Morte morrida ou morte vivida?
VIVER A MORTE: SEPARAÇÃO ENTRE OS VIVOS E OS MORTOS OU INÍCIO DE UMA NOVA VIDA? Pensar na morte é um ato em vida. Nunca percebemos um morto a pensar sobre o seu estado atual. São os vivos que pensam a morte e a explicam conforme a sua disponibilidade e habilidade para pensar o que representa a finitude da existência humana só na sua dimensão corporal, para uns, ou na sua totalidade para outros. São muitos os que acreditam na vida post mortem. Fazendo recurso às reflexões de Murcho (2013), a grande questão seria: qual o mal de morrer? Se se entender que a morte é o cessar da vida, desta experiência humana de vida, então morrer é o fim da existência, em conjunto com o corpo que perece e falece. Após a morte nada mais existe que se possa chamar experiência humana. É o fim da totalidade, numa perspetiva unicamente biológica, não havendo qualquer razão para pensar no momento post mortem. Por outro lado, entendender que a dimensão humana é mais do que física e biológica, isto é, que lhe pertence uma dimensão espiritual ou mental, podemos supor que, com o falecer do corpo, não há a obrigatoriedade do falecimento e desaparecimento da alma ou da mente, do que é imaterial. A alma ou a mente poderá, entretanto, ocupar um outro espaço e tempo, diferente do que é experimentado em vida, permitindo a continuidade do indivíduo, mas numa outra dimensão. Os vivos podem ter, então, o papel de ajudar a alma nesta transição, no começo de um novo caminho que se quer apaziguado e com significado, através de rituais associados à morte. Morte morrida (de forma natural, respondendo ao fim da vida e consequentemente ao chamamento de Deus pela mão dos espíritos) ou morte matada (pela mão dos humanos e pelos espíritos por intermédio maligno dos humanos)? Nas sociedades tradicionais africanas, é particularmente interessante verificar o diálogo e a proximidade entre os vivos, os mortos e as re-interpretações das comunicações com o defunto e/ou a alma, antes e depois do enterro. Em alguns grupos étnicos animistas, quando uma pessoa morre, antes do enterro determinam-se as causas da sua morte pelo sacrifício de uma galinha (através da forma como saltam depois de degoladas ou então pela cor do seu umbigo), de modo a que se possa decidir se a razão da morte é digna ou não (por exemplo quando alguém é morto numa ação considerada criminosa ou decorrente dela) e, consequentemente, escolher o modo e o local do enterro – dentro ou fora da comunidade. De outra forma, os papeis e os bijagós, logo após o falecimento de um indivíduo, recorrem à cerimónia de carga djongago, onde revelam a causa da morte (Journet e Julliard: 1989; Henry: 1994). O djongago é uma estrutura semelhante a um caixão feita de canas de bambu, no seu interior são colocadas folhas e ramos de árvores, onde fica o defunto e que é carregado por quatro homens. O defunto é submetido a um interrogatório, numa ação de evocação da alma da pessoa morta, permitindo assim a descoberta das razões da morte. O velório, que acontece sempre em casa, é um momento importante que consagra o estatuto do morto. No caso dos grupos étnicos animistas o lugar do corpo do defunto é no interior, enquanto que nos islamizados o corpo do defunto fica numa cerca no exterior da habitação. No velório de idosos, consagra-se a festa di tchur (festa do choro) – o defunto é cantado de forma humorada, dançado livremente e distribui-se comida e bebida para os presentes poderem celebrar a longevidade conseguida de quem morreu. Determinadas as causas da morte e realizado o velório, limpa-se o caminho para o enterro, sacrificando um porco e deixando o sangue derramar na terra para que as pessoas que carregam o defunto passem por cima deste. Se a pessoa morta tiver filhos menores, esses são passados várias vezes por cima do caixão. Para que a/o defunto não assombre os familiares, rasga-se um pedaço da sua roupa e amarra-se no braço dos familiares. Ainda se faz a unção de farinha branca no pescoço dos descendentes do falecido, iniciativa assegurada pelas matriarcas da família. Se for um adulto de elevado estatuto social na comunidade, muitas vezes mobilizam-se carpideiras que choram a grandeza da família como também a incompreensão da morte te pa si mortu, mindjor na mi (antes da sua morte, que fosse a minha), que correm, atiram-se ao chão e dão cambalhotas. Ao passo que nas tradições dos grupos étnicos islamizados, o choro deve ser controlado, instaurando-se o isabary (apelo ao sofrimento sentido e em silêncio), sempre que os mais velhos detetam a possibilidade das pessoas entrarem em transe. Segundo Reis (1991: 89), estamos perante manifestações que demonstram níveis de adequação de rituais que garantam a segurança dos vivos e dos mortos, da qual Hertz (1960) assume retirar todo o carácter instantâneo da morte como mera destruição, criando possibilidades efetivas de não dificultar a transição do morto para o seu destino. Esta posição é reforçada no momento do regresso do enterro. Na sociedade crioula, a cerimónia não termina no cemitério, mas com o designado entranda alma casa (fazer entrar alma a/em casa) – na qual as pessoas que participaram no cortejo fúnebre, ao chegarem a casa donde partiu o defunto, são recebidas com o derramar de uma caneca de água para o chão logo à porta, cumprimentam os membros da família enlutada, entram pelo interior da casa e saem do lado oposto, assegurando deste modo que o espírito do corpo falecido se mantenha presente e em tranquilidade junto da família, num ato em que também eles mesmos se sentem apaziguados perante o espírito.
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CORPO ENLUTADO E ESPÍRITO HONRADO Após a morte, a relação entre os vivos que “cá ficam” e os mortos que “para lá” partem necessita de tempo e de espaço para o desapego, pela necessidade de viver a partida do “para sempre”. É o tempo e espaço do luto. Surge então o momento em que se desenvolve a consciência, continuada, sobre a morte do outro, da finitude do outro. Este que morreu deixa de estar presente nos momentos e lugares habituais, nos rituais do quotidiano, nos momentos especiais. Mais ou menos lembrado, não ocupa mais espaço de existência humana para além da memória. E vai deixando de estar, cada vez mais, como uma cadência para se poder reinventar o “mundo” sem a sua presença. O desapego não é imediato, há rituais de lembrança que não passam só pelas memórias, pelos locais, momentos, pelo que dos sentidos nos poderia chegar do indivíduo. São rituais sociais onde colectivamente se é chamado a lembrar a vida e o fim da existência da pessoa. Durante o período de luto, com momentos mais ou menos definidos socialmente (i.e. missa ou esmola de alma de sete dias, um mês, quarenta e cinco dias, cem dias, um ano, dia dos finados), não só se permite praticar o desapego de quem morreu, mas também é um tempo privilegiado para pensar a própria finitude. A questão que colocamos é: quando há “choro”, por quem choramos? Por quem morreu, ou pela dor de quem permanece ainda nesta vida com a identidade marcada pelo ente que morreu? Para Filip De Boeck (2009: 95), em muitas regiões de África, à medida que a morte parece estar cada vez mais presente na vida das pessoas, as formas de luto revelam um terreno importante para a produção social do sentido1. Na concepção de Van Gennep (1960), as pessoas para quem não se realizam os ritos funerários estão condenadas a uma penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo dos mortos ou incorporar-se na sociedade lá estabelecida. Convocando Reis (1991: 114), nos ritos fúnebres domésticos a primeira providência é preparar o defunto para o velório e tratar do funeral. O cuidado com o cadáver é de suma importância, uma das garantias de que a alma não ficará por aqui planando. Um elemento usado nos rituais de luto nas sociedades africanas e intensivamente na Guiné-Bissau são as cabaças. De acordo com Odete Semedo (2010: 112), nas cerimónias fúnebres, as mais-velhas usam a cabaça para lavar os mortos e é nelas que se colocam os panos2 que depois são arrumados no caixão junto ao defunto. Sobre alguns grupos étnicos de base animista, a autora refere: Na etnia balanta, quando morre um dos progenitores, à filha mais velha é dada uma pequena cabaça ornamentada com pequenas contas de várias cores. É nela que come e bebe tudo que lhe é dado, até o término da cerimónia; as mais velhas usam a cabaça para lavar os mortos e é nelas que se colocam os panos que depois são arrumados no caixão junto ao defunto. Na etnia mancanha, o luto nos homens pela morte de um dos progenitores, é simbolizado pelo uso de uma pequena cabaça que esses levam na cabeça, como se fosse um chapéu. Usam-no todo o dia, sendo somente tirado para o banho ou quando vão para a cama. Esse luto dura um ano e a pessoa só se desfaz desse “chapéu” de cabaça depois da cerimónia denominada ngura, em que se “lava” o luto. Crê-se que, com o chocalhar das pequenas cabaças não abertas, atraem-se os espíritos dos ancestrais e os irãs para balobas [santuários tradicionais], nos momentos em que se procura saber do futuro. No seu estudo sobre a etnologia dos bijagós da Ilha de Bubaque, Luigi Scantamburlo (1991) revela ainda: Entre os bijagós, depois de confecionarem a estátua do espírito guardião da tabanca (aldeia), presente nas cerimónias mais importantes, com uma madeira específica, juntamente com uma cabaça onde são colocadas sementes de uma determinada árvore, cuja crença local acredita-se que essas sementes atraiam a atenção dos espíritos antes das cerimónias. Estes elementos demonstram que o reconhecimento do simbolismo da cabaça enquanto elemento reflexivo junto dessas comunidades, nas suas formas mais expressivas de garantir a intercomunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos, baseia-se na representação do corpo enlutado-espírito honrado. Cardoso (2004: 22) chama também a atenção para o facto de, nas sociedades tradicionais da Guiné-Bissau, muito particularmente entre os papéis, manjacos e mancanhas, são várias as formas de manifestação de luto sem ser o traje, mas através do penteado, corte dos cabelos e abstinência em relação a certas práticas, como as sexuais. OS RITOS DE INCORPORAÇÃO DOS MORTOS NO ALÉM: OS ESPÍRITOS No que respeita à morte, os rituais são momentos especiais que marcam a passagem para um outro estado ou existência do indivíduo que morreu, e que se explicam com atos de fé. Estes rituais realizados para o corpo e para o espírito são momentos para os vivos comunicarem com quem morreu. Esta é uma comunicação especial. Implica que os interlocutores estejam em dimensões de existência diferentes, isto para quem acredita numa existência após a morte, e que seja utilizada uma linguagem própria cheia de significados particulares, não comungada por todos. Epícuro, na Carta a Meneceu (2008), refere a morte como o fim da existência, isto é, da possibilidade da sensação onde assentam todo o mal e todo o bem. Finda esta, material e imaterial, nada mais há para sentir. Levanta-se então a questão de que, se nada se sente após a morte, qual a necessidade de fazer-se algo para que o sujeito que morre não experimente sofrimento, perturbação, alegria ou qualquer outro estado mental, depois desta? Uma vez que o corpo é o veículo desta sensação, se este cessa, não cessará toda a possibilidade de experimentar? Porquê, então, a preocupação com a morte? Numa perspetiva platónica, como descrito na Alegoria da Caverna (séc. IV a.C), a experiência e o conhecimento humano em vida provêm apenas das aparências das coisas, condicionado pelos sentidos. O conhecimento possível não é o da verdade das coisas que existem, mas aponta para ela, para o mundo das ideias, superior, que o ser humano vislumbra mas não pode experimentar durante a sua vida. Consequentemente, é após a morte na sua dimensão menos humana e, talvez, transcendente que, segundo Platão (2001), se terá acesso ao mundo das ideias e à compreensão plena de todas as coisas. Mas nesta dimensão o ser humano já não é humano, já não conhece só através do que o determina, as perceções, as sensações e uma razão toldada pelas paixões que não permitem uma “visão” clara do que as coisas são em si mesmas. Segundo esta perspetiva, a morte não é entendida como sofrimento, mas como passagem para uma existência completa, onde o sofrimento deixa de existir por- que se partilha do conhecimento da verdade de todas as coisas. Para quem acredita numa vida mesmo que não humana, a vida do espírito, da alma ou do contínuo mental, após a morte, é inevitável não pensar sobre o que irá acontecer. Quanto este pensamento, numa vivência materializada, surgem os rituais que os vivos fazem para acompanhar ou apaziguar a existência de quem morreu. Estes rituais orientam-se no sentido de tornar a crença numa existência após a morte menos sofredora, mais significativa, de plenitude e bem-estar. É o caso do ritual de toka-tchur (toque a choro) – que pode acontecer logo após o enterro, ou no fim do choro, como também pode levar anos para ser realizado consoante as condições económico-financeiras da família enlutada. Este ritual é antecedido com auscultações aos irãs (divindades) e balobas (santuários) guardiãs da linhagem para se definir onde a cerimónia deve decorrer e quem deve tocar o choro. A sessão dura quatro dias: o primeiro e o segundo dia são os mais sagrados, nos quais se afixa o bombolom, sacrificam-se os animais, derrama-se a aguardente, faz-se uaga bianda e pousa-se os testos na cabeceira da cama de quem morreu. Este processo divinatório, segundo Saraiva (2003: 184), é o garante do correto posicionamento do defunto no mundo do além e, sem a sua realização, sérios perigos impelem sobre os sobreviventes. O mesmo se identifica na cultura judaico-cristã, onde acontecem rituais em que os vivos pedem a Deus pela vida plena, sem sofrimento, de quem morre. A existência após a morte, meramente espiritual, reflete o que a pessoa fez em vida, sendo estas experiências determinantes para a experiência após a morte. Outra dimensão dos rituais que possibilitam a comunicação entre as duas realidades é a possibilidade de pedir a proteção dos espíritos. São estes que, ao experimentarem uma dimensão que lhes concede um poder especial de intervenção, protegem os vivos que lhes são próximos e lhes concedem a prosperidade, segundo trocas bem estipuladas e identificadas.
FINITUDE: A MORTE COMO EIXO DA VIDA A morte é uma marca de tempo, de fim de um tempo da dimensão humana que produz na sua ação e que transforma a realidade. Pensar a morte é também pensar a ação que orienta o ser humano sobre a forma como quer viver e deixar a sua marca social e histórica e que o faz pensar numa dimensão ética de constante reflexão sobre os seus princípios orientadores. Não é indiferente pensar a ação independente de uma crença de vida após a morte. Esta também determina a vida, pois determina os princípios que orientam o agir para os resultados que se querem experimentar nesta ou noutra vida, nesta ou noutra realidade. As consequências da ação não se esgotam na experiência humana, mas transportam-se também para a experiência espiritual, revelando-se nestas dimensões como prémio desejado ou castigo infligido. Numa outra dimensão, outra caraterística da morte como eixo de vida e, com base na tese de Odete Semedo (2010: 153), na maioria das comunidades guineenses, a morte não é o fim absoluto na conceção guineense de cosmogonia, mas é tida como uma viagem de regresso para junto dos ancestrais, para onde aqueles que ficaram poderão voltar um dia. Nesta base, e convocando Saraiva (2013) no seu estudo sobre a comunidade papel, constata-se que há três condições indispensáveis para a compreensão da concepção do que é mundo dos mortos: - o estatuto que o defunto detinha na comunidade; - as circunstâncias da morte e; - o bom cumprimento dos ritos fúnebres. Esta é a conceção determinante da transitoriedade do corpo para alma nos grupos étnicos animistas da Guiné-Bissau. A morte também permite a consciência da memória que se constrói de um eu e/ou um nós que tem um princípio e fim, até à reflexão da impossibilidade de viver esta identidade por mais tempo, de viver mais coisas com esta identidade/existência. É a tomada de consciência do tempo, de um princípio e de um fim para o material e para a memória de uma identidade, imaterial. Em resposta ao momento do fim desta identidade, que termina com o definhar “para sempre” deste corpo, o ser humano pensa como não deixar passar este momento do tempo. Os vivos vivem a morte em diferentes rituais de corpo, mas também de espírito, do imaterial. É a vivência de um momento que é pensado em vida, pelos vivos, que ajudam a manter a memória e as lembranças. Daí, a justificação de Reis (1991: 90) da necessidade de cuidar bem dos mortos, assim como da própria morte. As atuais formas de ritualização dos mortos ou o culto dos espíritos mobilizam aprimoramento de tecnologias socioculturais que demonstram e tornam robustos sistema de crenças em mutação, sobretudo dos grupos urbanos, são concomitantes com as mudanças nas condições económicas e na organização do tempo entre estes grupos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS EPÍCURO (2008), Carta a Meneceu, Trad. D. Murcho, Crítica. Disponível em: http://criticanarede.com/meneceu.html CARDOSO, L. (2004), “Os Brames: da morte ao enterro”, Soronda, Revista de estudos Guineenses, 8, pp. 07-28 DE BOECK, F. (2009), “Questões de Morte: violência e produção de conhecimento social por jovens urbanos na R. D. de Congo, in Podemos Viver Sem o Outro? As possibilidades e os limites da interculturalidade, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian-Tinta da China, pp. 75-98 HENRY, C. (1994), Les îles òu dansent les enfants défunts. Âge, sexe et pouvoir chez les Bijogo de Guiné-Bissau, Paris, Maison des Ciences de l ́Home, CNRS HERTZ, R. (1960), “Contribution to the study of collective representationof death”, In Glencoe (Eds), Death and the right hand, The Free Press JOURNET, O. E Julliard, A. (1989), “Interrogatoire du mort (pays jool felup, Guinée-Bissau)”, in Système de pensée en Afrique noire, École Pratique des Hautes Études, Paris, pp. 135-153 MURCHO, D. (2013), “Metafísica”, in Galvão, P. (Orgs), Filosofia – Uma Introdução por Disciplinas, Edições 70, Lisboa, pp.91-93 PLATÃO (2013), Fédon, Trad. C. A. Nunes. Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Disponível em: http://br.egroups.com/group/acropolis/ __________ (2001), A República, Livro VII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian SARAIVA C. (2003) “Rituais funerários e concepções da morte na etnia Papel da Guiné- Bissau-Parte I”, Soronda, Revista de Estudos Guineenses nova série, 6, pp. 179-210; SEMEDO, O. (2010), As Mandjuandadi – Cantigas de mulher na Guiné-Bissau, da tradição oral à literatura, Belo Horizonte, PUC-Minas Gerais REIS, J. J. (1991), A Morte é uma Festa - Ritos Fúnebres e revolta popular no Brasil do Século XIX, São Paulo, Companhia das Letras SCANTAMBURLO, L. (1991), Etnologia dos Bijagós da ilha de Bubaque, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, Vol. 6, No 109 VAN GENNEP, A. (1960), The Rites of Passage, Chicago, The University of Chicago Press
No livro Este corpo que me ocupa, Buala ed., 2014. |
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- 1. É o que acontece com o fenómeno “stera di tchur” (esteira do choro) – um momento de luto que se instala logo após a morte de um indivíduo, onde as mulheres grandes da família e as suas companheiras se sentam em esteiras confecionadas, a base tara. Este espaço transforma-se numa das entidades mais poderosas e influentes na gestão do quotidiano do luto: as pessoas que se deslocam ao local para além de lá irem “falar mantenha di tchur” (dar os pêsames) deixam também as suas oferendas (dinheiro, bebidas, arroz e outros bens simbólicos) como também informam o que se passou e o que se vai passar (dias da realização da missa, as cerimónias diárias, a quantidade de comida a ser confecionada, os progenitores a quem devem ser cobertos os panos. Quando se trata da morte de um adulto, a esteira de choro pode durar até quinze dias, altura em que se faz “lantanda stera di tchur” (levantar a esteira do choro) para a casa da matriarca e/ou Casa Grande. Na atualidade, este espaço tem servido de uma locomotiva de solidariedade social garantindo sobrevivência de muitas mulheres grandes que vão se especializando na gestão do choro.
- 2. Salienta-se que o caixão leva mais de que o corpo do morto. Cada familiar, amigo, vizinho e conhecido sente-se na obrigação de levar pelo menos um pano ou lençol para ser colocado no caixão, ou ainda, para “cobrir” os progenitores, amigos ou colegas que acabam de perder o seu ente querido. Se por um lado o ato de levar o pano reveste de homenagem ao defunto, por outro, significa também a entrega de encomenda para os defuntos da pessoa que leva o pano. Este ato ainda pode ter uma terceira função quando o pano levado é coberto aos familiares do falecido, visando a demonstração de carinho e solidariedade.