Anozero’19, Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra
O nome Anozero sugere um recomeço permanente, mas a edição’19 da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, que termina no dia 29 de dezembro e ocupa 8 espaços na cidade, mais 5 se incluirmos o programa convergente, densifica e expande o projeto anterior. Continua a interrogar a precariedade e a contingência das condições de produção artística, mas já não vive no medo da experiência falhada ou no risco de desinstalação que marcaram a primeira edição, em 2015, destinada a sustentar, mas também a desafiar, uma conquista memorável: o reconhecimento pela UNESCO da Universidade de Coimbra, “alta e sofia”, como património mundial da humanidade. A segunda edição fez a festa desse feito, apostando em artistas consagrados para visibilizar e destacar um evento arriscado numa cidade off path do circuito da arte contemporânea, e ocupou com exuberância um edifício notável – o convento de Santa-Clara-a-Nova, segunda casa das irmãs clarissas que ali se instalaram no século XVII – preenchendo-o com experiências sensoriais múltiplas, lúdicas e celebratórias.
A terceira bienal trouxe novas opções curatoriais, asseguradas pelo trio responsável, presidido pelo curador brasileiro Agnaldo Farias, e curadoria-adjunta de Lígia Afonso e Nuno de Brito Rocha. Assegurada a ocupação do antigo espaço conventual, assumido como lugar central e marcante do circuito expositivo, tratou-se agora de o habitar mais respeitosamente, sem deixar de desbravar e explorar, avançando para novos espaços e mantendo a utopia original de, a cada edição, recuperar mais um lugar devoluto: desta vez, foi o Cine-Teatro Avenida, dentro das Galerias Avenida.
No convento, fruto da parceria entre o programa artístico e o programa arquitetónico, agora institucionalmente vinculado ao Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, a antiga sala de praças viu a cobertura ser retirada e abriu-se como claustro, lugar de retiro e contemplação semeado com árvores novas, como se a bienal quisesse desmilitarizar o espaço, desviolentá-lo e devolvê-lo aos seus usos primeiros, aproximando a arte do divino. Há ainda um hortus conclusus, criado pelo empilhamento de um grande número de troncos de árvores resultante da recente limpeza e desmatação da cerca conventual — concretizadas por militares — criando um lugar dentro do lugar, “uma improvável terceira margem”.
É neste espanto respeitoso de quem inventou o que não existia que o visitante vai sendo surpreendido pela sinestesia das obras que habitam o despovoado, fantasmagórico e potente convento-quartel, irmanadas pelos fios do conto do escritor Guimarães Rosa, que dá o mote e entrelaça todos os contributos. “Como assentar num lugar sistematicamente invadido por tamanha força?”, interroga o guia da exposição, fazendo dessa pergunta o centro político do projeto bienal. É uma pergunta literária, colocada no texto inspirador; uma questão decisiva que atravessa o mundo da arte e a relação com os públicos; e uma visão para a cidade, vitalizada, mas também cicatrizada pelo rio Mondego, metaforizado em fronteira, passagem e abismo.
Nesta opção, sustentada nas parcerias reforçadas com os grupos artísticos e os lugares de pensamento académico locais, a bienal fez-se verdadeiramente de Coimbra, trazendo para dentro do seu corpo a pesada herança de uma cidade de pedra, periférica, que ainda pode sufocar enclausurada na beleza rígida do seu edificado patrimonializado.
As opções da curadoria tripartida procuram ativar a humanidade no património ou fazer da pedra rio, informalizando a relação entre as pessoas e a cidade. Pelo menos na utopia artística que tão generosamente anima a experiência do visitante, resolvem-se as imparidades da paisagem local e global, dando oportunidade e escala aos novíssimos e desafiando os consagrados a pensarem para o mundo, mas a intervirem neste lugar. Reconhecemos em muitas obras as temáticas da arte contemporânea, desde a revisitação da memória traumatizada colonial, às redefinições identitárias múltiplas, à urgência climática e à esquizofrenia da (des)ordem moderna.
Os temas enraízam e soam ao longo de uma oferta enorme que obriga a um dia inteiro de visita para se completar, sem prejuízo de se manter vivo um sentimento de fruição. A bienal provoca uma experiência de inquietação, mas também de maravilhamento. “Chega que um propósito”, escreveu Guimarães Rosa, traduzido em militância pelos curadores. Tudo ali se ergueu com dolorosa alegria.