Moram numa ilha de que nem sabem o tamanho.
Moram no meio do mar. Numa ilha que nem sabem o tamanho. Nunca viram tinta um pincel… nunca viram uma boneca com braços e pernas, inteira, nem adivinham a cidade. Seu mundo é um lugar que se resume a nada ou quase nada porque ali, para além das mabangas, sustento da família, passa de vez em quando um barco a sério, sem serem estes dos pescadores, que nem nome não tem. Nem motor. E que nem sorte não trazem.
Suas estórias são breves e feitas de nada. Repletas de violência que tratam por tu como se fosse normal… ah! E suas atribuladas viagens com imbulas básicas das províncias do lá bem Longe bem longe, Moxico Bié …KK…onde só tem rio bem grandeee. A família ficou. Veio só a mãe. Com “todas crianças”. Hum? Sim. É verdade Xéee!
Sim. Sem água nem Luz… a esperança amarrada no pano. As mulheres podem ficar até doze horas dentro de água. Entram quando a maré começa a vazar… saem quando começa a encher… leva meses para encher um barco até cima. Até lá, a geleira é à beira da praia, para conservar. Para depois vender. Comprar panos, peixe seco e voltar. Mas até lá…demora…
E até lá do lixo do tal mar, que antes nunca tinham sequer ouvido falar, vai chegando uma surpresa de brinquedo chinês partido, ou uma mochila sem fecho e com os bolsos cheios de marés e de memórias de escolas com telhado e professor e tudo. E um super herói alheio… desconhecido, ou uma princesa com os cabelos louros e longos, sem dono, cor de rosa, estampado na frente. Servirá para guardarem os sonhos.
Na ilha, a fome é teimosa. Faz-lhes “sonhar”.
Abro os frascos de tinta. Estendo a tela na areia branquinha… e sem medo da cor do jeito do “desenho”, soltam sua alegria e em pinceladas breves onde as mãos ajudam lá bué, descobrem que o amarelo e o azul viram verde… e quando o pedaço de tela termina, sem nem mais um cochito de branco livre sequer… perguntam quando vai ter mais. Afinal agora já sabem fazer lá bolas, pintar uns olhos no meio… ou um peixe… afinal podiam até desenhar a única árvore que têm frondosa por perto… ou uma concha… mas a tela terminou e o espaço é do tamanho da ilha… tem fim. Não reclamam. E ensinam-me a “ler” a ilha.
E oferecem o sorriso, os olhos feito berlindes a brilhar, a surpresa inquieta que não pára e é amiga da alegria, de caxexe a magia o encantamento que a cor provoca em seres mínimos que, sem saberem ler ou escrever, assinam o testemunho disso que é ser pequenino e ser “só” numa ilha sem casinha a sério, ou um calção novo, ou um vestido novo, com um laço… ou um lanche abrilhantado com um pão fresco mesmo seco e um sumo desses de pacote que chegam vazios com a calema…um rebuçado de mel… ou um par de chinelos sem ser um de cada nação, um da Nike e outro Adidas, uma caneca… quando a maré lhes traz com a lua bué cheia, a fezada de uma roda de um carrinho… ou um prato com rosas e borboletas esbatidas de sol e castigadas pelo sal Atlântico. Ser miúdo.
Na tela deixam “escrita” a alegria a luz a fantasia e no fim a vergonha medonha de não saber escrever o nome … de não terem um lápis um papel… o direito à cidade que mora do outro lado do mar. O direito a uma aspirina para aliviar a dor…
Ali é Luanda. Perto, a três minutos de barco, nem tanto, o Mussulo “agoniza” por excesso.
Sem promessa, acabo por voltar porque ali mora o amor avulso, que me cabe inteiro de cada vez que chego. Pintar cura. E depura. Um dia vou mostrar-vos. “Vão espantar”! Não vai valer chorar! “Obrigada sim”.