Somos todos uma singularidade qualquer
As razões de um amor que nunca morre fundamentam-se frequentemente mais no passado do que no presente. Provavelmente porque o amor não tem, por assim dizer, o sentido da realidade, mas tem o sentido do possível, e está relacionado intimamente com o “ainda não” e o “não mais”. Que amemos o comunismo – e que o amemos ainda – significa que para nós o futuro existe e que ele não é apenas a propriedade privada dos dominantes de hoje ou de amanhã. Significa que o amor que alimenta a passagem do tempo, que torna os projectos e as recordações possíveis, não é possessivo, ciumento, indivisível, mas colectivo; que não teme nem o ódio nem a raiva, não se refugia desarmado nas casas, mas percorre as ruas e abre as portas fechadas.Acredita-se, hoje, que os afectos são um assunto privado e pessoal, mas na verdade são o lugar que o governo global escolheu para colonizar, através das mercadorias ou do terror. Todos nós temos desejos e medos que não aceitamos e que não queremos confessar, porque advêm das obrigações que nos são impostas e não das preferências de cada um. Por exemplo, todos esses terríveis corpos de desconhecidos que nos rodeiam, o que poderiam partilhar connosco se não as ruas, as lojas e os transportes públicos? No entanto… uma possibilidade dorme sob os nossos dedos cansados no final do dia, nos olhares perdidos que lançamos das janelas, sobre as viaturas paradas no trânsito debaixo de um céu metropolitano. É a possibilidade de descobrir que todos somos uma singularidade qualquer, igualmente amável e terrível, prisioneira das malhas do poder, à espera de uma insurreição que nos permita mudar a nós mesmos.Que amemos o comunismo quer dizer que acreditamos que as nossas vidas, empobrecidas pelo comércio e pela informação, estão prontas a elevarem-se como uma onda e a reapropriarem-se dos meios de produção do presente.
Notas da edição: Optou-se por traduzir o título original italiano “Siamo tutti singolarità qualunque” por “Somos todos uma singularidade qualquer”, embora uma tradução possível pudesse ser “Somos todos singularidades quaisquer”.Este texto faz parte da exposição “Siamo tutti singolarità qualunque” a partir do Cubo di Garutti à Bolzano (Setembro 2006 – Janeiro 2007). O texto foi afixado no interior do cubo, que era inacessível ao público e situado no parque infantil de um bairro social, e foi deixado para distribuição livre dentro de um recipiente de plástico. Foi apresentado em versão bilingue italiana e a alemã. Este texto é parte integrante do Caderno \ Claire Fontaine, coordenado por Luhuna Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues.
[Este texto foi originalmente publicado na Revista Punkto]