O intervalo entre o espectador e o filme como gesto que desenha um espaço comum. Entrevista a Luciana Fina
Terceiro Andar, realizado por Luciana Fina, estreou mundialmente no DocLisboa’ 16, na Competição Nacional, acompanhado por uma instalação com o mesmo título, programada pelo festival na secção Passagens, patente na Fundação Calouste Gulbenkian.
O filme estreou ontem no Cinema Ideal, onde ficará durante uma semana, integrado no programa 4.doc do DocLisboa.
Fatumata e Aissato Baldé são mãe e filha. Vivem no Bairro das Colónias, em Lisboa, e têm raízes na Guiné Bissau. Fatumata ensina à filha coisas do amor e da felicidade, Aissato traduz à mãe e dedica-se à escrita de uma carta para o primeiro amor. Luciana Fina vive no mesmo prédio, tem raízes em Itália. Três mulheres, três línguas e três formas de sentir, num filme que tece um espaço comum e conta de gerações, culturas, memórias, de relações e de afetos.
O jogo da tradução
A relação de Fatumata e Luciana não foi imediata. Só passados dois anos de morarem no mesmo prédio trocaram as primeiras palavras. “Cheguei em 1992 e ela chegou em 1996. Na altura Fatumata pareceu-me uma mulher muito orgulhosa, distante, pouco disponível… Quando descia as escadas e a encontrava, não sentia nela uma vontade de falar comigo, e então fiquei sempre muito discreta. Mais tarde percebi que era sobretudo uma questão linguística… Ela não falava português”. Foi numa tarde na padaria da rua que se deu o primeiro momento de aproximação. “Ela virou-se para mim e disse ‘olá vizinha’. E na verdade percebi que nessa altura surgia um código possível para uma aproximação”.
Nessa altura Luciana ouvia apenas os sons e a vida que vinham do terceiro andar, da casa de Fatumata. Vozes, música, kora. No prédio ecoava também um outro som, regular, uma espécie de pulsação que integrava o seu dia-a-dia e lhe suscitava um fascínio maior – um pilão com o qual Fatumata triturava os alimentos para as refeições. “O prédio não tem placa de betão, é todo em madeira e funciona um pouco como uma caixa harmónica, por isso o som sobe pelos andares com grande intensidade. A minha sensibilidade [com o som] sempre foi grande e gosto muito de estar atenta à dimensão sonora da relação com o mundo e com as pessoas. Gosto de vozes, gosto de sons produzidos que me possam informar e dar experiência de relação. Este som que vinha lá de baixo [do pilão] interessava-me. Houve um ano em que comecei a ouvir este pulsar do prédio – que me fez lembrar o bater do coração, porque era um som regular – que surgia com uns graves e com uma vibração que integrava o corpo. Demorei muito a perceber o que era, não conseguia ligar o som a alguma coisa”.
Depois tudo foi acontecendo, ao longo dos anos, e o que começou por ser uma vizinhança de gentileza acabou por se transformar numa relação de amizade mais profunda.
A comunicação começou a dar-se em várias línguas: fula, português, italiano, crioulo. “O ultrapassar essa distância foi uma questão linguística. E quando percebi isso, dispus-me a essa troca. Não era pela facilidade de falarmos em português que iríamos construir uma relação, mas através de uma troca de palavras em várias línguas”. Como se diz irmã em italiano? E em Fula? E em Crioulo? O jogo das palavras acabou por fazer parte da relação entre as três, que desde longo perceberam que partilhavam da mesma condição bilingue, de uma história onde os dialetos foram desaparecendo.
E depois o cinema
Ao longo dos anos foi acompanhando várias fases da vida, sentimentos, celebrações e nascimentos. Fatumata tem seis filhos e Luciana já conhecia bem os mais velhos. Aissato, filha primogénita, começou a frequentar a sua casa desde pequena. Via os dicionários e ficava curiosa com aquele jogo das palavras. Pedia-lhe para lhe ensinar uma palavra em francês ou em italiano e assim iam alargando a experiência sobre os vários significados. Ficava curiosa com o seu trabalho, com as histórias da sua vida e os posters de cinema na parede.
Um dia convidaram-na para o batizado de Abdulai, penúltima filha de Fatumata, e Luciana decidiu oferecer um presente: filmou a festa no terceiro andar e deu-lhes as imagens do batizado editadas, para poderem mostrar à família que estava na Guiné. “Elas ficaram muito impressionadas, diziam que a vida delas parecia um filme. Aissato estava realmente entusiasmada com aquilo, não acreditava que fosse possível”. Passados quatro anos, foi Fatumata a pedir um novo filme, do batizado de Yunnus, o seu último filho.
No meio de tudo isto, Aissato vivia o seu primeiro amor. “Um dia ligou-me à noite e disse que tinha de me pedir um favor. Amanhã passo em tua casa. Ela chegou, bateu à porta e disse que não ia explicar o que era mas que precisava que a ajudasse a filmar uma coisa. Eu disse que sim. Vais ver, é uma surpresa. E no dia em que ela veio cá, só preparei um fundo, uma cadeira e uns microfones, um pequeno set para filmarmos.
Aissato não disse o que queria fazer. Trouxe uns apontamentos e entregou-os a Luciana “estão aqui cinco perguntas que tens de me fazer”. Era uma espécie de guião que tinha desenhado para escrever a sua carta ao rapaz por quem se tinha apaixonado, que vivia em Inglaterra. “Eu fiz-lhe as perguntas e ela contou através delas como se apaixonou e quando percebeu que ele era importante. Ela pediu-me porque viu o filme do batizado e percebeu o que um filme podia ser. Ficou, desde o início, fascinada com aquele formato cinematográfico. E de repente estava apaixonada e quis traduzir a sua carta para outra linguagem… Foi um momento bonito. De repente passávamos da dimensão do íntimo e do privado para uma dimensão do cinema”.
E foi depois disso que Luciana teve a ideia de fazer uma criação sua. E desta vez num outro território, e a partir do diálogo que já existia entre as três, das várias reflexões sobre felicidade, amor, sentimentos, das histórias que partilharam ao longo dos anos. “A Fatumata ficou entusiasmada, era um momento particular para partilhar o passado e para contar as suas histórias da Guiné. Ela preparava-se para as filmagens com muito cuidado. É muito bonita e tem esse lado muito saudável da vaidade feminina. Gosta de cultivar a beleza… Então acho que por um lado se sentia gratificada por poder ser apreciada desta forma, e estava contente por falar, por ter um tempo para contar as suas histórias”.
O filme começa precisamente com Aissato a construir a sua vídeo-carta de amor, imagens filmadas em 2013. “Tratar aquela carta de amor foi uma inquietação desde logo”. Nunca chegámos a saber o seu conteúdo, Luciana soube preservá-lo.
“Não queria contar as nossas vidas, as nossas conversas, a nossa intimidade, nem falar sobre as nossas diferenças mas abordá-las de uma forma relacional e percetiva. E escolhi espaços onde elas pudessem existir: o espaço da palavra e o espaço do prédio”.
Há uma cena onde Fatumata narra uma história durante longos minutos, um momento de criança que partilhou com a sua avó. Conta-nos das vacas que guardava e da solidariedade que sentia para com a sua avó naquela tarefa, ajudando-a sempre apesar de contrariada. Nesse momento, que dura uns longos minutos no filme, conseguimos perceber a solidariedade que Fatumata sentia e auto-determinação que tivera quando em criança decidiu não trabalhar no campo e imaginou uma vida num outro lugar.
Os vários retratos e planos fixos ao longo do filme sugerem-nos continuamente a noção do tempo e da escuta. Planos em que as mulheres são filmadas como ouvintes, explicitando o querido jogo da tradução. Uma reflexão sobre a educação sentimental de três mulheres, muito diferentes entre si, mas com sentimentos partilhados. Umdiálogo no feminino que coloca em confronto universos muito distintos, em termos culturais, linguísticos e religiosos. Cruzam-se vários lugares, várias línguas, noções de existência, várias ideias de felicidade, de casamento e de amor. Porém o filme não é tanto sobre a diferença mas mais sobre o entendimento entre o que cada uma tem sobre uma experiência que de alguma forma todas partilham. Luciana não tinha em mãos um trabalho fácil e também não nos quis facilitar a vida. É essa a grande beleza do filme: a simplicidade com que nos apresenta uma reflexão sobre a educação sentimental partilhada pelas três mulheres.
Um travelling vai-nos dando conta da passagem do tempo. Mostra-nos os vários patamares do prédio, as luzes, os sons e uma planta – uma monstera deliciosa – cujas raízes caem do quinto andar quase até ao chão, como que dando conta desse tempo passado, descrevendo um tempo maior do que o próprio filme. Um universo biológico que tem a sua força própria e que reforça a verticalidade do prédio numa dimensão de horizontalidade, de trabalho de procura da terra, de enraizamento. Foi com Marcello Urgeghe e Rui Xavier, diretor de fotografia, que Luciana se dedicou a uma espécie de regime de invenção e construção de um travellling que atravessa verticalmente o prédio, pelos cinco andares, com uma altura quase de 30 metros, construído com roldanas e cordas.
“Os drones têm muito sucesso no cinema, mas tenho antipatia por eles. Há algo naquele movimento – por vezes perfeito – que não me agrada. Contém algo que não é humano, mas sim espetacular. Eu queria que existisse um olhar imperfeito, suave, que pudesse acariciar este prédio, respirar como um humano”. O gesto é político e o que nos apresenta rejeita qualquer hipótese informativa, propondo-nos um filme numa linguagem cinematográfica muito percetiva e relacional, que não cai em descrições e narrativas da diferença e preserva a intimidade da vida e do espaço privado.
A matéria do cinema, o movimento que nasce do conhecimento e da relação para a criação de universos que partilhamos a partir do som e da imagem é um gesto profundamente político, porque move lugares e reifica histórias, dando conta de uma partilha do sensível.
“O cinema está num ponto entre mim e o mundo. Não sou eu nem é o mundo. É um ponto no meio. Na descrição e no movimento que faço neste filme, nada está só no lugar delas e nada está só no seu lugar. Ou não estou no meu lugar para descrever o lugar delas. O filme está neste ponto intermédio de uma relação e um espaço comum”.
E é essa partilha do espaço comum que Luciana dá a ver ao espectador, criando um espaço comum entre nós. A política do filme é a partilha desse pensamento, a procura desse gesto que move lugares e esbate fronteiras, não pelas coisas que conta, mas pela capacidade de operar esse gesto alheio a todos os movimentos retóricos sobre o outro e o mundo.