Tecer redes à procura de um novo mapeamento cognitivo contrarracista

A produção de conhecimento nas ciências sociais tem gerado dinâmicas excludentes e guetizadoras no campo mundial da afirmação de paradigmas1 – como um conjunto explicativo de teorias, conceitos, categorias, de forma que podemos dizer que uma determinada ação constrói interpretações sobre determinados processos da realidade social –, fruto de posturas preconceituosas nas academias, ancoradas em lógicas de pensamento colonizadoras, marginalizando quer produções que ocorrem em África, quer campos considerados subalternizados nas sociedades com história de colonização. Esse elemento mostra-se evidente não apenas pela quase total ausência das produções científicas no contexto africano nas universidades fora do continente, mas também no contexto dos povos que sofreram escravatura e ainda enfrentam contextos racistas. Verificamos ainda que o endossamento dos paradigmas africanos no debate com os paradigmas europeus, norte-americanos e sul-americanos é algo marginal e, por isso, pouco conhecido.

O projeto Tecendo Redes Antirracistas, que envolve pesquisadores africanos, brasileiros e portugueses nos estudos e intercâmbios sobre produção do conhecimento plural no campo de pesquisas sobre o racismo, tem duplo mérito: por um lado, rompe com o monopólio dos paradigmas ditados pelas entidades das sociedades colonizadoras; por outro, mobiliza um espaço de diálogo e partilha de saberes plurais contracoloniais, incluindo as diásporas africanas.

O preconceito racial tem por base ideias estruturalmente preconcebidas assentes na questão da raça, mas está relacionado à cor da pele. A discriminação quanto ao preconceito racial advém do racismo, uma ideologia que pressupõe a existência de uma hierarquia entre os grupos baseada na etnicidade. Ao procurar olhar para as várias modalidades, latitudes e profundidades do racismo – como o quotidiano brasileiro que vem do período da escravidão, ou a responsabilidade dos portugueses no desequilíbrio das relações raciais entre povos e gerações, ou ainda o contexto da África não só devido à escravatura, mas graças também à adopção da “lei do indigenato”, que classificava e categorizava os povos face aos europeus2 –, significa que a raça é simultaneamente ideologia e agência.

Os processos de racialização têm como objetivo, segundo Mbembe (2018)3:

“Marcar estes grupos de populações no limite, fixar o mais possível os limites nos quais podem circular, determinar exatamente os espaços que podem ocupar […] trata-se de fazer a triagem destes grupos de populações, marcá-los individualmente como espécies, séries e tipos, dentro de um cálculo geral de risco, do acaso e das probabilidades, de maneira a poder prevenir perigos inerentes à sua circulação e, se possível, neutralizá-los, antecipadamente, por paralisação, prisão e deportação” (Mbembe, 2018, p. 71).

Racismo é estrutural. Está evidente na sociedade brasileira, presente nas sociedades africanas e dissimulado nas sociedades europeias. No Brasil, a eleição de Bolsonaro a partir de uma narrativa exacerbadamente neocolonial e neoliberal, correspondida em termos eleitorais, demonstra que as reivindicações do movimento negro em prol da educação étnico-racial e que levou à alteração da lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo a obrigatoriedade do tema da história e cultura afro-brasileira (Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996) – não condiziam com uma visão partilhada pela sociedade brasileira, mas sim por uma corrente do poder político.

A implementação ordenada e institucionalizada das diretrizes curriculares, fruto dessa reforma, favoreceu o acesso à informação e o conhecimento sobre as bases da diversidade étnico-racial. Contudo, embora trate-se de uma pauta pertinente e relevante, a eficácia da equidade entre espaços, recursos, gêneros, povos e culturas não foi consolidada devido ao hiato emancipatório no campo da economia através da geração de empregos sustentáveis dos negros e indígenas.4

Em Portugal, as reportagens jornalísticas de Gorjão Henriques5 demonstram um discurso refinado de um lusotropicalismo fantasista em torno de um invólucro do orgulho do passado colonial de miscigenação. No presente, porém, essa população miscigenada de forma forçada e violenta não encontra respaldo, nem reconhecimento por parte da elite política e econômica do país, que ainda reproduz comportamentos enraizados de discriminação dos afrodescendentes, sem esquecer que o primeiro grande contingente de escravos trazido a Portugal6, resultante da expansão do império colonial, data de 1444.

Na atualidade, confrontada com um movimento político, cívico e cultural de reconstrução da história e memória da violência do que foi o projeto expansionista e colonial que fomentou e alimentou-se da escravatura (a exemplo da construção do memorial às vítimas da escravatura em Lisboa), a esquizofrenia colonizadora de um segmento importante da sociedade portuguesa, incluindo a própria academia, ficou ainda mais despida de valores. Fato que é disfarçado em algumas circunstâncias a partir de simulacros do discurso politicamente correto.

Na África, as atitudes xenófobas contra os migrantes africanos subsaarianos – bem como a existência de sociedades escravocratas em Mauritânia (onde o negro é vendido como escravo), ou de uma sociedade crioula fruto da miscigenação, como é o caso de Cabo Verde – e a discriminação com base na cor da pele (“mandjakus” – imigrantes oeste-africanos) evidenciam uma lógica da autorrepresentação social. Nessa lógica, o Estado (com suas instituições e tecnologias) é convocado a agir como uma entidade de transnacionalização da condição discriminatória negra, sendo então encarado como moderno, dotado de capacidade de combate à migração, capaz de produzir acordos diplomáticos de segurança e defesa com as sociedades ocidentais com histórico escravocrata, fatores que configuram a colonização da imaginação dos Estados africanos.

Ora, na história de resistência de afrodescendentes e outros povos in- dígenas, a dimensão cultural, educacional e política não conseguiu mobilizar a superação do modelo econômico: foi a economia que serviu de pretexto para a edificação de um modelo produtivo primitivo de desenvolvimento da acumulação privada e da racionalidade das instituições para a criação da ideia de mercado. A convicção de que o estímulo da liberdade é, em última instância, um importante fator causal da avaliação da mudança económica, social e política, é algo que não constitui uma novidade de Smith a Marx, de Mill a Haeyk ou de Amin a Sen. Na verdade, a grande falha que o sistema político tem revelado é a não transformação dessas oportunidades em modos de produção econômica com base na capacidade de escolhas e, além disso, de acumulação privada baseada na especulação e na subjugação de povos e sociedades num modelo colonizador. É disso que o atual modelo político é refém hoje.

Esses factos reforçam a ideia de que, quando as lutas são realizadas sem referência à economia, não desviamos apenas da questão da exploração e desse modo da cultura de escravidão, como também ficamos apenas no campo da moral e da ética. Isso, consequentemente, origina revoltas pontuais e atos de resistência, como defende Zizek7, e não a transformação do modo de produção enquanto tal.

Os artigos que compõem esta obra, para além do mérito e da preocu- pação de conectar pesquisas, pesquisadores e correntes de pensamento dos territórios que exerceram o colonialismo – e que também sofreram com a prática colonial a ponto de reproduzi-la, às vezes com consciência –, abre campos de debates acadêmicos e engajados através de uma abordagem am- plamente plural, posicionada nas questões que dizem respeito à necessidade de re-questionamento e (des)construção teórica, metodológica e analítica de processos de produção de conhecimento.

Levando em conta que a compreensão é alcançada através do esclarecimento sobre o sentido de uma ação do ponto de vista da cultura em que o próprio ator social está inserido, será necessário convocar um novo

8 Para um debate mais profundo sobre os efeitos da dominação e da mudança, mapeamento cognitivo para uma reinterpretação crítica da realidade social. Isso permitirá compreender, concomitantemente, as novas formas de racismo, possibilitando, através de novos empreendedorismos políticos e cidadãos, superá-las de modo que as sociedades possam ter esperança de viver em paz, com igualdade e progresso.

É nesta base que uma rede antirracista, como um sistema de relacionamentos socioculturais, psicopolíticos, comunicacionais e econômicos devem ser suficientemente influentes. Assim, a produção da liberdade e a ética na convivência entre pessoas, sociedades, estados e povos poderão construir possibilidades, inclusive no campo acadêmico, para a projeção e a afirmação de ativos antirracistas capazes de gerar transformações estruturais no mundo.

 

Bissau, 14 de novembro de 2018.

Prefácio do livro TECENDO REDES ANTIRRACISTAS

Anderson Ribeiro, Oliva Marjorie Nogueira Chaves, Renísia Cristina Garcia Filice, wanderson flor do nascimento (Organizadores)

 

  • 1. Sobre a conceptualização dos paradigmas, ver: GOHN, Maria da G. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.
  • 2. Para melhor compreensão crítica das implicações sociais e raciais do colonialismo português no contexto africano a partir da produção africana, ver: LOPES, Carlos (Coord.). Mansas, escravos, grumetes e gentio: Cacheu na encruzilhada das civilizações. Bissau: INEP, 1993.
  • 3. MBEMBE, Achile. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
  • 4. ara melhor compreensão do tema, ver: NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.
  • 5. HENRIQUES, Joana Gorjão. Racismo no país dos brancos costumes. Lisboa: Tinta da China, 2018.
  • 6. CALDEIRA, Arlindo Manuel. O tráfico atlântico de mão-de-obra escrava. In: VALENTE, Anabela; LEITE, Ana Cristina (Coords.). Testemunhos da escravatura, memória africana: Roteiro. Lisboa: Gabinete de Estudos Olisiponenes, 2017.
  • 7. Para um debate mais profundo sobre os efeitos da dominação e da mudança, ver: ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012.

por Miguel de Barros
A ler | 11 Julho 2019 | África, Brasil, Portugal, racismo, redes