Bienal Anozero em Coimbra – a arte contemporânea que muda a cidade conservadora
A Bienal Anozero, em Coimbra, já mudou muita coisa na vetusta cidade dos doutores. A quarta edição, visitável até 26 de junho, transformou-se no acontecimento artístico mais relevante da zona Centro, atraindo público e atenção dos media. Desde a primeira edição, em 2015, que o impulso para nascer, motivado pela classificação, em 2013, do conjunto arquitetónico da Universidade de Coimbra, Alta e Sofia, como Património Mundial da Humanidade – é também o seu maior obstáculo. O foco continua a ser ligar o património com as artes plásticos e, como brincava uma curadora de anos anteriores, é muita pedra para partir.
A Bienal tem remado valentemente contra a maré, o mesmo é dizer contra o sentido hegemónico do edificado musealizado, criando um desejo novo: atravessar o rio, galgar a margem, vencer a colina esquerda e descobrir a outra maravilha: o Convento de Santa Clara-a-Nova, para onde as irmãs Clarissas se mudaram em 1696, depois de décadas atormentadas a acordarem com os pés (em anos maus, por vezes, também os pescoços) molhados por causa das cheias do Mondego. Este monumental convento – o maior do país, assegura Carlos Antunes, diretor-geral – é o palco principal e a sua dimensão (+ de 8000 metros quadrados de área coberta) faz da Bienal um evento de grande escala, mesmo em termos internacionais. O estilo conventual é utilitário e o propósito singelo: velar o primeiro túmulo (século XIII) da padroeira da cidade, a Rainha Santa Isabel, e mais tarde a urna de prata e cristal, do século XVII, ambos depositados na igreja barroca contígua.
Graças aos trabalhos de limpeza, recuperação e abertura realizados para acolher os artistas, as obras e o público, o convento tem recuperado um pouco da sua sobriedade e clássico esplendor. Todos os anos se devolve à cidade um pouco daquilo que um século de abandono e usos desviantes foram tirando ao desfrute público. Depois das devotas Clarissas, veio o Exército, que fez do espaço um quartel entre 2011 e 2006, mantendo ainda alguma vigilância de zonas afetas a usos militares. Contar esta resumida história de resistência e clausura no feminino, de ocupação e de reintegração, é ir desvelando o drama da Bienal, amaldiçoada ou abençoada com esse nome inspirado, mas fatídico, de ano zero. Todos os anos se começa de novo, como se fosse a última vez.
Apesar do continuado apoio da câmara municipal, entidade que financia em 75% os cerca de 550 000 euros do orçamento, coadjuvada pelo Turismo do Centro e por mecenas privados, (Carlos Antunes reforça que a verba é modesta para o alcance e as realizações conseguidas) e de um tímido entusiasmo que começa a projetar um roteiro turístico e artístico ligando as joias da coroa monumentais do centro do país, o futuro é incerto. O plano é converter o convento em hotel de luxo, e só não avançou por não terem surgido propostas sustentadas. Esse destino, a concretizar-se, seria o golpe fatal no coração de um projeto que nasceu para ultrapassar visões enclausuradas do saber, trazer mundividência a uma cidade arredada de circuitos artísticos e ativar uma programação convergente e inclusiva. Custa muito imaginar esse desfecho, quando o sonho dos organizadores é recuperar o muito necessitado convento e alargar o jardim da cerca, incluindo de vez este espaço no território de fruição pública.
A Bienal é desde o inicio exigente nas propostas, bastante política, mas para todos, graças à ocupação esmagadora e lúdica de jardins, claustros, galerias, estufas, ruas, bibliotecas e…o matriarcal convento. Sempre se concebeu ponte, parceira e plataforma de dinâmicas consolidadas e emergentes, partilhando a coordenação com os principais agentes culturais da cidade: o município, o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra e a Universidade de Coimbra, através do envolvimento de professores e alunos do Colégio das Artes, da Faculdade de Arquitetura e da Faculdade de Letras.
É neste contexto, simultaneamente festivo e hostil, que a proposta curatorial da edição 21-22, da autoria de Elfi Turpin & Filipa Oliveira ganha uma dramática leitura. Intitulada Meia-Noite, porque são sombrios os tempos, inspira-se em seres alados noctívagos (os morcegos que comem os insetos que atacam os livros e auxiliam na conservação dos 55 mil exemplares conservados na Biblioteca Joanina) e atualiza um repertório de fantasmas e outros seres invisibilizados. Já se escreveu que é a Bienal mais feminista de sempre, pela presença maioritária de artistas mulheres, mas sobretudo pelos temas convocados: fortalecer as contra narrativas ao discurso neocolonial (predatório, racista, discriminatório), intensificar as metodologias colaborativas e a exploração criativa das relações simbióticas e fazer da arte uma ferramenta de emancipação e um recurso central para pensar e agir no mundo.
Nada disto é radicalmente novo na história da Bienal que sempre se foi trilhando na abertura ao Outro (lado) das coisas e da própria cidade, mas talvez o caminho esteja mais sinalizado. Começa pela escolha da figura tutelar da pintora Aurélia de Souza (nascida no Chile em 1866, regressou com a família ao Porto em 1869) cujo autorretrato vestida de Santo António abre hospitaleiramente as portas do convento mas também prepara para a fratura da proposta expositiva. A curadora Filipa Oliveira sublinha que a inspiração na sua “figura aurática, quase bruxa” se deveu à radicalidade contemporânea do seu percurso pessoal e artístico, feito de gestos iconoclastas (como a auto representação como um santo homem) e atenção contínua às questões de género e identidade.
O que vemos daí em diante são 30 obras in situ, muitas comissionadas, todas percorridas pela mesma ferida (seja a brecha cultural, ou o desacerto ambiental) trabalhada por artistas situados em lugares bem diferenciados. Estão representados consagradas já falecidas, como a brasileira Lygia Pape, cuja extraordinária e delicada teia em arame dourado veio de Serralves, ou a cineasta francesa Sarah Maldoror, outros (vivos) como a italiana Elisabetta Benassi, que acende sinais de luzes num dos extensos corredores do convento, a argentina Vivian Suter, o fotógrafo afro americano Paul Sepuya, a feminista pioneira americana Mary Beth Edelson, a peruana Lastenia Canayo ou a colombiana Laura Huertas Millán, mas também vários mais desconhecidos. Filipa Oliveira refere que a preferência por artistas originários ou cúmplices do Sul Global é quase intuitiva e mais do que consentânea com o manifesto que subjaz à programação. Talvez a história mais emblemática das (in) visibilidades causadas pela economia política do circuito internacional das artes plásticas seja a da ceramista senegalesa Seni Awa Camara, cujas (ia escrever maravilhosas, mas é um adjetivo escasso para conter a exuberância e a força expressiva e histórica das suas esculturas em argila) peças foram reveladas ao mundo após a exposição Magiciens de la terra, em 1989, em Paris. Esta foi a mostra fundadora que abriu as portas dos museus aos artistas africanos, até ai relegados para categorizações artesanais sem valor artístico. As figuras maternais da ceramista, espíritos e mulheres carregadas de filhos estão por todo o lado no convento, assombrando o visitante como fazem com a sua criadora, que as inventa e produz para visibilizar a sua própria dor de mulher africana imersa em imaginários ancestrais.
Mas há outras obras muito boas para ver, incluindo de artistas da pós memória. Um dos mais impactantes é Carlos Bunga, que apresenta na cisterna, e na antiga oficina do Exército, um conjunto disperso de mobiliário afundado e um vídeo entrevista com a mãe angolana, que testemunha a sua viagem no atabalhoado processo de descolonização, em 1975. Os paralelos, entre o que naufragou e o que foi resgatado, são imensamente poderosos. Há muitos vídeos e filmes, cuja duração mais do que justifica uma viagem de dois dias. Até porque a Bienal não se esgota no convento, ocupando ainda os espaços do CAPC (Círculo Sede e Círculo Sereia) a Estufa Fria do Jardim Botânico (com uma instalação de Diana Policarpo), a Casa das Caldeiras e o Teatro Cerca de São Bernardo.
Um dos projetos convergentes mais interessantes, pelas sementes que lança, é a Bibliotera, comissionada por Filipa César, Marinho de Pina, Marta Lança, uma resposta desafiante à solenidade barroca da congénere Biblioteca Joanina. Aqui, os livros foram recolhidos durante meses, oferecidos por editoras, livreiros e outros amigos, e neste momento estão no CAPC, no jardim da Sereia. Em breve serão transportados num contentor até à sua casa final: a mediateca onshore, situada na aldeia de Malafo, a cerca de 90 km de Bissau, construída entre fevereiro e agosto de 2021. É um projeto coletivo, animado pelo encontro entre a comunidade local, a Geba Filmes e o coletivo luta ca caba inda. Filipa César, artista plástica e cineasta documental portuguesa, que assina com a historiadora Sónia Vaz Borges (guineense, vive em Berlim e leciona na Universidade Humboldt) o filme Leituras do Mangue, sobre a luta anticolonial e o sistema educativo na Guiné-Bissau, explica que a ideia é discutir o conceito tradicional das bibliotecas e potenciar o valor subversivo e crítico da leitura. Estes livros já estão desarrumados em Coimbra, convidando a partilhas mais informais, mas em Malafo serão talvez lidos no chão (a mediateca também se chama Abotcha, a palavra balanta para terra) ou em cima dos manguezais que protegem a aldeia, a floresta de savana e as planícies aluviais das águas do mar. Quando morrer mais um velho, a biblioteca pode chorá-lo, mas sobreviver.