivido durante a guerra de independência. São eles a primeira geração ou filhos e netos dos harkis (3), considerados traidores na Argélia por terem combatido do lado francês; dos pied noirs, o equivalente dos retornados portugueses; dos franco-argelinos, cujos pais migraram para França antes e depois da independência e, por fim, o grupo dos antigos combatentes. De uma infância vivida até os 5 anos na Argélia, a coreógrafa Nacera Belaza lembra-se de uma imensa liberdade na natureza, de dias luminosos entre o ocre da terra e o céu de um azul sem fim. E das noites, tão escuras e pesadas, de dimensões e espaços indistinguíveis, de sons distantes e intensos. No seu percurso como coreógrafa, ela jogou sempre com o claro e o escuro. Em sua mais recente criação, Le cercle (2018), os olhos devem habituar-se à escuridão da sala e à luz que pouco ilumina os bailarinos que parecem miragens. O som vem de longe, como se viesse de aldeias nas montanhas, com pequenos focos de luz onde algo se passa, mas não sabemos bem o quê. É como se Nacera Belaza nos oferecesse uma visão de sua infância – narrada na sua entrevista ao grupo MEMOIRS. É a única coreografia em que não dança, como se quisesse fechar um ciclo e ver o que pôde criar a partir de memórias pessoais que se misturam com o desejo de explorar a história da família e de seu país de origem. Segundo a coreógrafa, seus pais pertencem à “geração do silêncio” no ensejo de pouparem os filhos das humilhações sofridas como imigrantes. Desse modo, na família, o medo de perder as origens criou uma Argélia imaginária e imóvel no tempo, sendo a França apenas um lugar de passagem: “não pertencemos a esse lugar”, dizia o seu pai. Inserida nessa dicotomia, a artista passou a viver e a criar seguindo o mote de “Liberté dans la contrainte” (Liberdade dentro de limites), indo de limites físicos – como o de uma casa pequena demais para a família – aos psicológicos – como ter que saber lidar com os sonhos dos pais de querer permanecer na Argélia e a realidade por eles criada na França. Hoje ela nutre uma relação dinâmica entre a França e a Argélia, fazendo uma ponte que prova que os dois países partilham uma história recente que deve ser explorada. O silêncio é também uma constante durante a infância da jornalista e documentarista Dorothée Myriam Kellou, para quem a Argélia foi por longo tempo um tabu. O seu pai, argelino, vivia em França como se fosse no exílio, enquanto a sua mãe, francesa, não permitia evocar esse passado. Com o divórcio, o pai começa a contar o que viveu. Ao confrontar-se inadvertidamente com um traço concreto do passado – a estátua do Sergent Blandan (que estava na sua aldeia na Argélia e que se encontra hoje na cidade de Nancy, onde mora) – o pai cristaliza os seus medos e fala de perseguição da memória. Desse trauma paterno, Dorothée Kellou fez um documentário “A Manshourah tu nous as séparés” (2019) que permitiu liberar o peso do silêncio daquilo que o pai não conseguia contar: a sua vida num campo de deslocados (déplacés). Trata-se de uma história que poucas pessoas conhecem dos dois lados do Mediterrâneo. “Sinto-me dividida entre o meu presente e as minhas origens, mas eu acho que o filme é uma parte desse processo” (4), avalia a cineasta ao pensar no valor simbólico do seu trabalho tanto na vida pessoal, ao transgredir uma proibição materna de não ir à Argélia e recuperar a história do pai, quanto como cidadã, ao religar episódios da história francesa e argelina. Os traços do passado colonial habitam a realidade e alimentam a ficção. No seu livro L’art de perdre (2017), Alice Zeniter confronta a personagem principal (e alter ego) Naïma com os traços de um passado que não passa. Ela é neta de harkis, vindos para França em 1962. A personagem trabalha numa galeria de arte e o seu patrão confia-lhe a missão de organizar uma retrospectiva de um artista argelino, Lalla, emigrado em França. Quando visita o apartamento do artista, a sua primeira impressão é de que a casa é muito sóbria “dá a impressão que foi arranjada para alguém que não viverá lá” (p. 339). Entretanto, ao olhar de mais perto os detalhes, a narradora “não pode impedir-se de comparar essa casa com o apartamento da sua avó, no qual a Argélia toma todo espaço, de maneira chamativa e gritante” (p. 340). Ela enumera os calendários muçulmanos, as bandejas de cobre decoradas com palavras árabes, a foto de Meca, o serviço de chá, as tâmaras, a televisão ligada no canal argelino. Há Argélia nas pratarias de inúmeras bijuterias, na cor de cabelo amarelo-vermelhada de hena das mulheres e, entretanto, conclui Naïma “em profundidade não há nada (…)” e a narradora acrescenta “A família de Naïma anda às voltas com a Argélia há tanto tempo que não sabe mais em torno de que roda. Lembranças? Sonhos? Uma mentira?” (p. 340). Essa dualidade entre ser obrigado a abandonar as suas raízes e a impossibilidade de apagá-las permeia o romance. Zeniter mostra a dificuldade com que os herdeiros lidam com esta história, ao se confrontarem com um passado colonial que os reenvia às suas origens, sem contudo lhes dar apoio para realizar um debate elucidado e livre de preconceitos, que os levaria a compreender hoje o seu lugar hoje na sociedade francesa. Para afirmar sua herança kabyle e evitar estar às voltas com uma Argélia idealizada, a cineasta Fatima Sissani realizou diversos documentários onde o que lhe interessa é investigar a (sua) vida enquanto imigrante. Chegou a França aos 6 anos de idade e teve que lidar com uma dualidade contrastante: a posição da sua mãe que nunca falou francês, apenas kabyle pois, parafraseando Frantz Fanon, “aceitar uma língua é aceitar uma civilização”, e o mundo exterior de uma sociedade que se comunica em francês. Esse conflito de silêncios, civilizações e línguas foi retratado no seu primeiro documentário, La langue de Zahra (5) (2011). Ao contar a história da mãe, Fatima retraça o percurso das mulheres que se viram destinadas ao refúgio no seu lar nas periferias sombrias de Paris, em contraste com a luz e a liberdade das montanhaskabyles. A retração e o silêncio da mãe em França transformam-se diante das câmeras da cineasta na Argélia, onde Fatima pôde finalmente ver a essência e a alma da mulher que, com muita dor, deixou a Argélia natal e que insistiu em transmitir a seus filhos sua cultura. Sissani transformou a sua herança cultural em resistência e memória no espaço do exílio materno. A partir do olhar pessoal dessas artistas sobre a história francesa, depreendem-se elementos que permitirão construir novas narrativas oficiais em que o imigrante não seja visto como ameaça, mas como parte da diversidade de uma nação. Ao incluir a história daqueles que ajudaram a reconstruir a Europa, a ideia mesma da Europa resulta fortalecida. Nas suas mais diversas formas, a arte destas mulheres permite a análise do contemporâneo e a construção de uma ideia de futuro. “A arte é a força que obriga a realidade a dizer o que ela não poderia dizer por seus próprios meios ou, em todo caso, o que ela arriscaria manter voluntariamente em silêncio” (6) escreveu o autor congolês Sony Labou Tansi. __________________ (1) “Portant reconnaissance de la Nation en faveur des Français rapatriés”. Todas as traduções são nossas. (2) Pensamos, dentre outros, em Pascal Blanchard, Nicolas Bancel, Sandrine Lemaire e Benjamin Stora. (3) O dicionário “Le Robert” indica que o termo harki vem do árabe “harka”, “operação militar”. Esse nome foi dado pelos soldados franceses aos supletivos de seu exército, como um simples termo descritivo. Depois harki passou a designar por extensão todos os argelinos que tiveram que deixar seu país por causa de seu comportamento anti-independência durante a guerra e permaneceram franceses. Entretanto, na Argélia o significado da palavra evoluiu e chamar alguém de harki é trata-lo de traidor. Para acompanhar uma discussão sobre os estigmas da palavra, recomendo a leitura deste artigo. (4) «Je me sens tiraillée entre mon présent et mes origines, mais je pense que le film est une partie de ce processus». Entrevista dada ao MEMOIRS em 26 de março de 2019. (5) O filme será exibido dia 3 de outubro deste ano na Culturgest de Lisboa com a presença da realizadora. Um clip do filme pode ser visto aqui. (6) Tradução livre de “L’art c’est la force de faire dire à la réalité ce qu’elle n’aurait pu dire par ses propres moyens ou, en tout cas, ce qu’elle risquait de passer volontairement sous silence”. Sony Labou Tansi, nota preliminar do livro Les sept solitudes de Lorsa Lopez (1985). __________________ MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
https://memoirs.ces.uc.pt/
|