Despejados para nada – Um passeio de memórias pelo vazio cósmico de Lisboa
Não foram as 14 estações da Via Sacra percorrida por Jesus Cristo até ao Monte do Calvário, mas foram uns bons quilómetros entre a Sé de Lisboa e a sede da Sirigaita, na rua dos Anjos, caminhando por espaços de memória da cidade desparecida. A Lisboa viva das coletividades e das associações, onde uma comunidade solidária e vizinha se reunia para jogar, brincar, cantar, comer e beber, musicar, politizar e conversar, foi transformada em apartamentos de luxo, hotéis ditos de charme, residências para alojamento chamado local, mas que expulsa os locais, ou simplesmente ruínas à espera de um investidor-ainda-melhor-do-que-os-outros. Na noite fria de 20 de dezembro, um grupo numeroso respondeu à iniciativa da Sirigaita e percorreu a paradoxal geografia do centro de Lisboa, onde os turistas alugam e compram na inconsciência dos tempos outros que são a história de belos edifícios. Foram cativados pela beleza, imponência e centralidade, mas os usos outrora coletivos deram lugar a desfrutes privados, incomplacentes e longínquos. Talvez seja isso que dói mais, a gélida certeza de que os novos ocupantes ocupam o vazio apenas para acrescentar mais vazio, passagens fugazes e sem legado onde já existiu vagar, permanência, dedicação e muita solidariedade.
É o vazio cósmico, disse uma das pessoas que contou histórias da violenta desocupação da Seara, no número 9 do Largo de Santa Bárbara, em 2023. O trauma é recente e ainda muitos se lembram de acordarem com a porta aberta à machadada e armas apontadas à cabeça, depois do prédio devoluto, que foi um infantário, ter sido transformado em improvisado centro de apoio para os sem abrigo da zona dos Anjos. Era mais uma ação de protesto pela desigualdade gritante da capital no pós-covid do que uma efetiva vontade de ocupar, mas a resposta foi brutal. A expulsão foi consumada por seguranças privados, pagos pela empresa polivalente que prospera nas muitas valências do negócio imobiliário. Primeiro, comprar quarteirões inteiros aproveitando as regalias e isenções fiscais que o Estado português oferece aos muito ricos; depois, vender a preços tabela em exclusivo para investidores visto gold, com valores base de 350 000 euros para T0; finalmente, rentabilizar em short rentals as casas que os compradores nunca tencionam habitar. Ainda lá estão os tapumes, cujo custo a empresa quis imputar aos ativistas da Seara, mas em breve haverá sorridentes rostos, do Norte e do Sul globais, a espreitar das janelas e talvez a perguntar: onde é que vamos jantar hoje?
Noutros casos, como no Grupo Excursionista e Recreativo Os Amigos do Minho, na Rua do Benformoso, 244, as memórias são mais fraternas, até ao fatídico despejo de 2019. Naquele espaço de encontro cabia a geografia inteira do país, e foram muitas as festas, as reuniões de trabalho, os concertos e os jantares tertúlia que a Casa centenária abrigou, orgulhosamente protegida pela fachada de azulejos raros em Lisboa, reabilitados com dinheiro público pelo programa de intervenção municipal que dizia – dizia – que ia devolver o Intendente aos lisboetas. Hoje a praça é uma muralha de apartamentos luxuosos, alojamentos temporários para estrangeiros, hotéis impossíveis e portas seladas ao que nasceram do outro lado da classe A. Mais uma vez, o vazio cósmico, porque não se ouve nada que chegue do interior desses silenciosos, silenciados prédios, e é preciso que os sons dos risos, dos choros e dos gritos do passado sejam evocados na rua, pela boca de quem se lembra, como fizeram alguns dos caminhantes da visita guiada.
O tom da iniciativa, porém, não deve ser descrito como nostálgico. Há muita gente que ainda não baixou os braços e continua a habitar e a lutar pela sobrevivência e pela partilha das coletividades, dos espaços de experimentação artística, de debate político fora da esfera partidária, de festa e entreajuda. Em cada paragem, houve canções cantadas pelo Coro da Achada, a maioria versos de luta ou de simples maravilhamento pela vida que acontece. A primeira canção celebrou a existência nos versos de Mário Dionísio - Em cada ano/A seiva é nova/Em cada ano/A planta cresce/A folha nasce/A flor rebenta - e uma das últimas, com letra e música do maestro da Achada, Pedro Rodrigues, apelou à coisa que interessa, estarmos juntos: Se temos fome de liberdade/Sem justiça não há paz/Sozinho sabes que não vais ser capaz/Entusiasmo, recomeçar/Outra batalha.
Em cada uma das 8 antigas vibrantes paragens de gente, hoje apeadeiros privados, ou estações abandonadas onde o comboio já não passa e só moram os ratos, foram colados cartazes feitos pelos artistas plásticos membros da Sirigaita, Ana Salomé Paiva, Bruno Borges, Bruno Caracol, Catarina Leal, Emma com dois emmes, José Smith Vargas, Os Ingovernáveis, Rita Comedida e Xavier Almeida. É uma arte efémera, colada a cuspo e cola, que um dos novos arrogantes proprietários fez questão de arrancar, mantendo-se vigilante na portada do prédio que foi da associação Banco, e agora, diz ele, mas ninguém acreditou, vai ser residência privada para estudantes. Era um homenzinho patético e musculado na pele de xerife a defender o quinhão colonizado, incapaz de compreender que esta multidão não quer a guerra, mas exige a justiça e a paz da canção.
Ainda mais irreal pareceu a paragem junto ao antigo Grémio Lisbonense, quase debaixo do arco a espreitar o Rossio, agora um estrelado AL – Além-Mar, podia ser, mas não, é só mesmo Ama-me e Lembra-me, é o que as paredes pedem todas as noites embaladas pela música de cabaret que vem do peep show do antigo cinema Animatógrafo, mesmo em frente. Outros nomes evocam melodias roucas e vozes velhas e alcoolizadas, como o CRA (cra crac cra) – Clube Recreativo dos Anjos, um ainda monte de destroços verticalizados em vias de ser remodelado, mas podíamos dizer também implodido, ou a BOESG – Biblioteca Observatório dos Estragos da Sociedade Globalizadas. A visita acabou com um jantar na sede da Sirigaita, mas só ouvi os ecos das palavras que ali iam ser ditas, quando os nossos caminhos se separaram, a pequena multidão a descer a Avenida Almirante Reis, eu a subi-la, mas os nossos olhos viam a mesma paisagem. Não os rios que foram todos dar ao Carmo, o mote anarquista que levou milhares ao Largo do Carmo nos 40 anos do 25 de abril, sem pedir autorização para a reunião e sem esperar que as ruas guardadas se fechem à sua passagem, mas um mar de tendas, de pobres ao relento, de plástico, fome e frio. Temos de “afirmar com veemência que as formas de vida que nos animavam ainda estão aqui, vivas”, disseram aa pessoas na Associação Sirigaita, na rua dos Anjos. E se eles estiverem realmente na rua, irão espalhar a mensagem.
(fotografias de Ricardo Reis)