De Amílcar Cabral ao bairro da Jamaica
Aproximando-se a data em que se cumprirão os 45 anos do assassinato de Amílcar Cabral (20 de janeiro de 1973), decidi submergir na volumosa colectânea Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena - A Outra Face do Homem (2016). Neste livro estão compiladas as cartas que, entre 1946 e 1960, o líder independentista enviou a Maria Helena, sucessivamente amiga, namorada e esposa. Ao sentar-me no sofá para me dedicar a abrir essa antiquíssima arca em que as cartas estariam diligentemente guardadas, não pude deixar de sentir, como muitas vezes acontece na leitura de documentação epistolar, o imerecido privilégio no acesso às palavras de outrem. Porque as cartas não me eram dirigidas - e ali estive eu a receber indevida correspondência; porque no tempo de poucos dias viajei por 16 anos de uma vida a dois; porque li em 2019 textos destinados a uma mulher que as esperava na primeira metade do século XX e, finalmente, porque espreitei pelas íntimas cortinas um amor feito de determinação, saudade, lirismo e amizade, ao mesmo tempo que ameaçado pelo racismo, pelas lógicas patriarcais e pela angústia de um futuro precariamente cartografado. Muito desse futuro incerto resultava, como sabemos, do desígnio que Cabral se impôs, apenas porque lhe seria tão impossível viver separado de Helena como permanecer no relativo conforto da metrópole lhe oferecia:
…abandonando todas as minhas aspirações (elas traduzem as aspirações de milhões de indivíduos), abandonando a África. (…) Tu sabes, como eu, quais as forças que me chamam para a África, forças a que não resistirei, porque seria trair-me, trair a própria vida (carta de 20/08/1948)
Das riquíssimas possibilidades de análise política, social e cultural que as cartas nos concedem - pese embora a importantíssima ausência da voz de Helena, que apenas poderemos adivinhar -, gostaria de me deter na carta de 28 de agosto de 1950. Nessa missiva, Cabral conta como se sentiu impactado por um recorte do jornal Primeiro de Janeiro trazendo notícias do problema racial no Brasil. Lembra a luta antirracista da bailarina negra norte-americana Katherine Dunham que havia sido impedida de se alojar num hotel de São Paulo, para alívio dos clientes brancos, e de situações similares do boxeur Joe Louis. O olhar de Cabral para os racismos, candente um pouco por todo o mundo, é em si exemplar de uma sensibilidade que ao mesmo tempo se ancora no repúdio dos regimes coloniais em África, em que nasceu, viveu e a cujo combate se entregou, e abraça uma solidariedade transnacional capaz de firmar uma irmandade com os negros e afrodescendentes espalhados pelos diferentes continentes. Na mesma carta, repudiando o racismo que diz grassar pelo mundo, Cabral convoca as palavras do antropólogo Alfred Métraux num artigo do jornal Le Courier da UNESCO, “um órgão da ONU”. Traduzindo alguma das passagens, Cabral cita as palavras de autoridade do antropólogo expondo a óbvia vacuidade científica da raça na demarcação dos grupos humanos.
Esta pequena carta é interessante, creio, no modo como de alguma forma nos coloca em diálogo com o papel da ONU e com a Década Internacional de Afrodescendentes 2015-2024, recentemente decretada. É certamente verdade que a ONU e o regime internacional de direitos humanos porventura jamais conseguirão reverter o “defeito de nascença”: o fracasso em responder à questão política mais importante do século XX, o colonialismo. De facto, não pode deixar de ser considerada significativa a deliberada omissão na Declaração Universal dos Direitos do Homem da referência à autodeterminação dos povos num momento em que metade do mundo estava sob o jugo colonial, como não pode ser ignorada a irrelevância da linguagem dos direitos humanos, até muito tarde, na maioria das lutas anticoloniais. No entanto, é instrutivo perceber como o espaço institucional e político da ONU criou aberturas e possibilidades intersticiais que levaram, por exemplo, a que possamos ler Cabral a citar textos anti-racistas da UNESCO em 1950, 13 anos antes de iniciar a luta armada na Guiné-Bissau.
Portugal integra a Década Internacional de Afrodescendentes proclamada, a 23 de dezembro de 2013, através da Assembleia Geral da ONU, com o tema “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Esta iniciativa surge no contexto de múltiplas conferências, resoluções, declarações e convenções que reiteraram que todos os seres humanos devem nascer iguais em dignidade e direitos e possuem o potencial de contribuir construtivamente para o desenvolvimento do bem-estar das sociedades. Neste sentido, a proclamação da década pode ser compreendida como um esforço renovado, dada a insuficiência prévia de cooperação internacional na eliminação de formas de racismo, xenofobia e discriminação e promoção do respeito, proteção e realização de todos os direitos humanos para todas pessoas afrodescendentes. Será porventura cedo para sabermos em que medida a acrescida visibilidade das lutas de negros e afrodescendentes se articulam com o espaço discursivo e institucional potenciado pela Década Internacional de Afrodescendentes.
Em todo o caso, num momento em que muitas das lutas anticoloniais seguem por cumprir, tanto nos países africanos como noutros continentes, a ancestralidade de Cabral e do anticolonialismo é um crucial memorando de que há lutas que não podemos trair, um memorando das muitas latitudes de indignidade racista e, finalmente, um memorando de que os corredores das instituições, a escola piloto de Conacri, as matas da Guiné-Bissau e o Bairro da Jamaica no Seixal são referências cruciais para as cartografias partilhadas de um futuro antirracista e anticolonial.
Cabral, Iva; Souto, Márcia; Elísio, Filinto (orgs.), (2016), Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena - A Outra Face do Homem. Lisboa: Rosa de Porcelana.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu.