Djugu na Bandé – o futebol comunitário num bairro popular de Bissau

Bissau, manhã de 9 de Março de 2013, a força militar da Comunidade de Estados da África Ocidental - ECOMIB, com mandato para a estabilização da Guiné-Bissau, promove um jogo de futebol. Estamos no Estádio Lino Correia, uma obra erguida no período colonial, rebaptizada após a independência com o nome deste combatente, futebolista, tombado na guerra da libertação. Aqui, o futebol proporciona um momento de descontracção a quem costumeiramente transporta um colete à prova de balas.

A 16 de Março de 2003, cerca das 17h30, numa das entradas deste complexo, com um campo central de relva sintética e ladeado por campos pelados e por polivalentes de basquete, ténis e futsal, uma aglomeração de gente decerto espreita a oportunidade de uma eventual indulgência ou cumplicidade do porteiro para entrar no recinto sem bilhete, pois que era jogo grande! Mas, para além da atracção por um jogo da primeira divisão, fora do exíguo Bissau de cimento, o futebol fervilha. Trata-se de futebol popular, adjectivo talvez aqui aplicado com maior propriedade do que nos casos em que se etiquetava de popular toda a actividade tutelada pelos poderes firmados após as independências.

No bairro de Bandim, zona periférica de Bissau e tradicionalmente chão dos Papéis, existe um “estádio” popularmente conhecido por CACOMA, por simbolizar os iniciais de caju, castanha de cajú (cuco di cadju, em crioulo guineense) e manga. É um campo próximo do estádio nacional 24 de Setembro, construído e reabilitado pelos chineses.

O CACOMA, donde se vislumbram ao longe as duas torres da catedral de Bissau, é um pelado, irregular e mal marcado. Nessa tarde, aí jogavam F. C. de Berry e Etoile de Noke, equipas de imigrantes da Guiné-Conakry, patrocinadas por comerciantes deste país vizinho da Guiné-Bissau que pontificam no mercado de Bandim, o principal da capital e considerado o pulmão económico do país. Não é um jogo do campeonato do defeso – disputado na época das chuvas em vários bairros populares e inter-bairros da periferia de Bissau, com equipas de ambos os sexos –, mas pressupõe organização, demanda e empenho dos jogadores e dos moradores, que dão abotas (quotizações em géneros alimentícios – arroz, óleo, refrigerantes) e dinheiro, para estágios de jogadores que acontecem nos quintais dos moradores e suscita entusiasmo e rivalidades entre zonas e/ou bairros. Também pela aparente observância das regras aprendidas por universais. As equipas são comandadas por treinadores, em muitos casos ex-jogadores federados, enquanto os claqueiros, que postando-se mesmo rente à linha lateral, ora cantam, ora fazem paródias, interagindo com os jogadores no interior do recinto.

Após o jogo, o treinador da equipa derrotada ministrou uma prelecção, escutada com atenção pelos jogadores e alguns claqueiros, sentados à sombra de um mangueiro, que também compõe a vedação natural do campo de CACOMA. Por uma vez, os dois polícias presentes junto de uma mesa localizada no centro do terreno, onde se secretaria o decorrer do jogo, saíram do seu local para ajudar a repor a linha lateral que o entusiasmo da assistência franqueara.

A equipa de Etoile de Noke viu um jogador expulso mas, ainda assim, ganhou por 2-0 um jogo onde, em virtude da irregularidade do piso, só um ou outro apontamento de técnica individual pode sobressair, no mais tem de pesar a força. Os dois golos foram festejados com uma pequena invasão de campo, naturalmente, da qual sobressaiu a diligência de trazer Tcherno até junto de um fotógrafo ocasional para que este fotografasse o marcador.

 Tcherno, cidadão da Guiné Conakry está radicado em Bissau ou, talvez com maior propriedade, em Bandim e participa nas actividades comerciais de um conterrâneo no mercado de Bandim. Em Bissau, a maior parte desses jovens imigrantes chegam sem qualificação profissional e suporte financeiro para começar a vida. Logo, são obrigados à opção imediata de surni – termo utilizado em crioulo para designar biscate ou emprego ocasional, nos mercados e em alguns outros pontos comerciais com alto fluxo de transacções económicas. 

Quantos clubes destes existirão em Bissau e, certamente, noutras localidades? Quantos jovens eles moverão? Outra questão que se poderia colocar seria a de saber porque é que a Federação de Futebol do país não ampara a realização do campeonato do defeso, institucionalizando-o através da criação de uma quarta divisão ou, talvez mais acertadamente, de campeonatos de bairro? Até que ponto estas iniciativas populares e comunitárias, articuladas com a Federação, não poderiam funcionar como espaços de aprendizagem e de canalização de talentos para os clubes, já que as escolas de futebol no país são muito descontínuas e um investimento caro?

Para quem não o conhece, Bandim, outrora um lugar distinto da cidade, hoje o bairro que deu nome ao principal mercado de Bissau, torna-se rapidamente labiríntico. Em cada recanto dessa espécie de labirinto há espaço para um jogo, que amiúde convive com outros afazeres quotidianos, como dar banho a bebés e preparar a cozinha, ou com outras ocupações como jogar dama (espécie de xadrez). Pese embora a mais que provável divisão sexual dos afazeres domésticos, em Bandim, como certamente noutros sítios, o futebol também é desporto de raparigas.

 Mais adiante, num terreno mais pequeno e muito mais irregular do que os precedentes, encravado entre as casas e delimitado por acentuadas irregularidades cavadas por linhas de água, miúdos jogam à bola, algo passível de ilustrar a subtileza do controlo comunitário exercido sobre a presença das raparigas no espaço público?

Ainda não é de noite, um pequeno bar está completamente escuro, o recinto só é alumiado pela luz do écran da televisão que transmite o Sporting - Setúbal. Porém, não se escuta a locução do jogo, antes se ouve gumbé (estilo musical do país) num volume apropriado para se dançar e que impede qualquer conversa. Apenas é possível seguir o jogo ao mesmo tempo que se ouve a música que, uma vez fora do bar, também ecoa nas cercanias. Inesperada convivência a do gumbé com o jogo visionado numa pequena televisão incrustada num canto do bar, como se os comentários fossem irrelevantes – suspeita-se serem isso mesmo – ou incompreensíveis ou, ainda, como se o som ambiente da emoção da assistência de um estádio longínquo não valesse uma selecção de gumbés. Pelos vistos, não vale.

Como noutras paragens africanas, é fácil estabelecer conversas e laços com os vigilantes nocturnos de empresas e de casas particulares com base no interesse pelos relatos, na circunstância, do futebol português. Não tarda e já se é conhecido pela afinidade clubística, que pode gerar cumplicidades ou, mais raramente, alguma ironia e brincadeira. Assim como também pode suscitar discussões calorosas. 

 

Atribuindo-lhe uma função supletiva, alguns dirão que o futebol ajuda a compor um quadro de normalidade num país avassalado pelo fantasma da resolução violenta dos conflitos políticos. Tal ideia não estará errada, mas pode igualmente sugerir-se que o futebol denota o pulsar quase normal de uma sociedade que parece viver à margem dos conflitos e absorvida num comunitarismo e numa solidariedade capazes de fazer com que os conflitos políticos sejam amortecidos nos contextos e dinâmicas da vida dos bairros populares. Na verdade, como que se evidencia um fosso entre as pendências e os processos políticos, por um lado, e o curso de actividades sociais, por outro, como se tais níveis não se intersectassem, o que, sabemo-lo, constitui uma impossibilidade. Ainda assim, a vida na cidade de Bissau parece absolutamente pacífica (tornando como que estranhas e/ou turísticas as aparições das patrulhas da ECOMIB) e o futebol corre livremente. Já aos indivíduos, os relatos de futebol do exterior dão-lhes hipóteses de sintonia com o mundo, de verem mais facilmente escoado o tempo de vigia, de partilharem interesses com outros, de terem opinião, como acontece nas bancadas.

 

por Miguel de Barros e Augusto Nascimento
A ler | 5 Abril 2013 | espaço comunitário, futebol, Guiné Bissau