Entre Ilhas, Arquivos e Futuro: reflexão sobre o cinema caboverdiano contemporâneo
Entre os muitos arquipélagos que compõem o vasto oceano da produção cinematográfica africana e afro-diaspórica, Cabo Verde tem vindo a emergir –particularmente ao longa da última década – como um espaço de experimentação, de memória e de reinvenção. Nação simultaneamente insular e transnacional, Cabo Verde situa-se tanto nas margens como no centro de múltiplas geografias simbólicas: África, o Atlântico Negro, o mundo luso-falante e o imaginário migrante global. Esta posição, eminentemente híbrida, constitui também um trampolim para a construção de uma linguagem cinematográfica própria - ainda em desenvolvimento, mas marcada já por uma gramática visual, uma estética singularmente identificável, e bem assim por uma voz bastante distinta daquela que consta no cinema sobre nós.
Falar do cinema caboverdiano é, antes de mais, reconhecer uma cultura cinematográfica ainda em processo de gestação e de afirmação. Com apenas algumas décadas de presença efectiva no cômputo global, e com infraestruturas limitadas de produção e distribuição, o cinema nas ilhas tem evoluído maioritariamente graças ao esforço de criadores individuais e produtores independentes, frequentemente a operar com meios mínimos, na sua maioria fora de qualquer sistema industrial e, muitas vezes, fora das próprias fronteiras nacionais. A diáspora caboverdiana tem sido essencial neste percurso, não apenas como público cativo e mercado afetivo, mas também como espaço de produção, formação e inspiração artística.
Leão Lopes ILHÉU DE CONTENDA
Na obra de realizadores pioneiros como Leão Lopes, cujo filme Ilhéu de Contenda (1995) levou ao ecrã a adaptação seminal do romance homónimo de Henrique Teixeira de Sousa, podemos observar como o cinema caboverdiano funciona simultaneamente como arquivo e como reinterpretação da história social e política das ilhas. Lopes não só marcou um ponto de viragem no cânone cinematográfico nacional, como estabeleceu, com este trabalho minucioso, um diálogo deliberado entre o cinema e a literatura, entre cinema e o património, entre o cinema e a identidade. As suas escolhas narrativas—centradas em questões de classe e de pertença—estão longe de ser neutras. Sublinhavam, já então, como a insularidade molda emoções, hierarquias sociais e deslocações internas.
Nuno Boaventura Miranda KMÊDEUS (COME DEUS)
Cena de A ÚLTIMA COLHEITA Nuno Boaventura Miranda
OMI NOBU Carlos Yuri Ceuninck
SUMARA MARÉ Samira Vera-Cruz
Mais recentemente, aquela a que já se poderá tentativamente chamar Nova Vaga Cabo Verde tem vindo a desenhar uma nova era no cinema nacional. No seu seio, realizadores como Nuno Boaventura Miranda, com obras como Kmêdeus: Come Deus (2020) e A Última Colheita (2025), ou a sua muito antecipada segunda longa-metragem, Flôr di Finádu, já a gerar interesse nos circuitos internacionais; Carlos Yuri Ceuninck, cujos documentários The Master’s Plan (2021), Omi Nobu (2023), vencedor do prémio Étalon d’Or no FESPACO, e até a curta Dona Mónica (2021) oferecem retratos sociais incisivos e generosos, poéticos e pacientes; Samira Vera-Cruz, que fez seguir Buska Santu (2016) e Hora di Bai (2017) com Sumara Maré (2022), uma curta experimental esteticamente distinta e porventura a sua obra mais marcante até hoje, deixando antever algo bastante especial para a sua longa documental Plastic Atlantis (em produção); César Schofield Cardoso, com o documentário retrospectivo Bianda: Olhando Para Trás, Para a Frente, Percebendo o Tempo Presente (2022) e com a longa-metragem documental Agu Rixu (em pós-produção), que articulam temas sociopolíticos como centrais na sociedade cultura caboverdianas; e Falcão Nhaga, com Mistida (2022), estreado em Cannes; têm contribuído para o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica profundamente enraizada nas realidades crioulas, ainda que aberta às influências estéticas e discursivas globais. Estes filmes oferecem retratos íntimos e politicamente atentos das ilhas, das suas ausências, da sua juventude inquieta e das suas espiritualidades resilientes. O olhar atento é o traço comum.
BIANDA RETROSPECTIVA César Schofield Cardoso
MISTIDA Falcão Nhaga
Com efeito, o que une esta nova vaga não é tanto um estilo visual comum a todes, mas uma atitude partilhada: a convicção de que o cinema é uma ferramenta de escavação emocional, política e simbólica. Estas obras abordam temas como a migração, a ausência, a luta económica, a sobrevivência, a espiritualidade, a juventude, o feminino e o trauma colonial, sempre com uma sensibilidade formal que resiste ao exotismo e à simplificação. É um cinema que escuta, que se demora, que sustém o silêncio. Um cinema que se interessa igualmente pelo que se diz e pelo que não se diz—pelos gestos, pelos vazios, pelos ritmos que resistem às convenções narrativas dominantes. É um cinema-poesia, um cinema de raízes, um cinema finka-pé.
Importa sublinhar, com esta consciência de lugar e de si, que Cabo Verde está muito longe de ser um monólito—e talvez não haja prova mais clara do que as contribuições indispensáveis, desafiantes e provocadoras vindas de toda a diáspora.
Muitos dos cineastas caboverdianos contemporâneos nasceram, vivem ou viveram fora do arquipélago. São artistas que habitam o que Homi Bhabha chamou de “terceiro espaço” —um espaço liminar onde a identidade é constantemente renegociada, um espaço historicamente familiar para os caboverdianos. E é nesse espaço liminar que encontramos algumas das convergências mais ricas com o cinema afrodiaspórico global: um cinema nascido não apenas da experiência negra e/ou africana, mas da sua dispersão, da sua herança colonial, da sua complexidade e da sua luta contínua por visibilidade e agência.
No contexto do cinema africano, Cabo Verde partilha com os seus vizinhos uma tensão fundamental: como construir uma imagem de si próprio depois de décadas como objeto do olhar alheio? O cinema africano—ou melhor dito, os cinemas africanos—não são simplesmente práticas artísticas, mas intervenções epistemológicas. Como escreveu Frantz Fanon, a descolonização não é apenas um processo político: é simbólica, imaginativa e visual. O cinema torna-se, assim, num campo de batalha pelo poder de nomear, de representar e de reimaginar aquilo a que Benedict Anderson denominou de “comunidades imaginadas”, e que, no seu cerne, se reinventa diariamente através da intervenção de toda a produção cultural.
Neste sentido, filmes como Timbuktu (2014), de Abderrahmane Sissako, Atlantique (2019), de Mati Diop, ou Karmen Geï (2001), de Joseph Gaï Ramaka, oferecem-nos pontos de referência cruciais. Nestes exemplos, a estetização do quotidiano, a subversão da linearidade narrativa convencional, o rompimento com os estereótipos coloniais e a centralidade de olhares femininos e coletivos-comunitários tornam-se instrumentos de reapropriação simbólica. Estes filmes recusam a necessidade de (sobre-)explicar, confiando antes na intuição e na inteligência sensorial e emocional do espectador. Resistem aos modelos narrativos à americana, evitam os arcos narrativos com finais fechados, bonitinhos e frequentemente não oferecem resolução (assim é a própria vida). Sobretudo, operam numa temporalidade alternativa—uma temporalidade africana, insular, negra, por vezes etérea, mítica, onírica.
Do ponto de vista diaspórico, cineastas como Raoul Peck, Haile Gerima, Julie Dash, Cheryl Dunye, Tamara Dawit—acompanhados, no cinema caboverdianos, pela veterana caboverdiana-americana Claire Andrade-Watkins, cujo corpo de trabalho autoproduzido constitui um registo arquivístico formidável da nossa própria existência, e pela emergente realizadora suiça-caboverdiana Denise Fernandes, cuja premiadíssima primeira longa-metragem, Hanami (2025), sucede à sensível e tranquila Nha Mila (2020), marcando um ponto alto nesta nova geração—têm expandido um corpus cinematográfico global enraizado na herança, memorização e cauterização da escravatura, nas travessias atlânticas, no racismo sistémico, mas também, de forma crucial, na celebração da cultura negra e na celebração da vida. Digo vida, não apenas no sentido histórico, mas no contexto quotidiano: nos gestos simples, nos afetos discretos, nos silêncios partilhados. Estes artistas constroem imagens através do que se pode chamar uma arqueologia afetiva—escavando o pessoal para iluminar o político, e ligando o íntimo ao histórico. A vida, na sua persistência silenciosa.
HANAMI Denise Fernandes
Denise Fernandes Leopardo em Locarno para Melhor Cineasta Emergente
Em Cabo Verde, onde a palavra—falada, cantada, sonhada—sempre foi instrumento de resistência, o cinema-poesia e o cinema-reflexão, muitas vezes híbrido ou experimental, ou indo para lá do cinema e adentrando espaços transmédia e de AR/XR, adquirem particular importância neste firmamento cinemático. Artistas como Lólo Arziki (p.ex. em Relatos de Uma Rapariga Nada Púdica), Djam Neguin (p.ex. Xindzuti), Janilda Bartolomeu (p.ex. em Written in Water, Evocations & Lamentations), Flávia Gusmão (no filme #4 Mangifera (2022), integrado num compêndio transmédia em cinco partes, dedicado à produtora Samira Pereira), Sueli Duarte (p.ex. em Mansu Mansu), os antes mencionados César Schofield Cardoso e Samira Vera-Cruz, bem como eu próprio, formamos uma geração em construção, dissolvendo as fronteiras entre o documentário, a ficção, a performance e o ensaio visual transmédia.
Nas obras deste grupo de criadores, o cinema é menos uma janela e mais um espelho-partitura que reflete/enquadra e compõe ao mesmo tempo. Estes são filmes e trabalhos multimédia que convocam o corpo, o som, a palavra, o silêncio, o tempo— transformando frequentemente a escassez numa estética própria e orgulhosamente assumida. Não porque, como canta William Shatner em Common People, haja algo inerentemente “cool” na pobreza, mas porque muitos dos nossos mitos fundadores advêm dela (pensemos, entre outros, em Ulime (2010) de Tambla Almeida e Os 47’s: Depoimentos que Ficaram (2022) de Artemisa Ferreira), mas também porque, simbolicamente, a absorção da pobreza e da sobrevivência pelo nosso código genético nos ensinou, instintivamente a resiliência e um tipo de humor idiomático e eufemístico que faz com que brinquemos com a ideia de, como caboverdianos, termos aprendido com as cabras que é possível suportar a fome comendo pedrinhas. Com toda a probabilidade, nenhum de nós jamais o fez. Mas todos sabemos do que se trata.
Grande parte da obra multimédia de Schofield Cardoso e do seu projecto recorrente Storia Na Lugar inscreve-se nesta linhagem do cinema-ensaio político-poético que desafia a estrutura clássica e propõe um olhar crítico e em câmara lenta, como o fazem, de resto, os meus próprios trabalhos experimentais, Pravda, Zeitgeist Apparatchiks & the Gauche Caviar (2021) e Funaná in Ka Ioca x Fogo n’Txon Futuro (2022). O mesmo se aplica ao amplo corpo de trabalho de Janilda Bartolomeu, eminentemente pós-colonial, mas que de resto desafia rótulos e categorias e está centralizado sob os auspícios da sua prática recorrente The Creole Lens. Num registo mais transgressivo e subversivo, Djam Neguin destaca-se como um criador multifacetado, operando entre a transmédia, a videoarte, o videodança, o cinema performativo e o que poderíamos até chamar de afrofuturismo crioulo (ver p.ex. AMI.LCAR, Ka Bu Skeci Tradison).
Projectos Janilda Bartolomeu Flavia Gusmao Lolo Arziki Djam Neguin
ULIME Tambla Almeida
Estas expressões experimentais - muitas vindas da diáspora e misturando-se, por conseguinte, com nuances de deslocação e de memória - não procuram respostas imediatas. São na verdade mensagens audiovisuais lançadas ao mar dentro de uma garrafa de vidro, na esperança de que um dia, talvez numa outra vida, alguém as receba.
Neste ecossistema algo fragmentado, mas pujante, iniciativas curatoriais como a série de mostras de cinema caboverdiano contemporâneo Tela d’Pano Terra, realizada já em cinco ocasiões; ou a ambiciosa iniciativa de resgate de arquivo audiovisual Transistor, liderada pela portuguesa Raquel da Silva; e a crescente presença do cinema caboverdiano em festivais internacionais de referência––de Locarno a Cannes, de Durban a Tarifa, de Leipzig a Tribeca, de Marrakech a Roterdão e de Ouagadougou a Nova Iorque—têm sido essenciais para dar visibilidade global a estas nossas vozes. Os festivais não são apenas espaços de exibição: são territórios políticos, de alianças, de conquista, de trocas, e de reconhecimento cultural. Para um cinema tão pequeno em escala, representam um dos principais canais de exposição global.
Contudo, o maior desafio continua a ser interno: como garantir condições sustentáveis de produção? Como formar novos realizadores? Como criar circuitos de exibição locais? Como integrar o cinema no tecido cultural do país? Tal como qualquer arte, o cinema não vive apenas da paixão — exige políticas públicas, infraestruturas, arquivos, escolas, espaços de exibição e pensamento crítico.
E aqui importa deixar um alerta: não podemos resignar-nos à ideia de que o cinema é e será sempre “pequeno” —uma arte feita por amor à camisola, por quem tem em paralelo um emprego “a sério”, feito como hobby ou apenas por vocação. Sim, o cinema é cultura, é arte, é identidade. Mas se queremos que contribua, de forma efectiva, para o crescimento da nossa comunidade––política, económica, simbolicamente—então temos de tratá-lo como aquilo que também é: uma indústria. Uma indústria com todos os seus elementos económicos: formação, desenvolvimento técnico, equipamento, catalogação de locações, produção, distribuição, exibição, crítica, festivais, mercado interno e externo, regulação, financiamento. Um ecossistema completo, portanto, não muito diferente daquele que está a ser construído hoje em torno do empreendedorismo e da inovação tecnológica em Cabo Verde. O cinema, como indústria, é soft power. É rendimento económico. É visibilidade internacional, turismo cultural e exportação simbólica. Conseguimo-lo com a música, onde Cabo Verde dá cartas acima do seu tamanho. Podemos tratar o audiovisual pelo mesmo diapasão. O talento já cá está.
FUNANÁ IN KA'IOCA PJ Marcellino
O cinema africano, afrodiaspórico e caboverdiano não serve apenas para contar histórias. Serve também para disputar narrativas – não só sobre África e sobre os africanos, sobre os caboverdianos e sobre as nossas perspectivas plurais, mas também sobre o que é o cinema em si, quem tem o direito de o fazer, quem tem o direito de ver e de ser visto, de falar e de ser ouvido. É um trabalho lento, minucioso, mas necessário. É o trabalho de reinscrever no nosso imaginário coletivo as imagens que nos pertencem, e que, por sua vez, nos transformam.
Neste contexto, o futuro do cinema nas ilhas será inevitavelmente arquipelágico, feito de imensas vozes dispersas, mas em constante diálogo entre si, com Cabo Verde e com o mundo, feito de memórias partilhadas, mas reinventadas, de recursos limitados mas de criatividade infinita. Um cinema feito com o que temos, mas sobretudo com quem somos––onde quer que estejamos nesta nação transnacional—e com aquilo que ousamos imaginar. Um cinema onde, parafraseando Amílcar Cabral, cada gesto seja simultaneamente um acto cultural e um acto de liberdade.
Programa Tela d'Pano Terra SP22