Literatura oral, performance, memória, multimédia e internet: que relação?
Cahiers de Littérature Orale, N.º 63-64, 2008, Paris, INALCO, [2010]
Dados à estampa em 2010 e referindo-se ao ano de 2008, os Cahiers de Littérature Orale dedicam os seus números 63 e 64 a estas questões: performance, memória, multimédia e internet. Coordenados por Brunhilde Biebuyck, Sandra Bonard e Cécile Leguy e dirigidos por Geneviève Calame-Griaule, estes cadernos têm-se afirmado como uma das mais importantes revistas dentro do panorama da literatura oral, convidando especialistas de várias áreas, com especial ênfase para a literatura, a linguística e a antropologia, com o objectivo de reflectir sobre os desafios que esta disciplina em geral tem vindo a enfrentar. Nesse sentido, tem contribuído para a desmistificação de alguns aspectos ligados às práticas de cultura popular ou de tradição oral, localizando-as como manifestações transversais a várias sociedades, independentemente do seu grau de desenvolvimento tecnológico. Como bem referem Sandra Bonard e Cécile Leguy, no seu editorial, a oralidade já não pode ser encarada como uma falta ou desvio à comunicação escrita, mas como um dos modos de comunicação culturalmente assumidos, com características próprias e autónomas. Literatura oral, arte verbal, performance e novas tecnologias são colocadas a par e relacionadas, desvendando algumas tendências que a contemporaneidade nos sugere. Numa primeira parte, dedicando-se a explorar os diferentes aspectos da performance e como estes implicam nos conteúdos orais, numa segunda parte, reflectindo sobre as recolhas e as experiências do investigador enquanto sujeito que assiste ou estimula essas mesmas representações. Trata-se de vinte e cinco artigos de autores diversos, muitos deles nomes de referência na literatura como Geneviève Calame-Griaule ou Jean Derive, e três recensões, dedicadas respectivamente aos livros Littératures orales africaines: perspectives théoriques et méthodologiques de 2008; The Oral and Beyond. Doing things with words in Africa de 2007, e De bouche à oreille. Anthologie de contes populaires français de 2006.
Apesar se serem artigos de diversos autores e dirigidos para preocupações e reflexões diferentes, na verdade, com o correr da leitura, parece-nos que todos se interligam numa sequência estimulante. Assim, vemos surgirem questões que são colocadas universalmente quando é levado a cabo um trabalho de campo no âmbito da literatura oral que nos aparece como um elemento complexo e fruto da relação entre a arte e as sociedades humanas, em que tanto o aspecto estético como o conteúdo são tomados em conta, bem como, a participação de quem conta e a sua interacção com quem ouve, novamente, abrangendo os assuntos escolhidos para contar e a forma como eles são representados ao receptor. Embora pesem mais em número os trabalhos de campo referentes a experiências africanas, como é o caso do Níger, da Costa do Marfim, da Nigéria e da República Democrática do Congo, também encontramos relatos de estudos de caso em França, na Grã-Bretanha, na Austrália ou nos Estados Unidos da América, desmistificando a ideia que a literatura oral apenas é parte ou subsiste em âmbitos muito determinados e, por vezes, apresentados ao leitor ocidental, com um gosto a exotismo. Todos estes artigos contribuem para que se tenha uma ideia contrária, sobretudo, quando vemos que parte das contribuições sobre novas tecnologias abrange o universo africano, que, em geral, aparece de imediato apartado destas no imaginário colectivo.
Percorrendo questões metodológicas, éticas e deontológicas, os artigos sucedem-se questionando o papel do investigador; reflectindo sobre as formas mais adequadas para efectuar a recolha de materiais; procurando saber como apreciar a linguagem gestual no âmbito de uma recolha de literatura oral; quais os fluxos e refluxos da memória enquanto se efectua a comunicação oral, directamente ancorados na própria dinâmica individual e colectiva da memória; buscando a relação entre memória e narrativa e os encontros das narrativas entre exilados e cidadãos vivendo em território pátrio; estudando e propondo estratégias que conduzam à confiança do informante, recorrendo à intertextualidade e mistura de géneros e temas; pensando na recolha de materiais em que o investigador é outsider e como continuar essa mesma recolha quando este se encontra ausente; apresentando ferramentas para o estudo das línguas não escritas; propondo quadros de análise emergentes de acordo com as novas situações que vêm surgindo; reflectindo sobre a recolha oral num contexto de crise política que levanta importantes questões deontológicas; apresentando uma gara poética que se funda na disputa entre dois ou três poetas que soltam quadras improvisadas, ao jeito do que se faz em Portugal com o fado cantado à desgarrada, e levantando a questão da recolha mais adequada nestes casos; pensando o papel da pesquisa em literatura oral na preservação das matérias culturais intangíveis; considerando o papel da recolha oral quando se pretende tratar de questões como a farmacopeia tradicional: valorizar, salvaguardar, relatar ou avaliar?
Para além destes temas, encontramos outros, reflectindo os novos desafios enfrentados nos estudos da oralidade, entre estes, a entrada de géneros associados à oralidade no contexto da internet, como o exemplo dado sobre o gate-gate que se trata de uma tradição ritual da camada da população mais jovem, baseada na troca do insulto, que se tornou muito comum nas zonas urbanas da Costa do Marfim e, neste momento, estendeu-se à diáspora e o seu exercício é feito na internet, avaliando-se a possibilidade da internet se tornar num novo veículo de transmissão e exercício de práticas tradicionalmente orais. Aliás, a internet, enquanto meio de difusão, da pesquisa sobre oralidade volta a ser referida, por exemplo, pela reflexão sobre o percurso desde a captação do conto ou do texto em geral até à sua disponibilização na rede. Igualmente, os temas ligados à multimédia como apoio à publicação, preservação e compreensão da literatura oral, por permitirem a recepção de todo o universo que respeita a estas práticas, incluindo a performance, sendo este apontado como uma das formas de ligar autenticidade e modernidade, desmistificando reciprocamente ambos os mundos.
Estamos, pois, em presença de um conjunto de artigos que nos levam a uma profunda reflexão sobre todos os fenómenos concernentes à literatura oral e nos fazem extrapolar para outras análises que se referem, nomeadamente, à actualização de alguns conceitos relacionados com esta área do conhecimento e da cultura. Ao tratar de igual modo e ao propor as mesmas questões para os vários estudos de caso, verificamos que, apesar da especificidade que cada cultura e cada sociedade apresentam, existem também desafios que são extensíveis a diferentes contextos de pesquisa e que a relação entre tradição e modernidade no âmbito da oralidade ou as questões levantadas quanto aos materiais recolhidos (se estes seriam ou não os mais representativos de uma determinada tradição ou género) são, igualmente, aplicáveis. Uma leitura aconselhada a todos os interessados nestas matérias, sejam investigadores ou simples interessados e curiosos nestas matérias.
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