Lavrar o Mar em Aljezur e Monchique
Ideologia de género e política identitária na festa de passagem de ano? Sim, é possível.
A sede da Casa do Povo de Alferce ou do Rancho Folclórico do Rogil, o heliporto e a escola de Monchique transformados em locais de acolhimento de espetáculos internacionais… a geografia não é tudo na proposta de Lavrar o Mar – um projeto com direção artística de Madalena Vitorino e Giacomo Scalisi — mas inspira e bombeia o coração da programação que, desde 2016, tem apresentado espetáculos em circulação pela Europa e criações originais na área da dança, do teatro e da música, “no alto da serra e na costa vicentina”. Dizer “coração” é bem apropriado, porque tudo é quente nesta ideia, mesmo se as artes acontecem em espaços improvisados e a estrutura material necessária para os acolher, montar, integrar e apresentar desafia os recursos locais.
Mais arriscada ainda é a não cedência a critérios de facilitação da experiência do espetador, um sujeito abstrato que o Lavrar o Mar perceciona e quer ajudar a construir como múltiplo, diverso e desigual na sua relação com as artes. O público das criações que já começam a estar inscritas na paisagem cultural dos concelhos de Aljezur e de Monchique tem respondido com a generosidade e a exuberância dessa assumida diferença: os cosmopolitas fiéis ao projeto viajam de todo o lado para os ver, misturando-se com as pessoas da terra, também estas tão diferentes entre si, entre velhos e novos ocupantes, músicos-agricultores, apanhadores-de-medronho-poetas, bordadeiras-pintoras, cozinheiras-artistas, pescadores de bacalhau-objetores-de-consciência e demais surpreendentes misturas que a imersão no território sempre desvenda a quem souber e quiser olhar.
A fruição não deixa de ser prazeirosa – vários espetáculos, como Medronho, a Apanha, apresentado em novembro de 2019, ou O Presente de César, Quem vai para o Mar não volta à Terra, em novembro e dezembro, fazem convites expressos ao prazer sensorial, oferecendo comida e sensações – mas também dificulta. Quem se propõe “lavrar o mar” exige uma disponibilidade para um trabalho coletivo, prolongado, épico e ridículo. Desafia convenções, confronta e inquieta, e vai cultivando um modo de ser e sentir desperto para as belezas e as histórias locais mas aberto a receber, cuidar e aprender com quem vem de outras geografias. Se o passado, a memória e as tradições irrompem por todo o lado nas criações artísticas, elas nunca são glorificadas ou folclorizadas, mas são vividas com uma genuína vontade de aproximação à inteireza dessa experiência do interior-rural-litoral-turístico, feita também de solidão e abandono.
O convite a duas companhias de novo circo francesas e belgas para montarem tendas em Monchique durante duas semanas, incluindo a noite de passagem de Ano e o dia de Ano Novo, expressa bem a matriz inovadora da linguagem do Lavrar o Mar. Haverá imaginário mais ancestral, frágil e contemporâneo do que o do novo circo, recuperando histórias míticas assentes num fundo de violência transnacional e trans humana?
No caso de Forever Happily, do Collectif Malunnés, em cena até 5 de janeiro, havia monchinquenses a fazer a frente de sala, os caminhos de acesso à tenda estavam cobertos por desperdícios de madeira e emprestavam um cheiro bom a terra. O percurso até à tenda fazia-se devagar, com alegria e algum maravilhamento, como a memória nos diz que se deve ir ao circo. A dramaturgia combina incríveis acrobacias na barra e no trapézio com música sofisticada e uma transgressora interpretação do universo dos contos tradicionais. Esta é aliás a temática que atravessou toda a programação de circo em 2019: Les Princesses, da companhia francesa Cheptel Aleikoum, apresentado em outubro, era um espetáculo intimista, produzido numa pequena tenda em grande comunhão física e espiritual com o público, que mergulhava nesse amor-ódio pela figura onírica, fantasiada e arquetípica da princesa. Em Forever, Hapily… a loucura e a perversão são ainda maiores, e por isso esta era uma proposta arriscada numa programação festiva para o final do ano.
Previa-se uma afluência de público familiar (esgotou quase todos os dias) mas os diretores artísticos quiseram sublinhar uma mensagem de empoderamento feminino (uma revolta política contra a submissão a papéis tradicionais de género que ocorre em cima do trapézio), tolerância geracional e sexual, corpos femininos e masculinos erotizados e, sobretudo, uma total reinvenção das personagens e do imaginário dos contos tradicionais, com lobos que se recusam a comer as presas, heroínas perversas e príncipes em burn out. Foi um pequeno pedaço da loucura do mundo moderno que trespassou a pacata Monchique, trazendo para 2020 a promessa de resolver todos os inconciliáveis, com amor, boa vontade e imaginação.
Parece fácil se na saída houver, como havia, vinho quente, comida tradicional, champanhe e passas oferecidas pelo município, que se podiam comer “à volta da fogueira” e ao som das vozes múltiplas da orquestra vicentina, um coletivo multicultural de músicos nascidos do encontro na paisagem ímpar daquela costa algarvia, serra e mar, fogo e água, céu e terra.