A ínsula de Juan Tomás Ávila Laurel

Digan siempre que a pesar de las innumerables dificultades, decidí ejercer de escriba en la insula.

Juan Tomás Ávila Laurel[1]

 

Juan Tomás Ávila Laurel escreve para o público lusófono o texto Fomos enganados (Nos han engañado, no original), em que, muito ao seu jeito e com toda a sua mestria literária, nos introduz na situação do seu país, a Guiné Equatorial. Este escritor tem vindo a afirmar-se através de uma ampla obra literária, que inclui vários géneros literários, abarcando a poesia, o teatro, o conto e o romance, cujo papel social não é descartável nem tem ficado cingido à sua actividade ensaística e como autor de dois blogues de referência (aqui e aqui). Recentemente, este escritor tomou um dos maiores desafios da sua vida, tendo começado em 11 de Fevereiro deste ano uma greve de fome, na cidade onde tem vivido ultimamente, Malabo, na ilha de Bioko, na Guiné Equatorial, protestando contra a visita de José Bono Martínez, presidente do Parlamento espanhol, à Guiné Equatorial. Esta visita foi interpretada pelo autor como uma atitude de legitimação da política externa espanhola face a este regime ditatorial. Ao fim de alguns dias, Juan Tomás é forçado a abandonar o seu país, pois a sua segurança já não estava garantida. Vai, então, para Barcelona, onde continua o seu protesto, até que, ao fim de uma semana e por constrangimentos de saúde, termina a sua greve de fome. Assegurou-me, em conversa, que apenas o fazia porque era sua intenção continuar a sua luta pelo país que fora obrigado a abandonar, levando-o a cumprir o destino de outros tantos intelectuais seus conterrâneos que, desde há longas décadas, foram compelidos ao exílio. Esta é a solução que Juan Tomás nunca desejou, esta foi a consequência do seu acto que não sendo cometido por heroicidade, revelou a sua capacidade de resistir e de persistir nos seus intentos. Este foi o castigo, o maior talvez, que o homem, o cidadão que se orgulhava de ser o “escriba na ínsula” podia sofrer. Juan Tomás continua a viver em Barcelona, sempre com a esperança que seja uma situação temporária, o grupo de apoio formado no facebook continua activo e pedem-se mais participações, mais gente que se junte à causa que não é de Juan Tomás Ávila Laurel, mas de todos os intelectuais equatoguineenses, de todos os homens e mulheres da Guiné Equatorial, de todas as crianças e jovens daquele país africano (contacto: juantomas@groups.facebook.com; morada facebook aqui).

Juan Tomás parece ter sido condenado ao destino que partilhou a primeira geração de intelectuais equatoguineenses, acossada pelo regime de Francisco Macías, que ainda hoje vive dispersa pelo mundo, mas presente, sobretudo, em Espanha. A geração de Juan Tomás Ávila Laurel, que começa a escrever já no regime de Teodoro Obiang ,consegue manter-se, embora com muitas dificuldades, particularmente, aqueles que usam a sua arte para denunciar o regime, tentando rejeitar o afastamento da sua terra mãe. Juan Tomás tem sido um dos maiores exemplos não só de participação cívica como da persistência na criação artística mesmo que sob condições adversas, que resume brilhantemente nesta frase: Ya no podemos seguir viviendo bajo un dictadura que nos come el alma. É nessa recusa que se compreende esta greve de fome que não é fruto de ambições políticas directas, mas de um anseio muito maior e bem mais nobre, a liberdade. Escreve por isso aos seus amigos e apoiantes: No tengo motivaciones personales para hacer lo que hago. E, continua, com o recurso à ironia tão característica dos seus textos: O las tendo, pero no las conozco. No sería posible, pues, que depusiera mi actitud por una concesión personal. Declara isto no seu primeiro dia de greve de fome, desconhecendo que dias mais tarde seria a acusação de protagonismo e de pretensões políticas que o governo do seu país usaria contra si. Este activismo político, que Juan Tomás assume, valeu-lhe uma retirada rápida do seu país, enquanto aí, a maioria do povo não faz ideia que um seu concidadão foi forçado a abandonar a sua terra por ter iniciado uma greve de fome, por ter, apesar de todo o isolamento do país, alguma capacidade para fazer ouvir o seu clamor…

Apesar de desconhecido em Portugal e mesmo no âmbito da lusofonia, Juan Tomás Ávila Laurel é dos autores mais consagrados da Guiné Equatorial, único país ao sul do Sara com língua oficial espanhola. Expressando-se nesta língua, tem uma parte significativa da sua obra publicada em Espanha, o que se deve a condicionamentos relativos à edição no seu país que levam à quase inexistência de publicações locais, a não ser aquelas que têm sido apoiadas ou levadas a cabo directamente pela cooperação externa. Embora editado em Espanha, a sua obra não se encontra traduzida para o português apesar de ser profícua, destacando-se entre os livros publicados em Espanha, os romances La carga (Valência, Editorial Palmart, 1999), Nadie tinene buena fama en este país (Ávila, Editorial Malamba, 2002), Avion de ricos, ladron de cerdos (Madrid, El Cobre Ediciones), Arde el monte de noche (Calambur Editorial, Espanha, 2009). Contudo, este autor pode-se orgulhar de ser dos poucos que conseguiu publicar na Guiné Equatorial, contando-se os seguintes títulos, entre contos, relatos e poesia: Rusia se va a asame (Malabo, Ediciones Centro Cultural Hispano-Guineano, 1998), Historia íntima de la humanidad (Malabo, Editorial Pángola, 2000, recebe uma menção honrosa no concurso internacional literário Odón Betanzos Palacios do Círculo de Poetas e Escritores Ibero-americanos de Nova Iorque), Áwala cu sangui (Malabo, Editorial Pángola, 2000), El derecho de pernada (Malabo, Editorial Pángola, 2000), El desmayo de Judas (Malabo, Centro Cultural Hispano-Guineano, 2001, recebeu o terceiro prémio narrativa da XXXV edição do concurso literário internacional Odón Palacios do Círculo de Poetas e Escritores Ibero-americanos de Nova Iorque).

Curiosamente, o autor nasce, em 1966, na ilha que mais próxima está dos contactos históricos e culturais lusófonos, Ano Bom, de onde são também os seus pais. Ano Bom chega a ter colonização portuguesa e ainda hoje a literatura oral é veiculada num crioulo, fá d’ambô, com profundas ligações ao português. Chega a causar estranheza este desconhecimento e até alguma indiferença não só face à situação neste país como relativamente à sua produção cultural, completamente ignorada entre nós, falantes do português, especialmente, se pensarmos que a parte insular deste país está integrada geograficamente no mesmo arquipélago onde se situa São Tomé e Príncipe, apesar de uma divisão política artificial. Começou mesmo a sua escolaridade nesta ilha, tendo depois ido para Malabo e para Bata. Antes do seu exílio forçado vivia em Malabo, mas mantendo relações com intelectuais de muitos países africanos e europeus e dos Estados Unidos da América, onde foi nomeado Joseph Astman Distinguished Conference Scholar, pela Universidade de Hofstra – Nova Iorque. Esse é um dos aspectos mais interessantes do percurso deste escritor que tendo sempre vivido na Guiné Equatorial conseguiu ver a sua obra reconhecida por diversas academias, sendo tema de estudo de muitos investigadores e tendo conseguido algo muito raro no contexto equatoguineense que é publicar dentro e fora do país. Sabendo dos constrangimentos culturais deste país que, para além de ter uma literacia baixíssima o que leva a um número diminuto de leitores, não tem qualquer produção cultural que não esteja sujeita aos apoios externos, pois os governos têm-se demitido de qualquer ação que leve à melhoria das condições educativas e culturais da sua população. Numa cultura em que o medo é regra, dificilmente existe espaço para a criatividade, mesmo assim há os que desafiam esses poderes temidos e esse é o caso de Juan Tomás Ávila Laurel.

Se existe um caso em que podemos dizer que a arte tem um papel social é o do autor que apresentamos. Todavia o mais interessante na sua obra é como tem gerido uma possível tensão entre o seu papel enquanto cidadão e o seu labor de escritor. Nunca descartando a sua participação social que está patente nos blogues, nas conferências e em alguns ensaios que publicou, as suas obras literárias vão para além de um conteúdo interessante, apresentando uma estrutura narrativa atrativa, no caso da sua prosa, e, igualmente, uma linguagem poética que seduz por parecer que sempre deixa transparecer alguma contrariedade, como se a verdadeira ordem das coisas, de vez em quando, aparecesse invertida. A estes aspectos associa uma ironia que lhe permite, apesar de um certo desprendimento face ao relato do real, incidir em aspectos muito específicos da vida quotidiana. A alegoria e a metáfora são colocadas ao serviço da ironia, criando uma linguagem solta e um conteúdo com bastante humor, expondo o ridículo que, afinal, não é mais do que a própria vivência real, também esta parecendo quase uma ficção. Abandonando o tom magoado de uma literatura engajada que, por vezes, reproduz quase ao pormenor naturalista todas as descrições da tragédia que se pretende apresentar, Juan Tomás Ávila Laurel propõe-nos textos soltos quase escritos em tom de paródia, mas em que o leitor vai participando de inúmeras peripécias até chegar à verdadeira mensagem, fruto da desconstrução desses pequenos símbolos irónicos ali inscritos. O leitor tem, pois, a possibilidade de desconstruir o texto para descobrir todas as nuances que ali se encontram, num processo de leitura activa, em que o jogo entre realidade e ficção ultrapassa a escrita do texto para passar para o domínio da leitura do texto e fazer parte dessa experiência empreendida pelo próprio leitor. Porque, verdadeiramente, há uma mensagem subjacente e extensiva à sua criação literária: Nos han engañado todos, frase com que termina o texto que escreveu para o público lusófono. Apesar de todas as promessas, de todas as esperanças, de todos os sonhos, uma grande parte de nós ainda se sente enganada… e Juan Tomás está, neste momento, impedido de voltar à ínsula da qual prometeu ser escriba, por ter tentado acabar com esse desengano.

 

 


[1] Juan Tomás Ávila Laruel, “También ejercí de escriba desde la ínsula”, In Miampika, Landry-Wilfred,  Las palabra y la memoria: Guinea Ecuatorial 25 años después, Madrid, Editorial Verbum, 2010

por Cátia Miriam Costa
A ler | 22 Março 2011 | Guiné Equatorial, Juan Tomás Ávila Laurel, Literatura, protesto