“Estávamos em terreno desconhecido, com hábitos particulares. É preciso ter sensibilidade e ter em conta tudo isso”, entrevista a Bruno Moraes Cabral
A propósito da série História a História, uma série documental sobre as relações de Portugal com o continente africano (produzida pela Garden Films e RTP África) que brevemente irá estrear na RTP, o BUALA conversou com o historiador Fernando Rosas e com o realizador Bruno Moraes Cabral.
A partir de imagens e de sons da época colonial em África, o historiador Fernando Rosas (autor e apresentador da série) procura traçar a história do império português, desde o final do século XIX até às independências. São 13 episódios, filmados em 5 países africanos (Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau) e em Portugal, cada um deles uma viagem que investiga no terreno as diferentes dinâmicas e conflitos deste período colonial.
Bruno Moraes Cabral é, com Hemi Fortes e Carlos Isaac, um dos fundadores da Garden Films, na qual trabalha no desenvolvimento de projectos documentais e de televisão. Alguns dos filmes que já realizou: Praxis, 2011 (45’), Sobre 4 Rodas, 2007, Metamorfose, 2007 (48’), Era uma vez um arrastão, 2006 (25’).
Ao contrário da primeira temporada, na qual o ponto de partida era, por norma, um lugar a partir do qual se dava a conhecer eventos históricos que por ele passavam, nesta partiram do arquivo para fazer um caminho exploratório e sustentá-lo narrativamente. Porquê a mudança de metodologia?
Na temporada anterior já tínhamos recorrido a arquivos. Aqui também vamos aos lugares a partir dos quais contamos as suas histórias, mas esta série incide sobre uma época mais recente (final do século XIX e século XX) e, potencialmente, há mais arquivos, por isso conseguimos investigar mais. Claro que muitos dos eventos que filmámos não tinham arquivos propriamente ditos, não tinham sido filmados ou retratados. Na altura não existia imprensa e, por vezes, encontrar material era procurar uma agulha no palheiro.
No meu trabalho de realizador, dediquei-me bastante a procurar imagens que pudessem ajudar-nos a projectar as questões levantadas pelo Fernando Rosas, que componham sequências e ilustrem o que estamos a falar.
Depois foi tentar estabelecer uma espécie de diálogo entre os arquivos e o texto do Rosas. A partir do momento em que decidimos as temáticas, mesmo antes de termos os guiões, começámos a pesquisar arquivos. E, à medida que o Fernando ia escrevendo os guiões, nós íamos completando e afunilando a pesquisa, para depois na montagem podermos introduzir/ilustrar ou fazer algumas sequências – de sons e de imagens – que projectam o espectador para as épocas retratadas.
E como contornavas a falta de material de arquivo no caso de alguns eventos?
Às vezes tínhamos arquivos em abundância sobre determinado tema e, sobre outros, não tínhamos praticamente nada. Na propaganda do regime, claro, havia muito interesse em destacar determinados assuntos. Por exemplo, o massacre da UPA em Angola. Foram 800 brancos e vários milhares de africanos mortos pelas forças da UPA. A propósito desse episódio encontramos imensas imagens. Aí o regime decide fazer uma campanha de denúncia, porque tinha sido uma força militar angolana a fazer o ataque. São imagens que nunca mais acabam. Foram até mostradas na ONU, na altura. Já no massacre na Baixa do Cassange, no qual Portugal massacrou mais de 5 mil pessoas, não encontramos nenhuma imagem…
Assim, temos de tomar decisões quanto à utilização do material de arquivo. Não podemos simplesmente utilizar todo o material sobre estes eventos e deixarmo-nos levar pela propaganda do regime, se não ficaria desequilibrado, em termos fílmicos.
Por outro lado, também há imagens de propaganda que nos permitem desconstruir até a própria propaganda, por serem tão óbvias, tão desfasadas da realidade que estamos a contar. E por isso acabamos por utilizá-las para ilustrar o seu reverso.
Algum episódio em particular onde isso tenha acontecido?
Sobre a questão dos colonatos, por exemplo. O episódio é dedicado às políticas de colonização branca no pós II Guerra Mundial, as suas contradições, debates. Era um projecto muito antigo, mas só a partir dos anos de 1950 se começa a implantar, nomeadamente em Moçambique e Angola. Ai encontrámos muitos filmes de propaganda, que vendiam a promessa de um futuro jubiloso, um paraíso africano, com terras férteis e condições agrícolas execionais… Com imagens de famílias felizes que partiam de Portugal para uma terra longínqua e exótica, em busca de uma vida melhor. Essas imagens eram tão absurdas e tão irreais que nos permitiram desconstruir e reflectir sobre o projecto colonialista.
E a história oral, que papel teve na série?
As fontes que utilizámos são muito diversas. Acho que não se deve menorizar nenhum tipo de fonte. Não sei exactamente a centralidade que teve a história oral, porque esse trabalho de investigação foi realizado mais pelo Fernando Rosas e Maria José Oliveira. Mas neste trabalho de pesquisa partimos de matéria já transcrita. Acredito que muitas das fontes tenham sido orais, mas já minimamente tratadas e trabalhadas por outros investigadores.
Há um trabalho de compilação de muito material historiográfico com base em investigações mais recentes, mas também em investigações mais antigas, determinantes para perceber a época colonial em África. Alguns historiadores centrais, como o René Pélissier (Angola), e muitos historiadores contemporâneos. Apresentamos também temáticas a alguns historiadores nesses países africanos onde fomos filmar para ter feedbacke perceber se fazia sentido este projecto. Claro que é sempre ingrato, tentar retratar numa série o que foi a história colonial, sobretudo em episódios de 30 minutos. Portanto, o que fazemos foi contar uma actualização da história colonial portuguesa, com a preocupação de tentar conjugar os eventos mais representantes da época. É claro que é sempre um fragmento da história que queremos contar.
Foi difícil aceder a algum assunto em particular?
Não… Fizemos pontes com muitas instituições, arquivos. Arquivos grandes, mais institucionais, e outros mais pequenos, completamente independentes. Por exemplo, Ricardo Rangel, grande fotógrafo Moçambicanos dos anos 60 e 70, que entretanto deixou uma pequena estrutura, o Centro de Documentação e Formação Fotográfica (CDFF), em Maputo – com muitas dificuldades – mas que é uma mina de material. Também falámos muito com as pessoas dos locais onde íamos filmar. De forma geral, correu tudo bem. Não tivemos dificuldades. Mesmo nas filmagens correu tudo espantosamente bem. Mas houve também muito cuidado da nossa parte. Estávamos em terreno desconhecido, com hábitos particulares. É preciso ter sensibilidade e ter em conta tudo isso. Tivemos sempre essa preocupação: não era chegar a um sítio e filmar tudo o que nos apetecia como se estivéssemos à porta de nossa casa. Não agimos assim. Tento sempre filmar da mesma forma que filmaria aqui numa aldeia: falar com as pessoas primeiro e perceber que espaço tenho para fazer o que gostaria, e adaptando-me sempre a essas sensibilidades. E fazendo assim as coisas acabam por correr bem.
E houve alguma história em particular que te tenha impressionado?
Logo a seguir ao 25 de abril, houve uma revolta branca em Maputo, em que as organizações fascistas e os brancos nacionalistas tentaram tomar o poder. Uma contra-revolução que pretendia manter a superioridade branca e erguer um novo regime. Tinham várias ideias para o pôr em marcha, uma delas era mesmo fazer um apartheid, inspirado na África do Sul. No dia 7 de setembro de 1974, saíram à rua, ocuparam o Rádio Clube em Maputo, a partir do qual começaram a emitir as suas mensagens. A tensão durou vários dias e foi crescendo até que um pequeno grupo de soldados e líderes do Grupo Galo da Mafalala conseguem enganar os revoltosos e, ao microfone da rádio, Aurélio Le Bon diz “Galo galo, amanhaceu”. E, basicamente, foi essa frase que acabou com o golpe. Ainda não se tinha mesmo libertado a rádio, mas bastaram essas palavras para travar a guerra civil iminente. Só depois o MFA acabou por retomar a rádio. Nós acabámos por conhecer o Aurélio e ouvir toda a história em detalhe e foi muito impressionante.
É claro que encontrámos tantas pessoas interessantes, tantas histórias, que dá muita vontade de fazer outros filmes a partir disso.
E de que forma é que achas que estas histórias vão contribuir para uma outra narrativa colonial?Temos vinculada uma ideia muito branda do nosso papel em África. É verdade que houve muita miscigenação. Mas esse discurso de que nós fomos brandos porque nos integrámos bem, não é real. Se formos ver as formas de compelir ao trabalho, o estatuto do indígena, toda a premissa civilizadora branca de superioridade que se construía, de racismo permanente… Percebemos que não foi bem assim. Era um regime totalmente autoritário, fascista, com uma polícia política, com prisões indiscriminadas, sem direito de julgamento. Espero que a série possa levantar essas questões sobre o que foi realmente esta fase do Imperio português, do fascismo português na África colonial. É impressionante como, nos livros escolares, ainda se vende a imagem de um colonialismo bom.
Achas que algumas histórias vão ser polémicas?
Sim, claro. O episódio sobre os cárceres do Império, por exemplo. O Tarrafal, um autêntico campo prisional a céu aberto, no meio de rochedos e com o clima inóspito da ilha de Santiago, sem infra-estrutra nenhuma. Era o “campo da morte lenta,” como muita gente lhe chamava, um verdadeiro campo de concentração. Além do Tarrafal, que já tem uma produção historiográfica bastante extensa, há inúmeras outras prisões, espalhados por todos os países. E nós tentámos mostrá-las e proporcionar uma reflexão a partir dessas imagens. Portanto, claro, vai ser polémico, no sentido em que assumimos uma posição clara de crítica a esse regime de sequestro, de opressão de qualquer tipo de liberdade, de acesso a direitos fundamentais de justiça. O indígena só tinha deveres, sobretudo o dever ao trabalho. E essa questão é fundamental na série. Ao longo de cada episódio vamos vendo como a legislação do regime se foi adaptando para acompanhar a legislação internacional sobre a questão do trabalho, algumas premissas iam acompanhado o que estava na retórica do contexto internacional, mas depois, na prática, mantinham todas as condições para manter o trabalho forçado.
A fase da guerra colonial já foi bastante tratada, mas o conjunto do que foi a presença colonial em África desde as guerras da ocupação efectiva do Ultramar não existe tanto. Espero que a série seja mais uma ferramenta de reflexão e de discussão, actualizadas e com mais auto-crítica sobre o passado colonial.
Entrevista: Mariana Pinho
Som/vídeo: Nicholas Spiers