Uma rave escondida em Queimada Grande com os Ninos du Brasil
Foi num camarim do Cinema São Jorge, entre copos de gin e gargalhadas, que conversámos com Ninos du Brasil (Itália), que vieram a Lisboa a propósito do encerramento da Festa do Cinema Italiano. Os NDB são Nico Vascellari e Nicolò Fortuni, que deste 2010 encabeçaram um projecto que mistura techno, samba e batucada. Na biografia lemos que nasceram em Queimada Grande, uma ilha perdida em São Paulo, de acesso proibido, onde mora a serpente mais venenosa do mundo.
Faltavam menos de duas horas para o concerto. Deitados no chão contaram algumas histórias.
Nico e Nicolò conheceram-se nos With Love, banda de hardcore italiano do final dos anos de 1990. Nico já fazia parte da banda e Nicolò entrou mais tarde como baterista. “Não houve uma verdadeira audição… Percebemos que havia uma afinidade musical e a mesma vontade de nos divertirmos. Foi assim que entrei e a partir dali começou a nossa aventura” [NF], contava.
Foi durante uma digressão pelo Japão que surgiu a ideia dos Ninos du Brasil. Era Agosto de 2000 e queriam fazer algo que pudesse provocar mais o público e transformar o tipo de concertos que costumavam fazer. “Estávamos sempre com muita energia… Um dia tivemos a ideia de criar um duo de bambini brasileiros, sujos de lama, vestidos de futebolistas, que durante uma hora inteira cantariam algo repetitivo” [NF]. Nico interrompe entusiasmado, “Sim, queríamos ter um timbalão a fazer tump tump tump tump e depois por cima cantar algo hipnótico” [NV].
A ideia era formar uma banda que abrisse os concertos dos With Love, e que contrastasse com aquele imaginário punk de onde vinham. E foi assim que, quando faltava um grupo para tocar num festival que Nico Vascellari estava a organizar, surgiram os NDB. Não fizeram nem um ensaio, contavam. Apenas chegaram ao concerto e cantaram Não somos ninos du brasil/somos ninos du brasil/não somos ninos du brasil/somos ninos du brasil. E cantam em coro e ainda a rir. “É impressionante como, passados 10 anos de termos tido aquela ideia, isto ainda nos faz rir” [NV]. E lembraste quanto tempo durou o concerto?, perguntava Nicolò. “Apenas 5 minutos, porque a luz se foi abaixo… E ainda bem, porque já estávamos exaustos (risos). Mas as pessoas deliraram completamente… E nós também” [NV].
Passados 10 anos daquela ideia absurda, decidiram que aquilo poderia ter potencial. “Ou funciona ou cagamos. Vamos ao estúdio e gravamos 3 músicas. Se sair bem, boa. Se não, paciência” [NF]. E foi nessa mesma tarde no estúdio que perceberam que os Ninos podiam funcionar.
Mas porquê esse nome? De onde surgiu essa relação com o Brasil? Perguntámos, depois de tanto tempo à espera de uma história que nos fizesse poder entrever esta ligação.
Foi depois dessa primeira experiência “intuitiva” em estúdio que mergulharam numa investigação mais séria sobre a batucada, o samba e o Brasil, contam. “Mas tudo começou com um fascínio quase visceral por àqueles ritmos…No início era apenas uma brincadeira… baseada na imagem de um Brasil a partir deste outro lado do mundo. O imaginário que tens através das coisas que vês na televisão”. O carnaval, os ritmos frenéticos, as danças, os rabos nus, explicavam, que representavam precisamente uma imagem oposta aos WL. “Mas não era uma paródia em relação àquela cultura. Era um enorme respeito e curiosidade pelo ritmo e a corporalidade que ali se engendrava” [NF].
Quando se fala em “Ninos do Brasil”, surge automaticamente uma associação a um lugar e uma referência a uma idade: os miúdos que brincam na rua ou jogam futebol na calçada. Há uma referência visual clara e foi a partir dela que quiseram trabalhar, tentando sempre transmitir imagens através das palavras ou dos sons que criam. Durante algum tempo decidiram manter a identidade dos Ninos em segredo. Queriam que as pessoas pensassem que eram, de facto, miúdos brasileiros. Algumas pessoas sabiam quem eram e, claro, os primeiros concertos surgiram de convites de amigos, porque não tinham se quer uma faixa gravada. “Se tivéssemos revelado logo quem éramos, as pessoas não iam perceber… Porque é que dois membros dos With Love começam a fazer música eletrónica, fingindo que são brasileiros, vestidos como dois estúpidos?” [NV].
Foi depois do primeiro disco que acabaram por revelar o segredo. Mas ainda hoje há pessoas que acreditam que são brasileiros e que falam português – como nós pensávamos. “Às vezes antes de um concerto, estamos à mesa a jantar com outras bandas e alguém pergunta mas afinal quando chegam os brasileiros?” (risos) [NV]. É com ajuda do google tradutor e muita imaginação que inventam os nomes das músicas. “Quando dissemos pela primeira vez ninos du brasil, pensávamos que estávamos a falar português certo”.
Sobre a ilha de Queimada Grande, dizem ser uma forma de sugerir que as suas músicas, por mais festivas que sejam, “têm algo de obscuro, místico”. É essa espécie de misticismo, que nos perturba mas ao mesmo tempo hipnotiza que sentimos ao ouvir, por exemplo, “Novos Mistérios”, o penúltimo álbum que lançaram, editado pela Hospital Productions. Da capa, aos títulos das músicas e letras, tudo nos faz mergulhar nesse imaginário misterioso. “Quando gravámos [o álbum] em estúdio, dizíamos coisas do género: imagina que estamos no meio da floresta, a atravessá-la, e que vemos alguém no meio das árvores que olha para ti. Vá, agora grava.” (risos). Algo ou alguém entre as árvores? [referência a uma música], interrompemos. “Exacto. Enfim, tentamos criar um cenário a partir desse nosso imaginário do Brasil, e damos-lhe vida através da música”. É por isso que os concertos, sejam na Bienal de Veneza ou num squat em Bruxelas, são sempre uma espécie de acto de profanação, um ritual de corpos molhados, explosões de confetis e moshes sem misericórdia: “Os concertos podem mudar ligeiramente em termos técnicos, mas na base, o objectivo é sempre tentar que as pessoas percam o controlo… O live nunca muda, tentamos sempre que seja o mais carregado possível, como se convidássemos as pessoas para uma rave escondida em Queimada Grande” [NF].
E a música Sepultura, é uma homenagem à mítica banda de metal de Belo Horizonte?, quisemos saber: “Claro. E essa história é incrível. Os Sepultura estavam a fazer uma tourné para comemorar os 20 anos da saída do álbum Roots. Um amigo nosso de L.A. estava com eles e escreveu-nos a dizer ‘pessoal, não vão acreditar, mas os Sepultura tocam ao vivo uma canção vossa!’. Nós rimo-nos e nem ligámos. Passadas algumas horas, estávamos nós em Nápoles, e recebemos um vídeo deles a tocar uma música nossa. Continuámos a olhar para aquilo a pensar que o Rocco tinha feito uma boa montagem… Aquilo só podia ser piada.”
Mas não. Foi assim que descobriram que os irmãos Cavalera [Antônio e Igor] tocavam ao vivo uma música deles e que afinal aquele e-mail que tinham recebido há três anos e nunca tinham respondido por pensarem que era brincadeira, era afinal verdade. “Eles tocavam o disco inteiro de Roots para o clássico público metaleiro, fazem uma cover dos Motorhead e depois… tocam uma música dos NDB! Incrível…”, conta Vascellari, entusiasmado.
E Nicolò acrescenta, “se há 20 anos, quando tocávamos com os With Love, alguém dissesse que iríamos fazer um grupo chamado Ninos du Brasil, onde fingimos que ser brasileiros, vestidos como estúpidos, tocar techno misturado com samba, nós iríamos rir muito e levar aquilo pouco a sério… E se nos propusessem apostar comer uma sandes de merda em como essa tal banda iria ser admirada pelos Sepultura, que iriam fazer uma cover nossa, nós iríamos apostar sem hesitar”.
Sobre o próximo disco, revelaram que vai ser sobre vampiros e que conta com a participação de Arto Lindsay. Vampiros?, perguntámos. “Vai chamar-se A vida eterna. A ideia é um pouco ambígua, no sentido em que podemos pensar numa vida para além da morte, mas também pode ser uma referência a uma vida que queres viver para sempre… a imortalidade. E só ambicionas isso quando estás feliz com a tua existência”. Vai ser muito lindo, interrompe Nicolò.
Ficámos em silêncio e Nicolò diz “Obrigadi”. Rimos-nos todos e saímos para a sala de concertos.
[Em Agosto, os Ninos du Brasil voltam a Lisboa para tocar no Festival Forte, em Montemor-o-Velho]
Créditos:
Entrevista realizada por Mariana Pinho, com o apoio e tradução de Giorgio Gristina
Som: Miguel Soares
Agradecimentos: Giorgio Gristina, Miguel Soares, Festa do Cinema Italiano