Lilian Thuram | Foto Conselho da EuropaNas últimas semanas, Lilian Thuram, futebolista campeão do mundo pela França em 1998, voltou ao centro das notícias e debates na Europa quando se pronunciou em defesa de um jogador negro vítima de racismo de torcedores. Thuram teve a coragem de dizer que os brancos pensam ser superiores e acreditam nisso, pois o racismo é uma construção de séculos e muito difícil de ser mudada (1). O fato de a frase virar alvo de polêmica revela a necessidade de se discutir o racismo na Europa como um legado da história imperial ultramarina de diversos países europeus, mas também a necessidade de ir além desta discussão. Como afirma Ângela Davis, “não basta não ser racista, há que ser antirracista” (2). Fundador da Associação pela Educação contra o racismo (3), Thuram foi acusado de racismo anti-branco, uma antinomia vergonhosa que visa deslegitimar a palavra de quem denuncia o racismo e evidencia a posição questionável daqueles que acreditam sofrer opressões quotidianas por serem brancos. “Quando um sábio aponta para a lua, o idiota olha o dedo”, diz o provérbio chinês. Assim, acusar o jogador de racismo é contornar a questão que realmente importa: discutir o legado colonial nos países europeus. O racismo é uma questão de brancos, uma lógica que contribui para perpetuar privilégios sociais, de poder e exploração ao atribuir às pessoas identidades racializadas (4). Isso não quer dizer que os brancos devam se martirizar na culpa, mas compreender o lugar que ocupam, os privilégios que obtêm e qual é sua participação na estrutura racista da sociedade. Entretanto, o que vemos no campo da política pública ainda não é satisfatório, sobretudo se analisarmos a recente nomeação na Comissão Europeia de um vice-presidente encarregado das questões migratórias para a pasta denominada “proteção de um modo de vida europeu”. Vários expertos e ONGs reagiram ao nome da pasta, sobretudo ao ligar a questão das migrações à proteção de um modo de vida europeu, pois o termo “proteção” evoca uma política de segurança e isso seria uma maneira de negar as contribuições das migrações aos valores e modos de vida da Europa, como bem assinala a Anistia Internacional. Ora, conceber a imigração como um problema e investir na proteção do modo de vida europeu é um projeto de governo. Com a morte do ex-presidente francês Jacques Chirac, muitos de seus feitos e discursos voltaram a ser relembrados. Ao retomarmos o discurso de Orléans, de 19 de junho de 1991, percebemos como a construção da imigração como um problema se desenhava claramente em sua agenda política: “Nosso problema não são os estrangeiros, mas a overdose deles. (…) É verdade que ter espanhóis, poloneses e portugueses trabalhando em nossas casas causa menos problemas que ter muçulmanos e negros (…)”(5). Essa lógica de Estado é exatamente igual à do atual presidente Emmanuel Macron que, quando reconhece que há dificuldades econômicas e sociais, acaba por afirmar na frase seguinte que essas dificuldades estão ligadas à imigração. O “outro” construído pelo colonialismo é ainda o alvo e a origem do medo, e os reais motivos são ocultados. Nesse sentido, cabe-nos pensar no vocabulário utilizado para tratar destes temas “sensíveis”. Nos debates políticos e na grande mídia prevalecem a agenda e o vocabulário da extrema-direita, onde a imigração está acompanhada da palavra problema, o Islão é visto em contraponto com a laicidade, assim como o comunitarismo é relacionado com a insegurança e a identidade ligada a palavra crise. Nesse campo semântico dominante, a lógica do racismo anti-branco pode fazer sentido para alguns. Entretanto, o verdadeiro combate está em trazer para o campo da discussão os problemas estruturais reais da sociedade: a pauperização da população, a precarização do trabalho, as discriminações racistas e sexistas, a mundialização do capitalismo e uma série de preconceitos que herdámos do passado colonial, como a islamofobia, a falta de políticas públicas para a integração dos imigrantes, a abundância de discursos civilizacionais, as teorias como o lusotropicalismo, o racismo contra os negros, entre outros. O papel das artes para a inclusão do tema das imigrações e heranças coloniais no debate público é de fundamental importância. O lançamento pelo Canal Plus, em França, da série Sauvages, baseada na tetralogia com o mesmo título escrita por Sabri Louatah, colocará em questão as violências coloniais e os traços que elas deixaram na mentalidade da França contemporânea. Louatah, cidadão francês de origem argelina, imagina como seria o dia em que a França elegesse o seu primeiro presidente de origem kabyle (6). A saga política e familiar interroga a impossibilidade de a França enxergar o seu multiculturalismo, fruto de seu passado colonial. A questão da identidade francesa e europeia é central nessa obra, assim como o é em diversas obras contemporâneas. Em Portugal, podemos citar o recente romance Luanda, Lisboa, Paraíso (2018), da portuguesa de origem angolana Djaimilia Pereira de Almeida, que questiona o lugar do assimilado na sociedade portuguesa, assim como a maneira como vivem seus filhos, herdeiros de um passado colonial na capital do antigo império. Na Bélgica, a identidade, o racismo e a pluralidade de origens e línguas da sociedade é muito trabalhada na cena do slam. Nesse contexto, é interessante sublinhar o interesse do projeto MEMOIRS na recolha de entrevistas a cidadãos comuns e artistas, assim como a elaboração de uma base de dados sobre a pós-memória da colonização na Europa contemporânea. O trabalho elaborado pela equipe apresenta um panorama vasto de experiências de colonialidade numa Europa pós-colonial onde o racismo é uma constante. Quando a arte resgata essas memórias silenciadas, mas latentes, ela propicia a emergência da história da escravatura e dos colonialismos dos povos subjugados e interroga o lugar daquele que o colonialismo classificou como o “Outro” que faz parte da carta demográfica europeia do século XXI. Atualmente, está em cartaz em França uma versão revisitada de Othello (7), de William Shakespeare, em que o “mouro” é o único branco da peça. Essa escolha cênica traz um contraponto ao público europeu branco através da experiência de estar só entre pessoas que não se parecem a “nós”, pois a branquitude é a norma tácita da sociedade. Talvez essa provocação teatral possa explicar a quem utiliza o argumento de “racismo anti-branco” que o seu privilégio de pele não quer dizer que a vida seja mais fácil para eles, mas que a cor da sua pele não a dificulta ainda mais. Esta complexa questão do racismo me lembrou as palavras de Scholastique Mukasonga, escritora franco-ruandesa, conhecida pelo seu premiado romance Notre-Dame du Nil. Numa conversa com leitores durante a FLIP (Festival Literário de Paraty, no Rio de Janeiro) em 2017, ela fala sobre o racismo e sobre como os ruandeses não querem ser sequestrados pelo seu passado: “Lutar contra o racismo é como atravessar uma floresta em chamas. E tentar não se queimar. Apesar de tudo”(8).
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