Perceções sobre a intimidade e o corpo feminino na literatura poética da Guiné-Bissau
Na Guiné-Bissau, a poesia transformou-se num palco propício para desencadear processos de afirmação identitária, quer através da fala como da escrita em kriol e português, ganhando deste modo um cariz bastante militante. Não obstante o tardio surgimento da literatura escrita, a mulher, o quotidiano doméstico e familiar na qual ela assumia protagonismos diversos estiveram sempre representados nos textos poéticos dos autores guineenses. Mas é sobretudo na década de noventa que começa a surgir um timbre poético mais intimista, com retratos de amor, paixão e nos últimos dez anos com expressividades textuais e ilustrativas no campo do corpo e da sexualidade.
O presente artigo lança o desafio de desconstruir as perceções e os discursos poéticos mais expressivos projetados sobre o corpo feminino e a sexualidade nas narrativas poéticas guineenses tomando em consideração quatro dimensões analíticas: a) “repressão e controlo social do corpo feminino”; b) “erotismo singelo”; c) “celebração orgásmica do corpo feminino”; d) “descolonização e desmasculinização do corpo e da sexualidade feminina”.
Introdução: da militância à intimidade, o revelar poético guineense sobre o corpo da mulher
Na Guiné-Bissau, a poesia transformou-se num palco propício para desencadear processos de afirmação identitária, quer através da fala como da escrita em kriol (crioulo) e português, ganhando deste modo um cariz bastante militante. Não obstante o tardio surgimento da literatura escrita, as mulheres, o quotidiano doméstico e familiar na qual elas assumem protagonismos diversos estiveram sempre representados nos textos poéticos dos autores guineenses.
Entretanto, é sobretudo na década de noventa que começa a surgir um timbre poético mais intimista, com retratos de amor e paixão. Nos últimos dez anos com expressividades textuais e ilustrativas no campo do corpo e da sexualidade1. Deste modo, para este artigo, foram analisados e selecionados textos poéticos já publicados em formato livro (coletâneas e obras individuais) e online, quer em português como em kriol, que depois foram cruzados com outras publicações literárias sobre os autores guineenses e ainda do campo da sociologia, na medida em que os usos e discursos sobre o corpo no campo da sexualidade são fenómenos sociais que podem ser apropriados e transformados através do comportamento coletivo.
Partindo do pressuposto que a maior parte das prosas poéticas guineenses tiveram um cunho masculinizante, pois são os homens os que mais publicaram, vai-se procurar integrar a dimensão do género enquanto uma variável de análise fundamental para reconhecer de que forma o corpo e a sexualidade feminina foi e está a ser apoiada numa leitura sobre a sexualidade. Ao mesmo tempo temos realmente ainda pouca informação sobre a construção das masculinidades. Todavia, análise de textos poéticos torna-se interessante para monitorizar a evolução das sociedades, à medida que o controlo sexual dos homens sobre as mulheres se vai declinando com a democratização da esfera pública.
Podem assim perceber-se diferentes experiências da sexualidade e do amor (romântico ou não), da parentalidade que os jovens e adultos, homens e mulheres têm e de que forma têm sido raramente explorados, e muitas vezes numa perspetiva que constrange a experiência individual dentro das categorias rígidas da saúde pública e da intervenção social.
Deste modo, o presente artigo lança-se ao desafio de desconstruir as perceções e os discursos poéticos mais expressivos de autores e autoras guineenses projetados sobre o corpo feminino e a sexualidade nas narrativas poéticas na realidade imaginada e ilustrada do contexto guineense.
Inflexões e perceções: abordagem pública do íntimo centrado na versificação da mulher guineense
Ao analisar os principais traços da literatura poética guineense relativamente às perceções sobra a intimidade e a exposição do corpo feminino, identificou-se quatro dimensões analíticas mais representativas a saber: a) “repressão e controlo social do corpo feminino”; b) “erotismo singelo”; c) “celebração orgásmica do corpo feminino”; d) “descolonização e desmasculinização do corpo e da sexualidade feminina”. Contudo, esta concetualização não obedece as lógias cronológicas e nem pretende atribuir nenhuma hierarquia, sendo apenas metodológicas que permitem arrumações mais modeladas para explicar o fenómeno em análise.
“repressão e controlo social do corpo feminino”
Nesta dimensão analítica, destacam-se produções de autores como Félix Sigá2 e Carlos Edmilson Vieira3. Nos versos selecionados das produções do Sigá da obra Arqueólogo da Calçada (1996), encontramos na representação do quotidiano citadino guineense, no poema “Lição”, lógicas de dominação dos homens na esfera pública valorizando as formas e as normas de utilização do corpo por parte das mulheres:
Naquele velho e grande bairro de capital/ reino Ndjaká herdado por prostitutas e o lumpenato/ Nonó bela e boinha/ mais redonda que o vinho dum barril selado/ distribui cortesia á vizinhança (…)/ No cu farto quantas vezes lambido e acariciado/ bunda cheia de amor e ciúmes/ levou um pontapé de biqueira (…)/ no bairro Ndjaká/ onde as solteiras fazem seu pão cumprindo satisfação.
Pode-se vislumbrar aqui uma produção da divisão simbólica da representação associada às mulheres como puras (casáveis) e impuras (prostitutas). Essa dimensão aparece nas produções do Vieira associado à culpabilização da atração que o corpo feminino despoleta no macho no poema “Flor ordenta” retirada da obra Um cabaz de amores (1998):
Na brisa marginal/ espaira o odor acre/ da tua beleza/ que atrai os chacais machos// Amar sem prazer/ escutar/ o roncar dos machos sobre teu peito/ dá-te pólen e fel para viveres// Amargas são as tuas passagens/ nos corações dos homens/ bêbados de um prazer passageiro/ iluminado pelo teu olhar/ vendedora de efêmeros amores.
Desconstruindo esses dois poemas, autores como Moye (1985) consideram que a respeitabilidade do uso do corpo por parte das mulheres, quer para o trabalho sexual, é uma parte importante da sua atração, ao transportar a ideia de que as mulheres são objetos, mas não sujeitos, de desejo sexual, factos que demonstram o interesse de dominação masculina.
A questão do controlo social do corpo e da intimidade feminina não é sustentada apenas no campo da produção do controlo, mas também no impacto deste controlo nas expressões das mulheres guineenses no seu quotidiano, criando inibições e recalcamentos ao ponto da expressividade feminina manifestar-se projetada na historicidade masculina. Essas dimensões podem ser encontradas nas criações poéticas de Odete Semedo4, no livro Entre o Ser e o Amar (1996), em particular no poema “Heroína em teu conto”:
Quero ser a heroína/ Do conto que inventares/ Que firme segue o seu destino/ Quero ser uma mortal/ Guiada pelo poder da tua voz// Quero ser uma semi-deusa/ E vencer os obstáculos/ Que tu teceres/ Escapar das nuvens e do próprio sol// Quero ser a deusa lua no teu conto/ Acompanhar as crianças/ Nas suas fantasias/ E no sonho seguir os desígnios// Quero ser a heroína do teu conto/ Ou apenas um verso do teu canto.
“erotismo singelo”
Nesta dimensão, destacam-se a maioria das produções dos poetas guineenses e sobretudos os autores que marcaram a produção da poesia militante da pós-independência, sendo as obras Não posso adiar a palavra (1982) de Hélder Proença5, Entre o ser e amar de Odete Semedo, Noites de insónia na terra adormecida (1996) e Guiné - Sabura que dói [Guiné – Sabor que dói] (2008) de Tony Tcheka6, as contribuições do Agnelo Regalla7 na Antologia poética da Guiné-Bissau (1990) e Notas Tortas nas folhas soltas da autoria do Emílio Lima8.
Segundo Augel (1998), a construção de estilo poético ancorado no abafo da sexualidade é resultante das normas da educação da sociedade guineense funcionando como um elemento normativo e recalcador. Nesta base da forte autocensura que inicialmente era característico, vai dando espaço a um erotismo singelo ou subtil, como é o caso do poema “traição” da autoria de Odete Semedo:
A quem pertence esse coração/ que fala por mim/ A quem pertence essa voz que me atrai?// de quem serão essas mãos/ que percorrem com lentidão/ todo meu corpo estranho?
Augel (1998: 275-277) sustenta ainda que este tipo de manifestações chega ao ponto de encontrar criações femininas na qual a figura da mulher recusa o líbido e as suas fantasias, fruto de escamoteamento dos desejos interditados.
Uma outra perspetiva encontrada nas produções de autores militantes guineenses que o criar poemas no campo da intimidade é trazê-las com respaldo amoroso como atribuindo à mulher formas naturais e/ou celestiais, como pode-se ver a seguir nas produções de “Flor noturna” de Regalla:
Flor noturna/ Que com a lua/ Desabrochas nos meus braços/ Flor soturna/ Que pelas sombras das ruas/ Guias teus passos/ Flor amiga/ Com pétalas de estrelas/ E réstias de luar/ Deambula notívaga/ Pelas vielas/ E vem abraçar-me
Ou na criação do Proença no poema “uma carta para ti amor”;
Quero marchar ao som das grilhetas/ e decifrar as ondas putrefatas desta minha-tua-dor//(…) Quero só assim marchar estranhamente…/ agarrando tua cintura e escutar ansioso/ o deslizar das tuas ancas
E ainda da produção do Tcheka tanto em português, no poema “Imerecido”, como em kriol com “fugu di nha korson” [fogo do meu coração], extraídos ambos da produção Noites de insónias na terra adormecida:
Adormeço/ Na luz/ Dos teus olhos/ vejo Veneza/ que não conheço// Ondulo/ Num circulo/ de ondas/ de levitação// Confesso:/ não mereço ternura/ da gôndola/ acariciando/ as águas/ onda a onda
Fugu sindin na korson/ larma rola i barsan pitu/ - murtadja di nha sintimentu// Yardidura di sol/Yabrin kaminhu na mandurgada/ di sabura// N sintiu na mi/ suma iagu manso/ sintadu na fonti// Abo…/ freskura di nha alma/ kalur di nha pitu/ fadiga di nha sunhu// largan korenti/ n`kamba mar// N`misti sukuta bu vós/ na spuma di mar/ largadu na bentu// Abo…/ moransa di nha bida/ kada fulgu di bu pitu/ i un fala sabi/ ku ta durmintin alma
Nestas construções, podemos vislumbrar que a estratégia adotada embora que recuse a masculinidade, também não é a mesma que adotar a feminilidade, pois é mais uma vez um trabalho de construção moral e ética que se pretende não só apresentar versos com a identidade sentimental e sexual do narrador, mas com a autoidentidade no sentido mais amplo, devido à preocupação moral e normativa da sociedade na qual ele se encontra.
Mas as criações de Tcheka evoluíram sem ser deveras ousado ao apresentar na obra Guiné - Sabura que dói (2008), no poema “Mulher da Guiné-Bissau” num traço identitário particular, onde o corpo da mulher ganhou nome das terras guineenses, mas celebrando a sua feminilidade, chegando a ”guiar” o leitor com finura e mestria à celebração do país:
Mulher da Guiné/ mimoseias o andar/ como serpentear o Geba/ coqueiro balouçando ao vento/ perfume da terra molhada/ beijando a esplanada de arreia branca de Varela//(…) Mulher da Guiné/ corpo veludo sossego/ musicado em sons de flauta/ duas pequenas luas/ explodindo na cara canseira/ asseda os tormentos/ caminha fêmea como a tua Guiné/ a novos partos de sabura.
Esta linha desenvolvida do Tcheka que evoca o erotismo singelo baseado nas identidades locais/nacionais guineenses, encontra ressonâncias nos jovens autores, eventualmente conhecedores da obra (Guiné - Sabura que dói). Um dos criadores mais destacados é o Emílio Lima, que segundo Campato Júnior (2012: 245-246), no poema “De olhos em ti”, o seu eu lírico deseja o corpo feminino negro e disso se orgulha:
Foi mágico o 1º olhar/ os meus olhos perderam-se/ nas finíssimas texturas/ da tua fina pele preta// nas janelas do teu coração/ podia ver-se a dança do amor/ no ritmo da paixão// hasteamos a mais extraordinária/bandeira pintada com cenas de amor
“celebração orgásmica do corpo feminino”
A criação considerada pioneira (em termos de ousadia) nesta categoria teve a pena de Proença no poema “canto a mulher amada” projetando uma combinação entre o sentimento amoroso e a conjunção carnal, até então visto na poética guineense (Campato Júnior, 2012: 169-170):
Quisera deixar-me envolver/ Em teus braços/ E diluir-me na ilusão de seres tu/ A onda que meu corpo sacode// Quisera entregar-me a ti/ Deixando-me possuir/ Pela volúpia dos teus seios/ e num orgasmos lento/ Embriagar-me/ como uma abelha/ Sugando o néctar dos teus lábios
Aqui, observa-se que o amor representado na criação do poema um mix entre o amor apaixonado (sugar o néctar dos lábios) e a atração sexual (embriagar no orgasmo), que mesmo que constitua um ensaio arriscado na ordem do “dever social” pela reação que possa despoletar (mesmo que seja por silêncio ruidoso), o autor avança ainda com outras construções celebrativas do corpo feminino na mesma obra, como se constata no poema “Pérola cintilante”:
(…) Meus beijos doces e puros/ abraçam ardentemente teus lábios / sumo de caju/ e o silêncio mudo - lá bem dentro - / escuta o solilóquio dos olhos dormentes/ e do coração que ri e chora/ em ritmos e velocidades descoordenadas
Das análises de produções poéticas guineenses com a mesma ousadia, só volvidos quase vinte anos é que se dá a estampa no cenário literário poético guineense novas contribuições, mas de uma forma mais desgarrada da autocensura, transportando clareza e intensidade. Esses elementos deveram-se às contribuições de Huco Monteiro9 através da obra Kerensa Pertan Pitu – maraduras di kerensa Mbombo [meu peito enchido de paixão] e do Rui Jorge Semedo10 com Sem Intenção, ambas publicadas em 2013.
As contribuições do Monteiro na língua nacional abrem caminho a uma forma de expressar a guineidade no campo da literatura poética de cariz sexual e da visualização do corpo feminino, difíceis de traduzir para outra língua na medida que as criações correm um grande risco de descaracterização e desidratação identitária. Vejamos:
“Noiba lifanti” [noiva elefante=gigante]
Dia ku bu bin setan/ Manera ku n faima pa bu badjudesa/ Ora ku ora di kubamba tchiga/ N na uagau jelu na bridja/ N toka foli na bu pitu di noiba lifanti/ Pa n pudi n’unsiu suma kuku di mangu di faka prenhada
“Kerensa prenhada” [namoro esperado]
Dia ku bu setan/ N na labau kurpu ku champanhe/ N na bidanta bu biku nha kalise/ Pa n bibi bas di bu bridja/ Sabura ku Deus sukundi na bu alma
“Beiju na Nkeklet” [beijo no clítoris]
N beijau bas di bridja/ N sinti bu kurpu na tirmi suma sentral di Timbora/ N odja bu udjus na paga na bu rostu/ Suma ora ku nkeklet na prúntia pa sirmónia di sol/ N sinti flur di bu badjudesa na bida un biku di mama kilin/ Na friesa di bu bridja ku na lágua iagu di blanha ku nansi na bu kurpu/ N barsau tesu suma na kamaradia di malila ku pó/ N rodia novel bas ku riba suma un badju di mara panu di iransegu/ Asin, pa na kada tirmi-tirmi di bu kurpu di badjalanka/ Nin un segundu di bu sabura ka darma na tchon/ Podi ben pudi bai/ Disa kusa di n dau bu ka tornan bu bin no badja nhenku-nhenku/ Rolan na pitu ku tchefrisa di bu mamas nosenti/ Pegandan sison na silimbiki suma fidju di kabra ku na urdinha imbiki/ Untan mangu di faka na boka/ Podi ben bu ka pudi bai/ Didi mé mangu di faka ka mas bin na bó
Este estilo baseado na exploração meticulosa e arrojada do desejo do corpo feminino e inteligentemente ousado poderá ter contribuído para o desenvolvimento de uma representação da sexualidade como poder, transformando assim o sexo num mistério de excitação com o corpo feminino, com particular realce para o elemento poético “bridja” [virilha], considerada uma zona erógenas - são determinadas partes do corpo onde o toque pode causar excitação sexual, e o autor privilegia esse toque poético, como se ilustra em diferentes criações:
(…) N na uagau jelu na bridja (in Noiba lifanti)
(…) Pa n bibi bas di bu bridja (in Kerensa prenhada)
N beijau bas di bridja// (…) Na friesa di bu bridja (in Beiju na Nkelet)
Um outro poeta que demonstra apetência para esta dimensão narrativa, a da celebração do corpo da mulher, é Semedo. No seu livro Sem Intenção (2013), apresenta uma forma de expressar o poder de desejar e possuir o corpo da mulher através do poema “sexo em dois atos”, sendo que apresenta o sexo como um ato animal, na perspetiva da satisfação insaciável:
Sexo-ato I
(…) uma degustação solene/ do néctar de sentimento/ pelo sensível passeio/ ao labirinto do corpo (feminino)/ que se eleva esplendorosamente/ ao orgasmo.
Sexo-atoII
O encontro animalesco/ que acontece do movimento/ pendular de corpos que se/ encaixam nas entrelinhas// Uma rotação multi-posicional/ que aquece a libido entre cangalutas e tapas (no rabo da mulher?)/ num feroz desbravar poético-liríco/ de grito excitante que explode/ entre arrepios de tesão (…)
Nos poemas de Monteiro e Semedo as narrativas poéticas da autoidentidade tornaram-se um lugar-comum da literatura terapêutica, parecendo uma perspetiva que começa a ganhar espaço em discurso direto na literatura poética recente Bissau-guineense. Segundo Giddens (1996: 81), dizer que os homens tendem “a ser incapazes de expressar sentimentos” ou são “intocáveis” pelas suas emoções é demasiado cru, mas muitos homens são incapazes de construir uma narrativa do self que lhes permita estar acordado com uma esfera da vida pessoal reordenada. É dessa forma que estes autores se situam mais no campo do desejo.
“descolonização e desmasculinização do corpo e da sexualidade feminina”
Uma das perspetivas analíticas inovadoras da produção literária guineense que combate na linha de superação das lógicas do enfraquecimento e coisificação das mulheres, retiradas no centro da modernidade e a quem são recusadas a capacidade de desfrutar do sexo, enquanto um desejo naturalmente feminino, foi introduzida por Filomena Embaló11 no ambiente literário poético guineense com o poema “Desejo Ardente” no seu livro de estreia na poesia, Coração Cativo (2008):
Um doce arrepio/ Percorre meu corpo/ Prenúncio de tua mão macia/ Num doce e leve roçar// Meus seios/ Meu ventre/ Minhas coxas/ Clamam por esse tocar/ Deixando em meu corpo/ carente/ Um húmido desejo brotar// Cresce em mim o fogo ardente/ Meu corpo começa a vibrar/ Me arde toda por dentro/ O desejo louco de te amar// Quero teus lábios beijar/ Em teu corpo me enroscar/ Cobrir-te com mil afagos/ E toda inteira me entregar…
Uma abordagem mais arrojada nesta dimensão analítica consolidou-se com o contributo da Saliatu da Costa12, que dá primazia em fazer valer direitos de autonomia sexual com a realização do poema “Prazer”, sem fleuma e ocultações, numa linguagem frontal e combativa de uma manifestação do desejo da mulher, sem discursos romantizados, algo associado ao comportamento feminino, mas clarificando que há amor no prazer:
Despe-me/ sê breve/ arranca os meus farrapos/ rasga a minha alma imunda e profana/ esgazeia bem os olhos/ dá o melhor do teu veneno/ transmutando o meu desejo num alvoroço/ afaga a minha pele/ melhor que o vento impertinente// Ensaboa-me as nádegas/ aconchega-se nas minhas ancas codórias/ aceito que sou mulher/ todo o prazer mereço ter/ aperta mais, cada vez mais/ para que a minha memória fatigada/ se delapidem dissabores/ que por mim passaram/ continua… beija os meus lábios, os meus seios/ mais, mais e mais…/ repete que me amas/ que tua musa sou/ quem sabe assim eu esqueço/ do cheiro nauseabundo do vadio/ que me tatuou de dor e receio/ digo-te:/ ama-me muito, mas muito mesmo/ para que na hora da despedida/ em mim reflita com saudade/ todo o amor que em mim confiaste.
A força desses dois poemas reside na consagração da libertação do corpo feminino e do seu direito não só de exprimir, mas sim da mulher em viver soberanamente a sua intimidade e sexualidade, sob a pronúncia do aceito que sou mulher/ todo o prazer mereço ter nas penas da Saliatu da Costa. Ao chegarmos a este nível, pode-se considerar que estas obras vozeiam pela liberdade da mulher ser amada pela sua completa feminilidade, na sua emancipação que ama, mais do que deseja ser amada.
Destas quatro dimensões aqui anunciadas e analisadas, o músico e artista plástico guineense Maio Copé, nas ilustrações apresentadas como separadores dos capítulos na Antologia Poética Juvenil da Guiné-Bissau, Traços no Tempo (2010), dão a possibilidade de observarmos imagens que sustentam as histórias das narrativas e cruza-se de uma forma dinâmica nas produções e no processo social, constituindo assim a expressão visual da realidade e da representação social, legitimando a nossa construção conceptual (ver figuras a seguir).
Na figura 1, o corpo desnudado da mulher apresenta-se triste e inibido representando a feminilidade controlada e reprimida na sua intimidade; enquanto que na figura 2, o corpo animado, solto e alegre, apresenta-se com curvas que simbolicamente podem ilustrar tensões “entre desejos do corpo feminino e normas de controlo social” representando, assim, o elemento da essência, da subtileza na expressão poética da sua feminilidade.
Já na figura 3, o corpo desnudado de seios firmes e em bicos pontiagudos envolvidos pela estrela à procura da lua, demonstra um simbolismo da procura da clarividência e liberdade, com a luz da lua no horizonte, celebrando o prazer (representado pelas estrelas) que quando atinge a liberdade (figura 4), a mulher consegue simultaneamente a clarividência na prosa poética guineense, assumindo-se como a proprietária do seu corpo e atriz das narrativas da sua intimidade ao sentar-se na luz.
Conclusão: desconstruindo mitos e realidades
A maior parte das prosas assinalam, tanto através de um discurso religioso quanto científico, que a origem da sexualidade feminina foi apoiada numa leitura negativa da sexualidade masculina. Durante milénios, o corpo feminino foi envolto em uma áurea de profundo mistério, o que deu margem a muitos equívocos.
No caso guineense, a entrada das obras de autoras na segunda metade do ano 2000, de uma forma segura exibindo autoridade e propriedade, marcando uma rutura na cultura literária, introduzindo deste modo no contexto poético guineense subsídios de inconformidade com aquilo que se espera de uma mulher na forma como ela se apropria do seu corpo nas relações interpessoais e na intimidade, influencia mudanças na representação social e no comportamento sexual.
Nesta base, o elemento distintivo e novidade na esfera pública da literatura guineense trazida por estas poetisas, foi a desassociação da feminilidade apenas à maternidade e ao casamento como qualidades da sexualidade feminina. Por outro lado, esta corrente descolonizadora oferece a possibilidade daquilo que Giddens (1996: 141) considera de revitalização do erotismo - não como especialização das mulheres impuras, mas como uma qualidade genérica da sexualidade e das relações sociais mais construídas através da reciprocidade.
Todavia, embora a comunicação dos sentimentos poéticos não é em si e por si só suficientes para a intimidade, o contributo das poetisas torna-se decisivo nas formas de comportamento e das representações sociais, na medida em que esse poder da vontade, transporta o indivíduo para uma realização que produz um alívio de tensão sobre os estereótipos produzidos sobre o corpo da mulher e a sua intimidade, rompendo assim com o predomínio do modelo compulsivo de sexualidade masculina, e ainda constituindo novos padrões de referência em desenvolvimento numa sociedade ainda pouco aberta, complexada e com exageros nos mecanismos de controlo social comunitário da mulher, como por exemplo, a mutilação genital feminina, os casamentos precoces e forçados e ainda violência sexual e com base no género.
Contudo, estes elementos pressupõem uma necessidade de equilíbrio de poder que passa não somente pelo aumento de número de poetisas e poemas libertadoras, mas também de aumento de educação e de mudanças estruturais na produção cultural, capazes de influenciar e impactar com as práticas sociais e relações interpessoais na sociedade guineense.
Referências bibliográficas
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VIEIRA, C. (1998), Um cabaz de amores, Nouvelles du Sud, Ivry-Sur-Seine.
- 1. Para maior aprofundamento sobre a periodização da literatura poética guineense, ver: AUGEL (1998), COUTO e EMBALÓ (2010) e SEMEDO (2012).
- 2. Nascido em Bissorã em 1954, formado em Jornalismo.
- 3. Nascido em Bissau em 1960, formado em Relações Internacionais.
- 4. Nascida em Bissau em 1959, Doutora em Letras.
- 5. Nascido em Bolama em 1952 (e assassinado em 2009), político.
- 6. Nascido em Bissau em 1951, formado em Jornalismo.
- 7. Nascido em Campeane em 1952, formado em Jornalismo.
- 8. Nascido em Canchungo em 1974, formado em Jornalismo.
- 9. Nascido em Bissau em 1959, formado em Sociologia.
- 10. Nascido em Bissau em 1973, formado em Ciências Políticas.
- 11. Nascida em Luanda em 1956, é formada em Ciências Económicas.
- 12. Nascida em Bissau em 1977, é profissional de Comunicação Social.