Hugo Canoilas, um artista luminoso que gosta das sombras
A conversa com Hugo Canoilas (artista plástico, nascido em 1977 em Lisboa, vive em Viena) começou no escurinho do cinema. Não vimos o mesmo filme, projetado na cabeça de cada um, embora cohabitássemos o espaço de uma enorme gruta em resina construída no subsolo da galeria Quadrado Azul, em Alvalade, onde desde 2019 acontecem intervenções e ocupações. O espaço da caverna, alegoria fundadora do pensamento, é subvertido ou talvez apenas ampliado na sua potência criativa. O convite é para entrar e aceitar a escuridão, e não para sair e ver a luz, como na versão da história contada por Platão. A caverna original suporta as cicatrizes das passagens de viajantes que se abrigaram neste útero rugoso: numa das paredes, desenhos primitivos convocam espíritos antigos, o esqueleto fossilizado de uma cabine telefónica vintage evoca a ruína de uma relação mutilada entre um pai e um filho, vestígios de pinturas lavados pela chuva escorreram manchas azuis e cinzentas nos sulcos da superfície e mais haveria a descobrir, apontando a lanterna com prudência e maravilhamento. Nada é violento ou desfigurador, tudo é descoberta e inscrição. Outras marcações sobrevivem apenas na memória de quem as presenciou, porque na gruta acontecem concertos, projeções de filmes, performances e debates. O artista ofereceu o espaço para a experimentação, mas não sugere o percurso, que idealmente busca ligar todos os seres. É uma obra cosmogónica que comunica através da consciência do passado e do presente. Radica em desejos porosos, que mobilizam sem aprisionar.
Na Galeria de Exposições Temporárias da Fundação Gulbenkian podemos ver até dia 30 (maio) uma exposição individual de Hugo Canoilas, igualmente causadora da sensação benéfica de mergulho num despojamento fundador, não nas profundezas da Terra, mas no mistério líquido dos fundos marinhos. Moldada na Escuridão apresenta no chão criaturas hibridas (são esculturas pintadas ou tapeçarias esculpidas?), cuja conceção busca uma fusão de materiais (vidro, resina, areia, têxtil) e narrativas: a ciência, porque recicla conhecimento e cartografias geradas por robots que mineram os oceanos; a aventura não épica, recuperando o espírito curioso e tão despossuído (de tecnologia) das expedições de biólogos realizadas no século XIX; a poesia, porque a obra é sensorial e imersiva, inventa imagens e conhece a limitação explicativa dos factos. A geologia ensina-nos que a vida na terra e no mar se descobre em camadas sedimentadas, aceitando o tempo lento e integrando as dificuldades de uma viagem atemorizadora pela dimensão monstruosa das dificuldades. Também aqui as possibilidades de circulação são múltiplas, por sombrios e sonoros caminhos percorridos por almas perdidas entrevistas na luminescência que vem do interior das presenças fantasmagóricas.
Há uma dimensão quase infantil de fruição, e podemos sentir a alegria da criança na praia, abeirada de pocinhas de água onde vivem peixes, conchas, ouriços e outros seres só visíveis para algumas mentes. Há uma explícita convocação e manipulação de saberes científicos, transportando as preocupações cruzadas da ecologia e das visões predatórias das políticas do mar. O título da exposição evoca o texto The Gray Beginnings, um dos capítulos da obra The Sea Around Us (1950), da autoria de Rachel Carson, escritora, bióloga marinha e figura central do movimento ambientalista do século XX. O livro foi um best beller (manteve-se no top de vendas do New York Times durante um recorde de 86 semanas e ganhou o National Book Award para não ficção em 1951), tornando Carson uma celebridade da ciência pública, a utopia do conhecimento para todos, escrito numa linguagem rigorosamente transcendente e literária. É uma homenagem feita de admiração fúnebre, porque antevemos neste display de anémonas tentaculares, conchas gigantes, complexos fungos liquenizados, polvos e medusas milenares uma estranheza irreconciliável e triste. Seremos um dia capazes de dialogar, e nessa altura a pergunta sem resposta eticamente aceitável será: porque nos visitaste, violentaste e extinguiste?
Há evidentemente um mapa artístico. As escolhas de Hugo Canoilas investem a vontade que percorre a sua obra recente: tornar a experiência mais leve e livre, menos normativa e rememorativa. Ele acrescentou: mais feminina, naquilo que o feminismo professa de abertura ao Outro, informalização dos processos e reforço da comunidade. Formado na dureza da história da arte (licenciado em Estudos de Artes Visuais pela Escola Superior de Arte e Design de Caldas da Rainha, concluiu o mestrado em Pintura no Royal College of Art (Londres), o desafio contemporâneo é feito de prefixos: des-construir, re-fazer, re-começar. O trabalho é colaborativo (neste caso, os objetos escultóricos foram produzidos no atelier de Filipe Feijão, um outro artista-artesão-operário com quem partilha afinidades e coautorias em obras anteriores), as proximidades quase intimas, as ligações amplas e intersecionadas. A exposição na Gulbenkian foi acompanhada de um ciclo de iniciativas e visitas guiadas e os vigilantes de sala receberam formação para ajudar os visitantes a circularem em liberdade: podemos deitar-nos, pisar e tocar, gozando a proximidade com os monstros marinhos, misto de animais, vegetais e minerais. De preferência, cuidando e deixando que nos envolvam e acariciem no escuro, respirando sabedoria e mistério.
Aos intrusos visitantes é pedido atenção e tempo. Para ouvir a história. Para sentir a vida que nos atravessa mas também nos transcende. Para compreender o lugar mais certo das coisas, como o próprio Hugo Canoilas faz com os seus materiais, muitos deles recolhidos em praias, no campo ou no estaleiro abandonado da obra inacabada. Sofrem a intempérie e o abandono, até conseguirem dizer o lugar de habitação. Essa espera não garante a escolha certa mas cria o espaço de receção da obra de arte e inicia um processo regrado, contido, que estabeleceu o compromisso da não violência, do diálogo produtivo e da mobilização dos sentidos para paisagens mais invisíveis. Existindo fabricação e tecnologia envolvida no processo de produção das obras – os vidros são tratados em fornos de cerâmica computadorizados, as resinas das conchas e as lãs dos têxteis exigem demoradas técnicas de harmonização – é cultivada uma relação respeitosa com o tempo, as intensidades de intervenção e a singularidade alquímica das metamorfoses geradas.
Nesta exposição, a Fundação Gulbenkian pediu que fosse criada uma ligação mais explícita com algumas das obras da coleção de arte moderna. Hugo Canoilas decidiu expô-las no exterior da galeria (numa das paredes do átrio), desvinculando ou descontaminando a visita desse apriori. Se houver desejo, a proposta é muito aliciante: estão lá 5 obras-irmãs (o sangue comum nasce no rio dos afetos mais do que da genealogia ou da história de arte): uma xilogravura de Susan Hiller, um vídeo de Fernando Calhau, uma paisagem de nuvens de René Bertholo, o desenho de uma pequena romã suculenta de Ana Hatherly e uma pintura de Túlia Saldanha, uma artista nascida em Trás-os-Montes (falecida em 1988) e que, apesar da sua precocidade na exploração de territórios artísticos hibridizados (pintura, instalação, performance) só recentemente recebeu a atenção de museus e centros culturais. A proposta sugere vários convites – ao sonho, ao alimento comum, à subversão, ao sagrado – e não é preciso aceitar todos. Mas, havendo disponibilidade interior, esta é realmente uma exposição criadora de seres e transfiguradora do ser.