Liberdade /diáspora a cronologia universal da descolonização da História
Cortejando talvez o secreto desejo de nos acreditarmos cuidados por forças benfazejas, além dos mundanos sortilégios e dos quereres que nos decidem as fortunas de cada dia, lemos frequentemente generosas coincidências em encadeamentos que logo se explicam afinal tão prosaicos. Foi precisamente a enganosa bênção de uma dessas coincidências que senti quando, caminhando por Londres, entrei na galeria Autograph (Rivington Place), onde me pude passear pela exposição LIBERTY / DIASPORA, de Omar Victor Diop.
A exposição divide-se em dois projectos do artista senegalês, sendo o primeiro “Liberdade: uma cronologia universal do protesto negro” (Liberty: A Universal Chronology of Black Protest). Ali se reúnem 12 retratos fotográficos de corpos negros que recapitulam uma possível história da resistência anticolonial e anti-racista. Trata-se de uma cronologia deliberadamente caótica e transnacional que convoca levantamentos anticoloniais e anti-racistas tão distintos como: A Guerra das Mulheres (em 1929, na Nigéria); Os Trabalhadores Ferroviários de Dacar (em 1938 e 1947, no Senegal); O Levante do Sueto (em 1976, na África Sul); Selma (1965, nos Estados Unidos da América); ou o Motim de Friedman Field (em 1945, nos Estados Unidos da América).
O segundo projecto, Diáspora (Diaspora), consiste numa colecção de fotografias, quase sempre réplicas de retratos fixados na pintura, que representam um conjunto de homens africanos que comparecerem nas histórias ocidentais entre os séculos XV e XIX. Por lá encontramos August Sabac El Cher (1836-1885), soldado afro-germânico que combateu em várias guerras pela Prússia; Henrique Dias (1605–1662), que se notabilizou ao serviço de Portugal na Guerra Luso-Holandesa, no Brasil; ou Frederick Douglass (1818-1895), celebrado líder abolicionista afro-americano.
As fotografias que encontramos em ambos os projetos, longe de uma solenidade elegíaca, oferecem uma estética paródica marcada, desde logo, pelo protagonismo quase narcísico de Diop, modelo da quase totalidade dos retratos da exposição. Nesse repetido autorretrato, através do qual Diop incorpora diferentes personagens negras, percebemos também um deslocamento pelo qual se declara a possibilidade de um negro se representar nos seus termos, ainda que dentro de matrizes de reconhecimento olimpicamente eurocêntricos. A presença assertiva, quase arrogante, e o dandismo performado pelos/as personagens retratados/as, demarcam as fotografias de Diop de uma qualquer humilde dignidade, expressão imagética da subjetividade colonizada que o racismo consente. Trata-se, sim, da mimese (mimicry) de que nos falava Homi Bhabha, aquela em que o fracasso na identificação narcísica com os modos de representação do colonizador, o carácter sempre inapropriado dos sujeitos coloniais, cria uma ambivalência que, num espelho cómico e trocista, perturba a autoridade encenada pelo discurso colonial. Um outro elemento que acrescenta ambiguidade cénica é o facto de existirem adereços alusivos ao futebol em todos os retratos de “Diáspora”, talvez porque o futebol seja hoje, para o homem negro, a mirífica porta de entrada na aristocracia da cultura mediática europeia.
Entrei na exposição de Omar Victor Diop, no contexto de uma curta passagem por Londres, onde fui participar num colóquio Decolonizing History: The politics of memory of the Last European Empire, organizado pelo Birkbeck College, Universidade de Londres. O evento, gizado pelo historiador Luís Trindade, teve por pretexto o amplo debate suscitado em Portugal sobre o Museu dos Descobrimentos, que Fernando Medina fez constar no seu programa eleitoral à autarquia de Lisboa. Entre muitas outras coisas, o colóquio falou da insustentabilidade de uma representação do passado imperial que não inclua as sórdidas misérias da violência colonial racista, ou das perversas consequências de uma história dobrada aos desígnios de um nacionalismo celebratório, racial e eurocêntrico. Vivemos décadas de uma democracia condescendente com uma descolonização por cumprir, aquela que deverá levar Portugal a reconhecer a sua herança colonial e racista, assumindo, por exemplo, o seu papel cimeiro no tráfico transatlântico de escravos, o estatuto do indigenato (até 1961), uma colossal guerra colonial (até 1974), a continuada denegação do racismo, e a presença ofensiva de um colonialismo glorificador que marca a generalidade das sociedades pós-imperiais europeias.
No entanto, cabe dizer que a este respeito vivemos tempos interessantes. Desde 2015, assistimos a uma aliança – porventura inorgânica – entre sectores da academia e portugueses/as afrodescendentes que vieram inscrever no espaço público histórias, corpos e continuados sofrimentos que não cabem nem poderiam caber num “Museu das Descobertas”. Em diferentes latitudes, vivemos em sociedade herdeiras do colonialismo e constituídas por ruínas imperiais: podemos herdar o privilégio, beneficiando direta ou indiretamente das riquezas acumuladas pela exploração europeia; ou podemos herdar, às vezes cumulativamente, a opressão do racismo institucional, expostos à desigualdade e à violência colonial racista, dependendo da cor da nossa pele, da classe social, da formação académica, ou da zona da cidade em que vivemos.
Sair do colóquio sobre a descolonização da história e entrar na exposição de Diop, plena de corpos negros convocando-nos a pensar o presente do colonialismo nas nossas vidas, pareceu de facto o cumprir de uma predição. Desgraçadamente, no regresso da exposição lembrei-me de que tinha sido alguém no colóquio a recomendar-me que ali fosse - exatamente pelo debate em torno dos museus e do colonialismo -, e que o feliz acaso não teve, afinal, nada de acaso ou maquinação divina. É sempre aborrecido quando histórias bonitas são perturbadas por memórias que as denegam.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias,financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.