A Cidade e o Pós-colonial - parte II

As sociedades coloniais exerceram um impacto de longa duração nas práticas e identidades dos centros imperiais e esta conexão reflete-se na paisagem europeia pós-colonial. A assunção comum de que a descolonização e o fim do Império foram recebidos com indiferença nos antigos centros imperiais euro­peus deve ser reanalisada, tomando em consideração a perma­nência nas ex-metrópoles de processos que foram hegemónicos no contexto imperial1. Os passados coloniais continuam pre­sentes nos contextos pós-coloniais de várias formas, as quais podem ser encontradas quer na cultura pública, quer em luga­res inesperados do quotidiano e na esfera do mundano, mos­trando que os entendimentos comuns em relação ao Império, no período pós-descolonizações, se articulam com uma grande variedade de canais e instituições2.

Os passados imperiais podem ser interpretados no contexto de uma cultura nostálgica em relação ao Império, expressa tanto em investimentos patrimoniais feitos sobre os seus vestígios materiais, quanto na recuperação e na reprodução de imagens coloniais na cultura popular (na alimentação, nos livros escola­res, na publicidade)3. Subsistem também na persistência de uma «mentalidade colonial» em tempos pós-coloniais, que tem na base visões parcelares mundanas e que serve, também, de instrumento às políticas criadas a partir de anteriores sistemas de governação, como é o caso da Commonwealth4. Mas a persistência dos passados imperiais no presente pode ser entrevista de outras formas. As relações de poder e de diferença estabele­cidas pelos imperialismos europeus modernos são muitas vezes reativadas nas cidades europeias contemporâneas, condicio­nando estatutos económicos, divisões de classe e políticas raciais. Nestas cidades, as migrações pós-coloniais produzem comuni­dades de diáspora de acordo com sistemas de poder prevale­centes, que adquirem uma dimensão espacial e são habitados por tensões sociais e interraciais culturalizadas5.

Muitos dos caminhos criados no tempo colonial desembo­caram na Lisboa pós-colonial. Por intermédio destes itinerários chegaram os antigos colonos, chamados pejorativamente «retor­nados»; chegaram também antigos sujeitos imperiais que agora se transformaram em imigrantes6. Depois de cinquenta anos de ditadura e mais de uma década de guerras coloniais, o fim do colonialismo português trouxe finalmente para o seio da antiga metrópole a dimensão real desse outro Portugal efabu­lado durante décadas pela propaganda do regime. Com uma população rural muito significativa e com grandes taxas de anal­fabetismo, foi com o fim do colonialismo que muitos portugue­ses tiveram contato com esses «outros», negros, mestiços, india­nos, que habitavam os territórios retratados nos manuais escolares. A sua integração dependeu de vários fatores, entre os quais se destaca a origem de classe, não poucas vezes asso­ciada ao tom da cor da pele. Elites africanas, escolarizadas, inte­graram-se na vida urbana de forma diferente de uma imigração dirigida a setores laborais, como o serviço doméstico ou a cons­trução civil, para onde foram os primeiros contingentes de tra­balhadores cabo-verdianos, ainda no início da década de 707. A maior afluência dos agora imigrantes das ex-colónias ocorre, porém, após o 25 de Abril. Estes imigrantes estabelecem-se nos subúrbios de Lisboa, em habitações ilegais e bairros de auto­construção, alterando subitamente a morfologia social e racial da cidade8.

Como em outras ex-metrópoles, também em Portugal as relações de dominação e exploração estabelecidas sob o colo­nialismo determinaram a natureza de migrações pós-indepen­dências: ou seja, quem se estabeleceu na cidade contemporânea, como essas pessoas foram integradas no mercado de trabalho, e em que condições vivem? Se a língua se tornou num meca­nismo de aproximação, de um recurso operativo no quotidiano, é verdade que as diferenças nacionais, as características fenotí­picas, o grau de educação e a pertença de classe recriaram na antiga metrópole situações de discriminação9. Dados recen­tes indicam que dos 417 042 imigrantes registados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 2012, uma importante percen­tagem, quase metade, é originária de países de língua oficial portuguesa (25,3% brasileiros, 10,3% cabo-verdianos, 4,9% angolanos, 4,3% guineenses, e 2,5% são-tomenses)10. A mesma fonte confirma a forte presença urbana da imigração, em par­ticular na cidade de Lisboa, com quase metade dos imigrantes em Portugal (181.901), a que se segue Faro (62 624) e Setúbal (44 197). A representação desta população por idades revela também que são as gerações laboralmente ativas que estão pre­sentes de forma esmagadora no país. Grande parte destes imi­grantes habita geografias racializadas e espacialmente segrega­das de desvantagem social no seio da cidade global. No entanto, são eles que alteraram a organização social da cidade, com as suas construções e memórias, como é revelado no capítulo de Eduardo Ascensão sobre os bairros de autoconstrução da peri­feria de Lisboa.

A assunção da existência de uma cidadania lusófona, assente na criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 1992, poucos efeitos terá ainda hoje face aos direi­tos concedidos pelo Estado português ao imigrante, ou face à lógica muitas vezes perversa que acompanha a sua integração no mercado de trabalho, como fica evidente no capítulo de Nuno Dias11. Tal situação denota as tensões e ambivalências que caracterizam a relação entre a população portuguesa branca e a população portuguesa oriunda das ex-colónias e seus des­cendentes. A persistência do mito luso-tropicalista previne um olhar mais crítico sobre as situações de marginalidade social em que vivem frequentemente os migrantes das ex-colónias, ou sobre a persistência de formas de racismo subtis que condicio­nam as relações sociais12. Sob a representação do imigrante lusófono pesa um modelo assimilacionista com ecos provenien­tes do passado colonial. Este veicula a ideia de um hibridismo cultural, caracterizado por uma convivialidade pacífica com a diferença racial e cultural.

Mas a replicação nas cidades pós-coloniais de formas de organização social que foram típicas do sistema colonial urbano não ocorre de modo linear. Se nas cidades coloniais em África aqueles que mais sofriam com o sistema discriminatório e explo­rador se apropriaram das possibilidades conferidas pelo mundo urbano, nas cidades pós-coloniais as formas de poder são tam­bém contestadas e apropriadas. Nem sempre assumindo a forma de etnicidades politizadas ou de movimentos reivindicativos, as diferentes diásporas têm conseguido negociar posicionamentos simbólicos e vantagens sociais no espaço da cidade, recorrendo a representações imperiais previamente estabelecidas13. Tal sugere que as políticas de identidade e diferença estabelecidas sob o colonialismo e negociadas através de várias formações pós-coloniais não são apenas «praticadas» em cenários sociais particulares. Como propõe Doreen Massey, o espaço faz parte de uma geografia de poder e de significado em constante mudança, em que o material e o ideológico são mutuamente constitutivos14. Nestas geografias, as categorias de «nós» e «outro», aqui e lá, passado e presente e local e global solicitam­-se reciprocamente através do espaço da cidade15. É, aliás, o que sucede no capítulo de Simone Frangella sobre a imigração brasileira em Arroios.

É também através do espaço da cidade que se desenham novas políticas da identidade, engendrando reatualizações das ideias de raça, classe e comunidade sobre ideologias imperiais prevalecentes. A persistência das ideologias e práticas imperiais é evidente tanto na territorialização do espaço da cidade, como nos atuais processos de renovação e desenvolvimento urbanos, como fica demonstrado no capítulo de Nuno Oliveira sobre o estabelecimento de formas globalizadas de expressão da dife­rença cultural, na cidade de Lisboa. Processos de gentrificação, desenvolvimentos urbanos, intervenções patrimoniais, caracte­rísticos, por um lado, do consumo pós-moderno, e por outro, de várias nostalgias pós-imperiais que alimentam uma indústria que toma por base uma cultura histórica patrimonializada16.

Na cidade global, atravessada por múltiplos fluxos migratórios e afetada por constantes processos de mudança, as sucessivas idealizações do passado imperial podem ser entendidas como tentativas de homogeneizar a nação, traduzindo as experiências desestruturantes de raça, etnicidade e classe à luz de ideias como multiculturalismo ou diálogo intercultural que, por sua vez, funcionam frequentemente como marcadores da diferença no mercado global das cidades17.

Também nos espaços de comemoração da capital portu­guesa continuam a reproduzir-se os velhos mitos imperiais, sobretudo aqueles associados às primeiras viagens de descoberta e expansão e ao esplendor do Império marítimo português. Em sucessivas narrativas operadas no espaço da cidade, do Mosteiro dos Jerónimos ao Padrão dos Descobrimentos ou à Expo’98, os mitos fundacionais da nação recompõem-se para se acomoda­rem ao posicionamento simbólico do país numa Europa moderna, multicultural e cosmopolita. No mesmo sentido, a imagem de um imperialismo sem colónias, pioneiro e ecumé­nico, adequa-se a linguagens globalizantes e a operações de branding da portugalidade, ligadas ao turismo, ao comércio e aos desígnios da chamada diplomacia económica, facilitando, no plano simbólico, as importantes trocas comerciais entre Por­tugal e os antigos territórios coloniais ou a nova vaga de emi­gração de portugueses para Angola ocorrida nos últimos anos.

Esta é, porém, uma imagem feita de muitos fragmentos. Ao lado de uma nostalgia pós-imperial, muito presente nos registos literários ou na produção televisiva, que deixa transparecer uma noção de perda, de melancolia ou de ressentimento em relação ao passado imperial, perfila-se uma outra, de caráter festivo, muito presente na produção artística e musical «lusófona»18. Por um lado, os traumas deixados pela guerra colonial e pela experiência do retorno invadem crescentemente a esfera pública nacional, reclamando uma atenção para as fraturas deixadas pelo colonialismo português19. Por outro, as situações de subalternidade social e de segregação racial herdadas do colonialismo são obliteradas através de processos de estetização da diferença, produzidos tanto pelos sujeitos metropolitanos como por aqueles oriundos das ex-colónias e seus descendentes. Posi­ções de trabalho desqualificadas, imobilidade social, precarie­dade habitacional, são algumas das consequências estruturais que acompanham esta obliteração. É também sobre este pro­cesso que se debruça o texto de José Mapril.

A reconstituição de uma retórica sobre o passado imperial português é, portanto, composta por uma história e por uma geografia colonial específicas, por imperialismos contemporâ­neos e por um sem fim de possibilidades pós-coloniais. A inter­rogação das diferentes formas pelas quais o passado colonial se projeta na contemporaneidade passa pela reconstrução destes múltiplos itinerários. É fundamental questionar as permanên­cias desse passado no presente e as consequências que daí resul­tam no que toca ao relacionamento com os sujeitos que passa­ram pela experiência colonial, sejam estes imigrantes de antigas colónias portuguesas, «retornados», ou ex-combatentes. Esta análise deve incluir a interpretação dos múltiplos e complexos trânsitos entre colonizador e colonizado, e também entre ex­-colonizador e ex-colonizado20. Tal pressupõe considerar simultaneamente as questões da classificação racial e da misci­genação, da imigração, da lusofonia, da cidadania e da exclusão21. Neste contexto, interessa destacar o modo como se processou a transição do país para a democracia e o conco­mitante processo de descolonização, o posicionamento perifé­rico de Portugal na União Europeia, o lugar dos imigrantes (oriundos das ex-colónias e de outras proveniências) dentro do espaço nacional22. Mas, mais importante, deve questionar a condição de indivíduos e grupos, a permanência de lógicas de organização social, de relações de poder assentes em poderosos mecanismos de classificação e de categorização herdados do período colonial e que operam hoje, muitas vezes, por intermé­dio de categorias que eufemizam esse poder e ocultam a sua génese. Tal pressupõe a indagação das formas pelas quais essas categorias são apreendidas, vividas e praticadas, por aqueles que fazem uso dessas representações em tempos pós-coloniais.

Os capítulos

O conjunto de capítulos aqui apresentado resultou de um longo processo de discussão entre autores que partilham temas de investigação, mas também perspetivas comuns sobre esses temas. Provenientes de diferentes tradições disciplinares dentro das ciências sociais, os autores trataram os seus objetos a partir das suas referências e metodologias, o que torna este volume particularmente diverso. As leituras cruzadas entre os autores, bem como os pareceres críticos dos vários referees anónimos, como sempre acontece na coleção História & Sociedade, muito contribuíram para a construção deste livro.

Parte destes capítulos trata do período colonial, focando, na maioria dos casos, a presença portuguesa em África no século XX. É o que sucede nos capítulos de Isabel Castro Henriques e Miguel Pais Vieira, sobre as cidades angolanas, de Nuno Domin­gos, sobre Lourenço Marques, de Diogo Ramada Curto e Ber­nardo Pinto Cruz em relação à ação política sobre o território e as populações que se seguiu aos acontecimentos no Norte de Angola que desencadearam a guerra colonial em 1961, e de Harry G. West sobre o processo de ordenação do território e das populações no Norte de Moçambique. Neste último caso, a sua análise estende-se desde o período pré-colonial até à atualidade.

O texto de Isabel Castro Henriques e Miguel Pais Vieira, debruçando-se sobre o «facto urbano colonial em Angola», apre­senta também uma análise de tempo longo, onde a caracteriza­ção da emergência de cidades coloniais nesta colónia portu­guesa é antecedida pela análise das «cidades africanas». Estes núcleos urbanos eram espaços diversos, com organizações pró­prias que introduziam ruturas na própria morfologia das socie­dades locais, enquanto meios de inovação, troca, invenção técnica e de ajustamento funcional a dinâmicas estruturais que evoluíram com o tempo. A presença colonial transformou, em escalas diferentes, a estrutura destas cidades africanas, impondo novos métodos de organização e de funcionalidade, adaptados aos interesses do colonizador, e que implicaram um controlo e uma segregação sobre as populações locais. A história das cida­des angolanas é a expressão de um processo de domínio colo­nial, representado na materialidade do espaço urbano e dos seus edifícios, mas também na organização social, permeável aos ritmos da história económica e política. Recorrendo a ele­mentos fotográficos para reforçar o seu argumento, os autores demonstram como a forma urbana se constituiu num terreno privilegiado do político e das lutas pela imaginação de uma sociedade. Neste quadro, as populações locais também foram, mesmo durante o período de domínio colonial, construtoras das suas cidades, que habitaram e transformaram.

Em «A desigualdade como legado da cidade colonial: racismo e reprodução de mão-de-obra em Lourenço Marques», Nuno Domingos parte do exemplo da capital de Moçambique para interpretar o modo como o campo do poder colonial, num período de modernização económica, procurou lidar com o «problema» da população que se acumulava nos subúrbios da cidade. Participando criativamente na construção destas cida­des, estas populações viam as suas vidas condicionadas pela ação colonial sobre a organização urbana. Num período de forte propaganda, assinalado pelo fim do indigenato, mais do que cidadãos imperiais integrados num todo cultural partilhado, os habitantes do subúrbio continuavam a ser fundamentalmente concebidos enquanto mão-de-obra. Os projetos de moderniza­ção procuravam «racionalizar» esta força laboral, tornando-a não apenas mais eficaz e estável, mas também envolvendo-a de um modo mais orgânico com a economia monetária, ao esti­mular, por exemplo, os seus hábitos de consumo. A verdade é que os dados empíricos produzidos pela própria ciência colonial sobre a população da cidade revelavam a continuação de um sistema de reprodução barata de uma mão-de-obra que vivia em condições muito precárias, o que afetava os seus hábitos e a sua forma de ver o mundo. A questão da mão-de-obra, num quadro definido pela racionalização da produtividade e pela questão da integração social, continua assim a definir a cronologia do colonialismo português.

Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto Cruz, em «Cidades coloniais: fomento ou controlo?», recorrem a um estudo de caso sobre o realojamento de populações na cidade de Carmona (Uíge) para mergulharem em profundidade no exercício da ação colonial, revelando as dinâmicas estruturais que condicio­nam agentes, instituições e as contradições entre as políticas no terreno e a retórica de propaganda promovida pelo próprio regime. Utilizando um conjunto de fontes precisas, os autores concentram-se na reação portuguesa aos levantamentos no Norte de Angola em 1961 que irão dar início à guerra colonial. Dos relatórios políticos e administrativos, emerge uma conceção estatal das populações locais, a qual decorre não apenas de uma representação mas de uma prática concreta. Enuncia-se assim a lógica de um exercício político que junta a coerção e a violên­cia a técnicas de urbanização, de reordenamento do território e de povoamento. Este sistema de dominação – localizado a um nível infraestrutural e bem localizado – era motivado pelo inte­resse na gestão política e social, pela permanência de práticas de segregação e de cooptação de estruturas políticas tradicio­nais, mas também pela necessidade de manter o fornecimento de mão-de-obra às populações de colonos e de responder aos grandes interesses económicos locais.

O texto de Harry G. West trata também das questões do povoamento e do ordenamento do território, embora apresente uma cronologia mais extensa. Focando o caso de Mueda, no Norte de Moçambique, cuja história está também indelevel­mente associada à violência colonial, o autor traça uma inter­pretação histórica das formas de territorialização do poder desde o período anterior à presença portuguesa até ao momento pós-colonial. Apresentando uma perspetiva que parte da inqui­rição etnográfica das populações que viveram estes processos, embora recorrendo também a outras fontes, Harry G. West ofe­rece-nos um olhar sobre a dinâmica de territorialização do poder a «partir de baixo». Fala-nos da relação das populações com o poder tradicional, com as suas estruturas práticas e sim­bólicas, sujeitas também a evoluções, e o modo como foram transformadas pela chegada do colonizador, do Estado colonial que cobrava impostos, da empresa que beneficiava do trabalho forçado. Foca também os planos coloniais de povoamento e de deslocação ordenada das populações. No período pós-colonial, a alegria da libertação do jugo do colonizador não libertou as populações do norte de Moçambique de lógicas de dominação perenes. Os habitantes de Mueda, condicionados por estas rela­ções de poder, são representados aqui enquanto os construtores da realidade em que vivem e em relação à qual vão reagindo.

O texto de Filipa Lowndes Vicente fala-nos sobre o que sobrou das antigas cidades da Índia portuguesa no final do século XIX («As ruínas das cidades: história e cultura material do Império português da Índia [1850-1900]»). O olhar de Ger­son da Cunha, historiador goês, estabelecido em Bombaim, cria um lugar único a partir de onde se produz uma representação sobre o Império, ou melhor, sobre as suas ruínas. A procura de uma materialidade, a utilização de um método científico moderno, afim das melhores práticas europeias, a seleção das fontes, os usos da fotografia, serviam um olhar indiscutivelmente afetado por uma condição social e cultural. Desse olhar, que procurava recuperar o passado português enquanto objeto per­dido no meio da força da ciência britânica e da sua narrativa histórica imperial, acaba por fixar uma presença colonial base­ada em edifícios religiosos, militares e administrativos que na altura jaziam abandonados. Se a ruína permitia construir um discurso historiográfico sobre a experiência imperial portuguesa na Índia, ela era também sinal de um passado que, pelo olhar do historiador, não deixou muito mais do que ruínas.

No final do século XIX, quando Gerson da Cunha procurava relatar esse passado português, o projeto imperial deixara ainda algumas possessões na Índia, mas virara-se definitivamente para África. É sobre alguns dos filhos mais ilustres dessa África gover­nada pelos portugueses que escreve Manuela Ribeiro Sanches em «Lisboa, capital do Império. Trânsitos, afiliações, transna­cionalismos». Foi em Lisboa que, a partir da década de 40, um grupo de estudantes das colónias africanas se juntou. O espaço criado pelo Estado Novo para formar elites coloniais, a Casa dos Estudantes do Império (1944-1965), foi para estudantes, tais como Mário Pinto de Andrade, Alda Espírito Santo, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Noémia de Souza e Amílcar Cabral, o local de maturação de um conjunto de ideias sobre a condi­ção dos seus territórios e populações. A Lisboa triste do salaza­rismo surgia para estes jovens como uma zona de contacto, um espaço moderno de leituras e de partilhas. A geografia da cidade ficou marcada por um conjunto de percursos africanos, de encontros políticos, consumos literários e trocas teóricas que circulavam por cidades europeias e através de mediadores pri­vilegiados que davam forma a imaginações e aspirações, por vezes conflituais: a negritude, o pan-africanismo, o marxismo, o nacionalismo. No coração do Império colonial português, mau grado as diferenças que os separavam – a origem, a cor da pele, a classe social – os estudantes discutiram o futuro do con­tinente africano, que dispensava tanto a soberania portuguesa, como a dos outros Impérios coloniais.

O projeto da Casa dos Estudantes do Império não era o único que revelava as tensões e contradições inerentes às polí­ticas de dominação colonial. É sobre estes processos pouco line­ares que escreve Marcos Cardão («‘A juventude pode ser alegre sem ser irreverente’. O Concurso Yé-Yé de 1966-67 e o luso­-tropicalismo banal») ao debruçar-se sobre um concurso de música popular moderna organizado pelo Movimento Nacional Feminino. Esta instituição revelou-se, durante a guerra colonial, como um dos apoios mais efetivos à propaganda do regime de Salazar. O que Marcos Cardão trata neste livro é do modo como o Estado Novo procurou penetrar em formas de cultura popu­lar emergente para construir um conjunto de consensos acerca da unidade nacional e imperial, suscitando formas de luso-tro­picalismo banal. Para isso aproximou-se de práticas que se reve­lavam populares junto da «juventude», categoria cujo cresci­mento recente se sustentava no aumento da escolaridade em Portugal. A juventude tornara-se assim num «problema social e político» que convinha controlar. Encontravam-se sobretudo nestas condições os filhos e filhas das classes médias ou das pequenas burguesias em ascensão, que tinham tempo e dispo­nibilidade para, ainda fora do mundo do trabalho, consumir os produtos culturais fomentados pelos meios de comunicação de massa, pelo disco, pela rádio e pela televisão. Muitos jovens encontraram nestes embriões de subculturas juvenis meios de expressão de aspirações de consumo e a possibilidade de rom­per com um conjunto de convenções sociais. A cultura popular urbana, não apenas em Lisboa mas nas grandes cidades colo­niais, surgiu então com um espaço particular de luta, o que alarga necessariamente o âmbito dos estudos sobre o campo político.

A finalizar esta segunda parte, Elsa Peralta apresenta-nos um estudo de caso sobre o modo como uma zona particular da cidade, Belém, se transformou numa «paisagem cultural» que explícita e implicitamente transmite um conjunto de noções e sensações sobre a história de Portugal, em especial sobre o perí­odo colonial. Em «A composição de um complexo de memória: O caso de Belém, Lisboa» a autora percorre o tempo de cons­trução de um lugar de memória oficial, composto por um con­junto de edifícios e espaços cujas funções, administrativa, cien­tífica, religiosa, comemorativa, turística concorrem para a criação de uma conceção glorificada da história de Portugal e nomeadamente do chamado período dos «descobrimentos». Apesar de atravessar diferentes tempos políticos, das suas cons­truções e espaços expressarem interesses distintos, servidos por técnicas, estéticas e lógicas próprias, parece subsistir em Belém, até aos dias de hoje, uma narrativa dominante sobre a história de Portugal. Neste lugar de composição de um complexo de memória, parecem não existir meios de contestar e discutir uma versão oficial da história portuguesa, glorificada, que hoje se manifesta sobretudo como modo de atração turística. Através deste percurso empírico, a autora explora as complexidades inerentes aos processos de composição das memórias públicas nacionais, caraterizados pela conformação de diferentes temá­ticas e temporalidades numa narrativa coerente e unívoca, pela constante re-narrativização dos sentidos atribuídos ao passado conforme as circunstâncias de cada momento e pela inscrição mnemónica no espaço por via da sua representação material.

Na terceira parte deste livro situamo-nos na Lisboa contem­porânea. Depois do fim do Império português em África, em 1975, o legado do poder colonial português não desapareceu da capital do país. A grande maioria dos antigos sujeitos do Império africano, que na Guiné, em Angola e Moçambique foi até 1961 considerada indígena, transformou-se em população estrangeira, potencialmente imigrante. A alteração de estatuto, vincada pela mudança da lei da nacionalidade em 1975, ao se abandonar o critério do solo para se adotar o critério do sangue, não deixa de ser significativo23. A presença destes imi­grantes, até hoje, distingue as vivências na cidade de Lisboa e suscita um conjunto de interrogações sobre as ruturas e conti­nuidades que atravessaram esta transição. Um dos objetivos fun­damentais deste livro foi perceber de que forma um conjunto de sistemas de classificação simbólicos, base de categorizações de poder que justificavam quadros de relações profundamente desiguais, desde logo a já referida oposição entre o indígena e o civilizado, se reformulam no tempo, em especial durante a transição que marcou o fim do Império africano. Um tal pro­cedimento obriga a pensar o colonial não só como resultado de uma relação cultural, mas sobretudo como uma relação de poder.

É no contexto urbano, como o de Lisboa, que as relações sociais que envolvem imigrantes das antigas colónias portugue­sas em África são enquadradas por políticas institucionais, prá­ticas laborais e sistemas de interação quotidianos que reprodu­zem categorizações e representações, fortemente racializadas, e reforçam a existência de continuidades com a situação colo­nial. É de notar que a força dos mecanismos de reprodução em causa é extensiva a outros grupos, caso dos brasileiros prove­nientes de uma onda de imigração mais recente. Neste quadro, as populações imigrantes procuram adaptar-se e conquistar o seu lugar na cidade, que constroem com os saberes que acumu­laram e que expressam no modo como imprimem uma marca própria à cidade. É disso que Eduardo Ascensão nos fala em «A barraca pós-colonial: materialidade, memória e afeto na arquitetura informal». Neste capítulo somos confrontados com as micronarrativas de vida dos habitantes do bairro da Quinta da Serra nos arredores de Lisboa. O autor centra-se nos proces­sos de construção do bairro, mais concretamente no conheci­mento implicado nas técnicas e estéticas que envolvem a auto­construção de habitações, no âmbito do que é designado por arquitetura informal. Nesta autoconstrução estão impressas as vidas de quem constrói e de quem habita, as suas memórias, os conhecimentos e as imagens que produzem do espaço habita­cional, bem como as funções que lhe atribuem. Enfrentando condições de marginalização severas, visíveis na sua relação com o Estado, estes habitantes constroem também a cidade. Muitos deles atravessaram a experiência colonial e sentiram, depois, já na antiga metrópole, a manutenção de formas de dominação e invisibilidade.

O modo como a população brasileira instalada no bairro de Arroios transformou este lugar central de Lisboa foi um dos interesses que guiaram a investigação de Simone Frangella em «‘Fomos conhecer um tal de Arroios’: construção de um lugar na imigração brasileira em Lisboa». A maior comunidade imi­grante em Portugal encontrou neste espaço um conjunto de condições de habitabilidade que se ajustaram às suas redes e recursos, bem como à sua disponibilidade para ocupar deter­minados lugares no mercado laboral. A investigação sobre estes imigrantes brasileiros permitiu à autora recuperar a história de um bairro «invisível», sem uma característica histórica ou turís­tica que o torne suficientemente distintivo para lhe proporcio­nar uma identidade vincada. Um parque imobiliário em deca­dência e uma população envelhecida tornaram-se condições imprescindíveis para a chegada dos imigrantes. As suas lojas, locais de entretenimento, de culto religioso, bem como a sua presença nas ruas e no quotidiano transformaram a vida deste espaço lisboeta. O quadro de representações que historicamente ajuda a construir imagens sobre a população imigrante como também acerca da população portuguesa constitui-se como ele­mento fundamental de avaliação desta integração urbana. Estas representações tornam por vezes as interações mais simples, como se as ações se ajustassem a uma expectativa de comporta­mento pré-codificado. Isto sucede, por exemplo, em contextos laborais, onde se espera dos brasileiros a reprodução de um comportamento alegre e convivial. Em muitas ocasiões, no entanto, são momentos de recuperação de um conjunto de estereótipos que invocam velhas imagens coloniais e que se tor­nam operativos como parte de um processo de categorização do «outro». Muitos brasileiros sentiram a força destas categori­zações, quando procuraram encontrar casas, no decorrer das suas experiências de trabalho e nas suas interações quotidianas.

A adaptação das populações imigrantes a lugares urbanos específicos e determinados mercados de trabalho, com os quais passam a ser identificados, é o tema principal do texto de José Mapril, «Um lugar estrutural? Legados coloniais e migrações globais numa rua em Lisboa». Partindo da sua própria investi­gação no Martim Moniz, o autor sugere que o trânsito migrató­rio das antigas colónias portuguesas criou um lugar estrutural particular, conotado com posições de trabalho desqualificadas e com determinadas esferas da oferta comercial. Bairros degra­dados do centro de Lisboa, historicamente habitados por popu­lações pobres, entre as quais se encontravam minorias e contin­gentes migratórios, tornaram-se nos espaços de acolhimento destes novos migrantes. Foi aí que desenvolveram redes e ativi­dades. Para muitos isto significava retomar conhecimentos e experiências adquiridas no âmbito do quotidiano nas cidades coloniais da África portuguesa. Este lugar, inicialmente ocupado por indivíduos com uma experiência no contexto do colonia­lismo português, proporcionou as condições ideais para que, mais tarde, outras populações imigrantes em trânsito o viessem a ocupar. A recomposição populacional da rua do Bem For­moso, na Mouraria, oferece uma base empírica ao argumento do autor. É impossível pensar este lugar estrutural sem analisar as condições do mercado habitacional na cidade de Lisboa e o modo como o Estado e os interesses imobiliários atuam para configurar a morfologia de um espaço. Esta análise permite reforçar o interesse em tomar as relações coloniais como rela­ções de poder com características discerníveis no período pós­-colonial e em diferentes contextos. Tais relações reproduzem­-se por intermédio de dinâmicas de construção de diferenças, que apresentam um lógica estrutural na sociedade portuguesa, e traduzidas em categorias de dominação simbólica, como todas aquelas que reificavam processos de racialização de grupos e populações.

O texto de Nuno Dias retoma a ideia de lugar estrutural. Em «A colónia, a metrópole e o que veio depois dela: para uma história da construção política do trabalho doméstico em Por­tugal», o autor sugere a existência de uma homologia de classe na posição estrutural do trabalho doméstico em três contextos urbanos diferentes. Assumindo que estes três momentos estão sujeitos a processos simbólicos próprios de constituição da alte­ridade, Nuno Dias prefere salientar os mecanismos de explora­ção de classe próprios da condição do trabalho doméstico. Estes não implicam apenas uma condição material desqualificada, mas uma subordinação prática e simbólica particular. Se entre as formas de exploração do trabalho doméstico nas grandes cidades da África imperial portuguesa, as migrações de «cria­das» do campo para a cidade no Portugal do pós II Guerra Mundial e a condição das empregadas domésticas imigrantes na atualidade subsistem processos de diferenciação distintos, entre estes momentos persistem práticas comprovam uma forte homologia estrutural. Ao defender este ponto de vista, o autor procura chamar a atenção para os benefícios interpretativos inerentes à utilização do conceito de classe em perspetiva com­parada, e em contextos históricos distintos. Tal operação per­mite perceber continuidades em processos de dominação eco­nómica que tendem a ser ocultados pela hegemonia de uma história política, presente por exemplo na polarização entre o colonial e o pós-colonial, ou mesmo nas interpretações que ten­dem a não articular os processos de racialização e de construção da alteridade com a posição económica.

Por fim, Nuno Oliveira debruça-se sobre o processo de governança da diversidade cultural, associado à mercantilização da ideia de mistura cultural ou interculturalidade na capital portuguesa. Em «Lisboa redescobre-se. A governança da diver­sidade cultural na cidade pós-colonial. A Scenescape da Moura­ria», o autor encontra nos planos de reabilitação urbana no bairro da Mouraria semelhanças com processos que ocorreram noutras cidades europeias. Nestes contextos, a ideia de uma interculturalidade mercadorizável, ou seja, convertível em recurso económico e simbólico, serviu planos de reconversão urbana e social, surgindo como uma dimensão específica dos projetos das chamadas «cidades criativas». A atração de novos grupos sociais para bairros que, apresentando uma centralidade, têm uma história recente de degradação, passa também pela disseminação de uma ideia de espaço e convivialidade quoti­diana baseada numa conceção de convívio cultural e de encon­tro de culturas, mais especificamente de uma «vantagem da diversidade» propensa a fomentar estilos de vida e consumos pós-modernos. Nuno Oliveira argumenta que este «étnico per­mitido» acaba por ocultar as condições reais de marginalização e discriminação em que vivem grande parte destas populações.

Mais do que isso, ao acrescentarem valor económico e simbólico ao espaço urbano, estas imagens multiculturais desencadeiam um processo de renovação que em muitos casos afasta desses mesmos bairros as populações mais empobrecidas, sejam ou não de origem imigrante. Para o autor, a criação de uma ideia turística e imobiliária de uma Lisboa multicultural e harmónica, cimento de um consenso social, convoca velhas noções presen­tes na propaganda colonial, firmadas na mitologia luso-tropical e que, com a força inerente aos processos de reprodução, se reatualizam em tempos pós-coloniais.

 

ler a primeira parte deste artigo, A Cidade e o Colonial

 

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  • 23. Em 2006 esta lei sofreu uma alteração e adotou-se um estatuto misto.

por Nuno Domingos e Elsa Peralta
Cidade | 18 Novembro 2013 | arquitectura, Lisboa, luanda, Maputo, pos-colonial